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domingo, novembro 16, 2008

Letras dobradas – primeira dose

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Uma vez, numa exposição de artes plásticas que incluía um pintor irlandês, falei a um adido cultural britânico (que na época era chefe da minha ex-mulher) que todo filme ou livro de irlandês que eu me lembrava tinha um pub com uma galera enxugando até o talo. Era um comentário despretensioso, sincero, que de repente poderia até ser interpretado como um elogio. Mas ele meio que se ofendeu, e rapidamente levantou a voz em defesa dos vizinhos “os brasileiros também!”. Não avançamos na conversa, pois ficou um clima ruim, resultado mais de incompreensão do que de uma real diferença de opiniões. Além do mais, o cara é escocês e não é nada fraco na mesa de boteco. O que ficou do episódio foi uma pulga atrás da orelha com relação à presença da manguaça na literatura brasileira. Ainda acho que ele exagerou, pois mesmo com tantos escritores que falam de cachaça ou que tratam de bebê-la sem moderação, os brasileiros não superam os Irishmen. Quem se compara a James Joyce, por exemplo? É algo a se pesquisar.

Que autor brasileiro superaria Joyce na manguaça?

Entretanto, para que não me acusem de levantador de lebre barato, uso essa anedota como mote para iniciar aqui uma pesquisa aberta – um work in progress (já que citei Joyce...) – da literatura manguaça universal. Não só brasileiros e irlandeses – a polêmica não vale a pena –, mas em geral. Faço também o convite a quem quiser contribuir com comentários, sugestões, opiniões, preferências etc. etc.

Rabelais, príncipe dos poetas ébrios

Aí, revirando minha memória literária – que infelizmente é curta, talvez pelo álcool –, não me lembro de nenhum escritor que supere Rabelais no quesito manguaça. E não é um cara deprezão, tipo Bukowsky (que, diga-se, nunca me convenceu). Rabelais, um ícone da cultura renascentista, é do tipo sangue-bão, um bom bêbado, companheiro de mesa, imensamente culto e ao mesmo tempo irônico (e autoirônico). Ri o bom e livre riso dos justos beberrões, que curtem a comida farta, motivo de mais beber e mais celebrar.

Aliás, já foi dito que ele e o James Joyce são praticamente da mesma família de escritores... quer dizer, o Joyce é como um Rabelais moderno: o mesmo amor pela cana e pela vida de boteco, o mesmo gosto pelos jogos de palavras (sim, ambos elevaram ao mais alto posto literário a prática do trocadilho-arte) e a mesma capacidade de realizar o que eu considero o ideal do bar: mesclar a dita “alta” com a dita “baixa” cultura, ter total liberdade pra juntar assuntos tão afins quanto os dramas da existência e a qualidade do torresmo.

Basta ler as linhas iniciais do primeiro (publicado em 1534) da série de cinco livros das histórias dos gigantes Gargântua e Pantagruel. O prólogo abre interpelando os leitores: “Bêbados muito ilustres (...) (pois aos senhores, e não a outros, são dedicados meus escritos)”. E aí começa a citar Platão, a passagem do Banquete em que Alcibíades compara Sócrates a uma silene. Silene, na mitologia grega, é um semi-deus, segundo versões seria o preceptor de Dionísio, notoriamente o deus da manguaça. Mas as silenes são também umas caixinhas, como as de um boticário, adornadas por fora com ilustrações representando o semi-deus embriagado, sendo carregado pelos sátiros seus discípulos; dentro são guardadas as mais finas drogas.

Esse seria o Sócrates:

“simples nos modos, rústico nas roupas, pobre em fortunas, infortunado com as mulheres, inepto a todos os ofícios da República; sempre rindo, sempre bebendo (...), sempre se fartando, sempre dissimulando seu divino saber. Mas abrindo essa caixa, se encontraria lá dentro uma celeste e inapreciável droga: entendimento mais que humano, virtude maravilhosa, coragem invencível, sobriedade sem igual, contentamento certo, segurança perfeita, desprezo inacreditável por tudo aquilo por que os humanos tanto velam, correm, trabalham, navegam e batalham”.

É muito sério isso: esse mesmo Sócrates descrito como “sem controvérsia o príncipe dos filósofos” tem dons que eu não encontro outro modo de definir senão como qualidades essenciais da própria canjibrina. O que mais proporciona o “entendimento mais que humano”? Virtude, coragem, segurança? E mais, o “desprezo inacreditável” pela vaidade que move homens em tantas batalhas e tanto trabalho para chegar sabe-se lá onde? Na fundação da filosofia ocidental, um manifesto manguaça.

O nascimento de um bêbado

Só mais uma passagem, o parto de Gargântua:

“Grandgousier, bebendo e rindo com os outros, escutou o grito horrível que seu filho deu ao entrar na luz deste mundo, quando ele urrava pedindo Mé! Mé! Mé! Ao que disse, mas que grande e elástica essa boca. Ouvindo isso, os assistentes disseram que realmente ele devia por isso ter o nome de Gargântua...”

Detalhe, tomo aqui liberdade como tradutor, pois o que recém-nascido Gargântua grita é “A boire! A boire! A boire!”, o que soa como “buá” e quer dizer, literalmente, “’bora beber! ’bora beber! ’bora beber!”.

9 comentários:

Anselmo disse...

muito bom!

Só fiquei achando que o texto todo é pra redimir os trocadalhos.

agora, o escocês ficou mau humorado porque você não sugeriu que a explicação fosse numa mesa de bar.

Nicolau disse...

A boire, Maurício, a boire!

Anônimo disse...

Pô Maurrício, excelente!!! Muito bom mesmo! Mas só para incrementar: a passagem do "Banquete" de Platão, em que "Alcibíades" (o jovem mais bonito da Grécia) chega até o local onde se realiza a reunião entre os amigos, é muito cômica... já que este resolve (em plena manguaça) fazer uma cena de ciúme para Sócrates (que era seu mestre e amante).
Se quiser eu posso te passar o trecho depois.

Marcão disse...

Muito bom. Só acho que Bukowski não tem que convencer ninguém. Tem que ser "bebido", só isso. Acho que há uma incompreensão de sua obra. Muita gente, como o Maurício, o considera "deprezão". Eu já acho que tem um bom humor e uma capacidade incomum de registrar como é encarar - totalmente embriagado - a vida capitalista, o trabalho forçado, os relacionamentos insanos e as decepções cotidianas. É desesperador, mas não tem outro jeito.

Concordo que seja muito repetitivo ou escatológico, como já observou o Fredi, mas também não é preciso ler a obra inteira de Bukowski. Alguns livros, como "Cartas na rua" ou "Mulheres", já são o suficiente. Não quero endeusá-lo, mas também não deixo de reconhecer a originalidade e o poder de sua verve. No mais, Joyce e Rabelais estão num patamar tão elevado que nem cabe qualquer tipo de comparação.

Maurício Ayer disse...

é, posto dessa forma, aceito um buwovsky, se puder tomar alguma cana antes. acho que minha má vontade com ele decorre mais de seus adoradores que do próprio. já dei boas risadas com alguns de seus poemas, mas a coisa não sai muito do lugar.

ô débora, manda sim, aí a gente faz um adendo ao post.
conheço essa passagem do banquete, é muito engraçada. a gente não tá muito acostumado à cenas de ciúme homossexual, ainda mais nos textos de filosofia. mas isso era normal na cultura grega, não é mesmo. é muito engraçado na hora que todos ficam admirados e invejosos em relação a sócrates, que com sua sabedoria e capacidade retórica conquista "todos os belos" de Atenas, e não sobra pra ninguém...

Marcão disse...

Pois é, Maurício, essas diferenças de percepção são muito freqüentes - e por isso que todo tipo de arte é fascinante, especialmente literatura e música. Assim como enxergo em Bukowski muito bom humor para lidar com nossa (trágica) existência, percebo o mesmo tipo de ironia e auto-sarcasmo, por exemplo, no disco "Loki?", clássico do Arnaldo Baptista gravado no ano em que nasci (1974).

Mas 90% das pessoas que conheço dizem que, apesar de gostarem do trabalho, não põem pra tocar porque é muito "pra baixo", "depressivo". Eu já acho o contrário, me divirto muito com as frases tipicamente "arnaldianas" como "Não gosto do pessoal da Nasa!", "Xuxu beleza, tomate maravilha", "Você me deu adeus/ Como, se nós somos de Deus?" etc etc.

Mas é a tal coisa: cada um lê e ouve a seu modo. No documentário sobre o Vinicius de Moraes, o Ferreira Gullar diz que, na vida, a pessoa pode inventar para o bem ou inventar para o mal. Ou seja: se optar pelo mal, vai percebê-lo em tudo que observar, ouvir ou ler. Com postura contrária, vai enxergar beleza, bom humor e até otimismo em obras que, aparentemente, são o completo oposto. Gostei muito dessa visão do Gullar.

Maurício Ayer disse...

é que, marcão, o "deprezão" que eu escrevi no post e que soa como julgamento de valor sobre o Bukowsky na verdade é só pra contrastar com o Rabelais, que tem um humor escancarado, mas também muito ácido. O clima é que é totalmente outro.
o que eu sinto do bukowsky é que ele se esgota rápido, que não tem muito mais além da manifestação de um homem em degradação num mundo degradado. sei lá, se pensar que outras pessoas que sentiram muito fortemente esse descompasso com o mundo escreveram coisas como as obras de nietzsche, baudelaire, nerval, fernando pessoa, ou ainda os próprios escritos do ferreira gullar, como o Poema Sujo, enfim, lebrando assim aleatoriamente, fica pequeno pro bukowsky. imagina, comparar o cara com faulkner, que era outro manguaça?
mas, como não gosto, nunca dediquei muito tempo a ele. talvez nesse caminho eu deva submeter meu fígado a este torresmo e ver o que acontece. talvez mude de idéia e descubra um lugar pra ele na minha caótica estante.
melhor marcão, fica aqui o desafio a você de escrever uma contribuição à recém-nascida série "letras dobradas", de repente retomando aquele post que você já escreveu sobre o cabra.

Glauco disse...

Muito bom o post, à espera de mais manguaças.

Anônimo disse...

O que dizer de François Rabelais? Ele foi capaz de transparecer o escrito no não escrito, tal qual o álcool na manguaça...sabe, mas não vê.