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segunda-feira, fevereiro 16, 2009

Um dia sem fim

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Foi num 16 de fevereiro, mas não como agora. Era terça-feira de Carnaval. Eu estava fazendo embaixadas com uma bola de tênis, logo depois do almoço. Ouvindo algum LP no aparelho de som, mas já não sei qual. Só me lembro que o telefone tocou, eu atendi. Uma voz aflita, de mulher, pediu para eu chamar minha mãe com urgência. Minha mãe, naquele horário, descansava rezando seu rosário. Voltei para a outra sala e desliguei o som. Fiquei aguardando alguma coisa terrível, pois a aflição de minha mãe, no telefone, me pareceu pior do que a da pessoa que estava do outro lado da linha.

E o terrível aconteceu: "-Marcos, seu tio Estevam não voltou pra casa essa noite e acabaram de encontrar o carro dele dentro de uma lagoa, em outra cidade. Eu estou indo ficar com a sua tia. Avise seu pai". E saiu, desesperada, para socorrer a irmã mais nova. Fiquei ali, parado, sabendo que tinha ouvido uma versão amenizada. Minha mãe não sabe mentir. Havia um contexto perigoso. Meu tio, ex-presidente do Sindicato Rural de Taquaritinga, terminava seu mandato como vereador. E vinha fazendo algumas denúncias muito graves pelo microfone de uma rádio local.

Mas, para mim, ele era acima de tudo o meu padrinho, que sempre se portou como um tipo de "segundo pai", conversando comigo e me aconselhando. Principalmente ali, quando estava com meus 13 ou 14 anos. Por isso, temi pelo pior. E ele veio, quando meu pai apareceu, chorando: "-Mataram teu tio!". A partir dali, vivi uma espécie de paralisia sentimental. Não conseguia chorar, não conseguia pensar na vítima de tal brutalidade como sendo o meu tio, o meu padrinho. Fiquei nesse torpor durante horas, o resto do dia.

Um dia cinzento, chuvoso, feio. Tive que ir para a casa de uma das minhas irmãs enquanto meus pais tentavam colaborar de alguma forma naquele caos familiar. Fiquei lá naquela casa, numa varanda, olhando o vazio. Sem pensar em nada, sem sentir nada. Meu pai retornou à noite e me perguntou se eu queria ir ao velório. Sonâmbulo, desatento e sem vontade própria, assenti com a cabeça. Nada me importava, aquilo só podia mesmo ser um sonho. Um pesadelo do qual, com certeza, eu acordaria. Quem dera...

No local, a cidade inteira se espremia para se despedir do vereador. Aos empurrões, cheguei à beira do caixão. Ainda hoje não suporto a mistura enjoativa do cheiro de vela com flores. Olhei para o meu tio. Um corte suturado com pontos assinalava o local onde a bala entrou, no rosto. Minha tia me puxou e disse: "-Olha o que fizeram com ele!". Só então notei a presença dos meus primos, em choque. Na hora, senti tudo o que estava acontecendo. A ficha caiu, o choro explodiu. Não me lembro como saí dali. Na verdade, penso, às vezes, que nunca saí daquela situação.

Porque ela volta todos os dias 16 de fevereiro. Como hoje. E sempre voltará, com certeza, até o final dos meus dias.

9 comentários:

Maurício Ayer disse...

Forte.
Que história, Marcão.
Você já pensou a influência disso na sua decisão de virar jornalista?

Marcão disse...

Nunca relacionei, Maurício. O curioso é que a escolha da profissão veio naquele mesmo ano. Mas, pelo o que me lembro, foi influenciada por um amigo que já tinha se decidido e me fez a pergunta fatídica: "Se você só gosta de conversar, ler e escrever, vai ganhar a vida com o que?". Me rendi aos argumentos, mesmo percebendo, mais tarde, que não era esse jornalismo que está aí o que eu gostaria de fazer.

Mas o meu tio pode ter influenciado na medida em que sempre havia jornalistas querendo entrevistá-lo. Me lembro da geada que assolou as plantações de laranja da Flórida, em 1983 ou 1984, e os laranjeiros da região de Taquaritinga ficaram ricos do dia para a noite. Ele sempre era procurado pelos telejornais da Globo para falar sobre o assunto. E foi assim que uma tarde vi aparecer na minha frente uma equipe de reportagem da Globo de Ribeirão Preto.

Chegaram na cidade e não sabiam onde encontrar o meu tio, então perguntaram para alguém na rua, que indicou a casa da minha avó (onde ele, às vezes, aparecia para tomar café). O repórter era o hoje famoso José Luís Datena - só que bem moço e muito mais magro. Minha avó disse que meu tio estava no sindicato, mas não consegui explicar à equipe da Globo como chegar lá. Eu tentei ensinar e, impaciente, o motorista falou: "Ô, menino, cê não pode ir com a gente até lá?". Montei na "viatura" e fui de "co-piloto" até a sede do Sindicato, ouvindo o Datena reclamar do calor e fazer piadas.

Pode não ter nada a ver uma coisa com outra, mas foi a primeira vez que participei de uma pauta.

Glauco disse...

Que narrativa, Marcão... Foda.

Maurício Ayer disse...

Mas e a raiva?
O legítimo e viceral sentimento de raiva, isso nunca te moveu de algum modo? Não te fala algo do ofício de jornalista?

Eu cresci numa situação um tanto estranha. Vivia num bairro burguês, numa escola que hoje se poderia chamar de "tipicamente tucana" (a dona era casada com um assessor do Fernando Henrique, bem antes dele ser presidente), ou seja, de endinheirados com discurso de consciência social sem nunca ter visto com os próprios olhos o que é a realidade político-social brasileira.
Ao mesmo tempo, viajava muito com minha mãe, em 89 visitamos comunidades quilombolas no Pará, um pouco antes disso fomos a Erechim, no Rio Grande do Sul, em manifestações do nascente Movimento dos Atingidos por Barragens contra hidrelétricas que seriam construídas pela Eletrossul na região e desalojariam populações inteiras. Convivia também com membros de comunidades indígenas e com dirigentes do MST, que na época eram vizinhos de sala da Comissão Pró-Índio, onde minha mãe trabalhava, ambas ficavam no instituto Sedes Sapientae, em Perdizes.
Nessa época, cansei de ouvir (da boca daqueles que as sofriam) histórias de assassinatos, espancamentos e todo tipo de violência atroz cometida por razões políticas ou econômicas.
Mas depois voltava pra escola e o que encontrava era aquele discursinho neo-fascista que ridiculariza os pobres (são ignorantes, incapazes), criminaliza movimentos sociais e absolve sumariamente crimes dos grandes.
Uma lembrança forte que tenho dessa época é a raiva. A indignação pela total incapacidade daquelas crianças de perceber o absurdo que estavam reproduzindo. E na verdade é na boca de crianças que muitas vezes a ideologia dos pais se revela da maneira mais crua.

Nessa mesma época, eu estudava francês na Aliança Francesa e na minha turma entrou um garoto extremamente mimado, daqueles que fica chamando a atenção o tempo todo, fazendo gracinha. Um dia ele me falou sobre o motorista, que o trazia e esperava na porta até que ele saísse. Seu tom era o de alguém que se desculpa. “Meu pai não gosta de negros, porque uma vez ele foi assaltado por um negro em Salvador. Mas este é uma boa pessoa.” Não me lembro o primeiro nome do menino, mas o sobrenome era Civita.

Marcão disse...

Entendo o que você quer dizer sobre a raiva, Maurício. Na época, como a maioria das pessoas envolvidas numa situação dessas, tinha vontade de matar os assassinos (um cruel paradoxo que, muitas vezes, incentiva linchamentos e outras barbaridades). Eu tinha acabo de fazer 14 anos e muitas coisas ainda não estavam claras - o jogo político, as disputas locais, as quadrilhas "públicas". Quando prenderam os dois acusados, que devem estar presos até hoje, percebi na hora que havia algo de errado.

Eram dois rapazes negros, muito pobres, que haviam cortado cana na fazendo da família do meu tio. Eles disseram que haviam matado para roubar, mas o dinheiro era ridículo e outros bens não foram levados do carro. Daí veio meu amadurecimento forçado, pois entendi logo que esses pobre diabos só tinham executado o serviço, a troco de merreca. Dos possíveis mandantes sempre suspeitamos, mas, como a própria família do meu tio (com outros políticos) preferiu encerrar as investigações, para evitar mais represálias, o assunto virou tabu na minha casa e nunca mais foi discutido.

Por isso, a raiva inicial dos matadores transformou-se uma consciência precoce de que, neste mundo, todas as causas são muito complexas. Não foi só o revólver que disparou, não foi a pessoa que apertou o gatilho. Uma trama sórdida e muito difícil de ser recuperado em detalhes levou meses e meses, com muitos grupos importantes, figurões e interesses capitais envolvidos, até aquele dia fatal. Descobri, na época, que mesmo uma cidadezinha minúscula possui muito dinheiro, quadrilhas políticas e negócios lucrativos e escusos que podem levar, facilmente, a um crime de morte contra uma figura pública. Sem que ninguém mais toque no assunto, para que a coisa não fique ainda mais feia.

Recentemente, em dezembro de 2004, outro político contemporâneo de meu tio, Fued, ex-vereador e ex-vice prefeito da cidade, foi morto dentro de seu escritório, ao meio-dia. Ninguém viu nada, ninguém sabe de nada. Por isso, mais que uma "raiva jornalística", eu tive mais uma "compreensão social e política" de como as coisas funcionam no Brasil. E sempre tive certeza que, mesmo se eu conseguisse descobrir tudo (ou a maior parte) dos motivos que levaram meu tio à morte, ninguém, em lugar algum, jamais teria a coragem ou o interesse de publicar. E, se alguém tivesse essa ousadia, provavelmente eu mais alguém da minha família teríamos o mesmo destino do meu tio...

Anônimo disse...

Muito bom seu blog. Parabéns.
Abraço

Maurício Ayer disse...

Mas não acho que as coisas estejam desligadas, Marcão.

A raiva de que eu falo não é essa que simplesmente impulsiona um ato qualquer de loucura, um infantil suicídio com cara de ato heroico que apenas desgastaria um pouco os dentes da máquina; falo da raiva que sedimenta a compreensão da complexidade do mundo dos homens e, especificamente, da injustiça que o constitui tão intrincadamente.

Acho essa raiva não só legítima como necessária. Ela é que dá tônus à musculatura ética.

Marcão disse...

Não, de fato não estão desligadas. É claro que este e outros fatos - como os que você teve contato nas andanças com sua mãe - fazem com que nossa sede por justiça e um mundo melhor definam uma linha de estratégia e ação. Compreendo isso. Mas o meu total e absoluto desencanto com o jornalismo e o mercado da informação (distorção, faz-de-conta e cartas marcadas) faz com que, desde sempre, essa raiva seja direcionada para outras formas de intervenção na sociedade. Ou seja: nunca me iludi com jornalismo ou com o fato de ser jornalista. Para mim, ser garçom é um trabalho mais honesto...

Maurício Ayer disse...

Bom, muito garçom também deve viver desiluções quanto à honestidade de sua profissão...

Mas continuo achando que algo dessa raiva de que falava é que pode levar a manter tesa a questão dos fundamentos da profissão. Eu que não sou jornalista sinto bastante isso. Como professor, por exemplo.

Sendo jornalista é sem dúvida mais difícil. De qualquer modo, eu questionava sobre uma possível origem, uma influência na decisão, não sobre a desilusão de hoje. Mas parece que não é mesmo o seu caso.