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terça-feira, maio 05, 2009

O ébrio e o respeito ao princípio da propriedade

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Em 2008, senti-me sinceramente envergonhado pelo pouco caso do Brasil em relação ao centenário de um de seus filhos mais célebres, o escritor carioca Machado de Assis (foto) - seguramente, um dos maiores da língua portuguesa e da literatura mundial. Fora uma ou outra palestra, exposição ou exibição de obras suas adaptadas para o cinema ou teatro, a data, que merecia justa comoção nacional, passou em lamentáveis e brancas nuvens. Chateado com isso e aproveitando que no próximo 21 de junho completam-se 170 anos de seu nascimento, decidi render minhas próprias homenagens da forma como acredito que Machado mais apreciaria: relendo três de seus livros mais fascinantes, "Memórias póstumas de Brás Cubas", "Quincas Borba" e "Dom Casmurro". O mais interessante em rever esses trabalhos, além do sarcástico bom humor e da absoluta avacalhação do ser humano e dos costumes sociais, é notar que, nas entrelinhas ou em capítulos aparentemente desconexos, o escritor encobriu pepitas que dificilmente encontramos nas primeiras leituras. Uma delas segue abaixo:

"Era uma vez uma choupana que ardia na estrada; a dona - um triste molambo de mulher - chorava o seu desastre, a poucos passos, sentada no chão. Senão quando, indo a passar um homem ébrio, viu o incêndio, viu a mulher, perguntou-lhe se a casa era dela.
- É minha, sim, meu senhor; é tudo o que eu possuía neste mundo.
- Dá-me então licença que acenda ali o meu charuto?
O padre que me contou isto certamente emendou o texto original, não é preciso estar embriagado para acender um charuto nas misérias alheias. Bom Padre Chagas! - Chamava-se Chagas. - Padre mais que bom, que assim me incutiste por muitos anos essa ideia consoladora, de que ninguém, em seu juízo, faz render o mal dos outros; não contando o respeito que aquele bêbado tinha ao princípio da propriedade, a ponto de não acender o charuto sem pedir licença a dona das ruínas. Tudo ideias consoladoras."


(in "Quincas Borba", Capítulo CXVII - Livraria Garnier, 1891)

4 comentários:

Glauco disse...

Tá aí um manguaça de respeito...

fredi disse...

"Acender um charuto nas misérias alheias" é genial.

Não lembrava desse trecho também...

olavo disse...

Caramba, sensacional demais.

Ano passado rolou exposição comemorativa ao Machadão no Museu da Língua Portuguesa. Eu fui lá, tava simpático.

Anselmo disse...

se você comparar os 100 anos de morte do Machado de Assis com os 50 de carreira do Rei Roberto Carlos, sem dúvidas que a diferença será gritante. Mas como não acompanhei as homenagens ao escritor ano passado, eu tendo a achar que deve ter passado bastante coisa despercebida por mim.

Mesmo assim, a homenagem do Marcão taí pra redimir o país.