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quinta-feira, junho 04, 2009

A insustentável leveza do desarme

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Um zero a zero justo.

Será que posso descrever assim um jogo em que no segundo tempo um time praticamente só atacou e o outro se defendeu, com alguns poucos contra-ataques que, embora perigosos, não romperam a virgindade das traves do adversário? Depois de um primeiro tempo bastante equilibrado, o Corinthians viveu um segundo tempo de pressão constante, com o Vasco da Gama no ataque buscando obstinadamente o gol. Nossa natural e cultivada admiração pelo jogo ofensivo nos levaria a dizer que o time carioca merecia o gol e a classificação à final da Copa do Brasil. Mas isso seria impreciso, pois deslocaria os méritos a quem também não foi capaz de marcar.

Na realidade, os maiores destaques em campos foram esses dois artistas do desarme, Chicão e William. Poucos times suportariam tanto tempo de jogadas incisivas nas franjas de sua área sem fazer faltas, sem aceitar provocações e sem deixar que a bola efetivamente ameaçasse o gol de Felipe. O arqueiro alvinegro fez uma grande defesa – numa cabeçada de Elton, se não me engano – e teve que sair do gol em mais um momento decisivo.

Fiquei pensando em como descrever a atuação dessa zaga, e me vieram à mente ideias do escritor italiano Italo Calvino.

"Logo dei-me conta de que entre os fatos da vida, que deviam ser minha matéria-prima, e um estilo que eu desejava ágil, impetuoso, cortante, havia uma diferença que eu tinha cada vez mais dificuldade em superar. Talvez que só então estivesse descobrindo o pesadume, a inércia, a opacidade do mundo – qualidades que se aderem logo à escrita, quando não encontramos um meio de fugir a elas." (Cia. das Letras, 1990, trad. de Ivo Barroso)

É a leveza do toque, da movimentação, a não-violência de seus zagueiros que mais admira neste time do Corinthians. Em nenhum momento o time vascaíno conseguiu impor o seu peso, fazer valer a força de sua pressão. Ao contrário, quem se impunha, não pela força mas pela precisão do desarme, foram os zagueiros. O ataque do Vasco foi criativo e veloz, mas a arte do desarme está aí, em superar a qualidade do atacante sem agredir, jogando com chuteiras de pelica. Pois, lembra Calvino, "A leveza (...) está associada à precisão e à determinação, nunca ao que é vago ou aleatório".

Que me acusem de comemorar um empate. O ataque do Corinthians foi medíocre, o meio campo não criou nada. A defesa, porém, fez por merecer, e não só pela garra, mas por sua qualidade. Ainda haveria que mencionar a garra do restante time, em particular de Alessandro e Cristian, e até os momentos de brilho de Dentinho. Mas quis falar dos zagueiros.

A inércia do mundo


Do lado oposto, o do peso e da inércia, poderia comentar a pança do Ronaldo. Muito acionado, perdeu gols feitos, errou nas decisões sobre chutar ou tocar a bola em momentos decisivos, criou jogadas pseudogeniais, na verdade pequenos delírios – penso no toque de calcanhar que deu pro Cristian "chegar chutando" quando o volante estava lá do outro lado, na frente do Ronaldo... Nada disso é o que se espera dele.

Acontece que, quando é "poupado", Ronaldo inexoravelmente ganha peso, e isso deveria ser levado em conta. É como jogar na altitude. Precisa de um tempo de adaptação. Sem dúvida, o centro de gravidade se deslocou, e Ronaldo precisa de um tempo de jogo para reencontrar seu equilíbrio. Atenção para esta dica, Mano.

Mas para mim, o mundo mostra seu peso, sua inércia, sua incapacidade de se renovar quando sabemos da notícia de que um torcedor corintiano foi morto a pauladas e facadas por torcedores do Vasco (segundo notícias, reforçados por torcedores do Palmeiras). Não quero com isso insinuar que "a torcida" corintiana seja uma vítima e os vilões, os seus adversários. O torcedor assassinado sem dúvida é vítima. Mas o que eu quero é só lembrar que passam os anos e não conseguimos reinventar nossas vidas e transformar em "uma fase do passado" a realidade de brutal violência das torcidas. Ao final do jogo, corintianos queimaram um ônibus vascaíno, na saída do Pacaembu. Aqui a reportagem do Globo.com.



Com uma visão cada vez mais opaca, esses jovens não conseguem ver o óbvio, que estão se matando por nada – não é pelo time, não é pela honra nem pela glória: é por nada. É bonito e emocionante sentir a vibração de um estádio que canta que seu time é "sua vida, sua história, seu amor". Mas quando isso se torna literal e completamente verdade, quando o time toma todos os ínfimos espaços da vida e da história de um bando de jovens, uma estranha "ética" se forma, de índole religiosa ou militar: a ética do homem-bomba, que se mata e morre por fidelidade cega a um símbolo – neste caso, até o símbolo está ausente, o que há é um distintivo que deveria significar outra coisa que não uma bandeira de guerra, um valor absoluto...

Seria preciso entender mais a fundo esse fenômeno, não sei se alguém realmente o fez. Comportamento de massa, desconsolo, falta de praia... tudo isso me parece perfumaria na compreensão do sentido essencial da violência que faz com que milhares de jovens joguem fora aqueles que deveriam ser os melhores e mais inventivos anos de suas vidas.

12 comentários:

Glauco disse...

Pra exaltar a defesa de um clube, tem que se recorrer a um italiano, inevitável, rs.

Quanto à questão das torcidas, é um tema pra reflexão profunda. Hoje algumas organizadas são nichos que fomentam não somente o ódio entre rivais, mas preconceitos de toda ordem, são machistas, homofóbicas etc etc.

Mas também não dá para colocar a culpa só nelas e ignorar uma série de outros fatores, desde os os sociais até a própria atuação da polícia. Enfim, é complexo mesmo.

fredi disse...

DMarcelo, só escrevi porque não havia nada postado sobre a CB. Peço a quem souber fazer que passe seu post para cima e baixe o meu.


Abraço

Maurício Ayer disse...

Meu ponto não é nem pôr a culpa, Glauco, é entender o que acontece, o sentido que isso tem na vida dessa gente. Toda explicação é parcial, limitada, dá conta de um aspecto, mas não toca o cerne, que para mim permanece obscuro.

Anselmo disse...

acho uma pena a discussão cair pro lado da violência entre torcidas pq não é todo dia em que italo calvino vem socorrer o dia-a-dia do futebol brasileiro.

é mto assustador pôr fogo no ônibus, assassinar torcedor, suposta aliança entre torcidas de times...

mas no caso dos homens-bomba, existe uma finalidade (supostamente) político-ideológica. no caso do futebol, é bizarro, por mais paixões que o esporte desperte.

olavo disse...

Sobre o jogo: impressiona a qualidade desse Corinthians no jogar defensivamente. Foi assim contra o Santos, na final do Paulista. No primeiro jogo, a vitória construída rapidamente fez com que o time soubesse chamar o Santos para seu campo de maneira muito inteligente, e explorando bem os contra-ataques (o terceiro gol foi a prova disso). Ontem, a mesma coisa: o Vasco teve a posse de bola na maior parte do jogo, mas, se fosse para apostar em um gol, eu apostaria num gol paulista.

Sobre as torcidas: quem frequenta estádio e sabe como são essas pessoas sabe que a briga delas não tem o futebol como motivo. Não se faz isso por "paixão ao clube". E olha que nem tô caindo naquele juízo de valor maniqueísta e simplista que separa os "torcedores de verdade" dos "bandidos das organizadas". É muito mais simples. Acontece que esses caras têm amor pelas organizadas (e pelo que elas representam), e não pelo time que torce. Isso que explica, por exemplo, as frequentes brigas que Mancha e TUP têm no Parque Antarctica. Se fosse uma simples coisa de amar o Palmeiras, brigas desse tipo jamais aconteceriam.

Anônimo disse...

Só pra constar, a aliança entre Mancha Verde (Palmeiras) e Força Jovem (Vasco) é antiga e histórica, assim como entre Raça (Flamengo) e Gaviões (Corinthians). Já a Jovem (Flamengo) é aliada da Independente (São Paulo). Não por acaso, acontece de tudo quando Corinthians ou São Paulo jogam com o Flamengo no Maracanã, inclusive brigas entre as duas organizadas do Fla.

Em dois Flamengo x Palmeiras no Maracanã já recebi pedradas e bombas da Mancha Verde na minha direção (felizmente não fui atingido). E olha que não sou de torcida organizada, não ando com membros das mesmas e saio de perto quando aparecem. Naquele Flamengo 2x4 Palmeiras de estreia de Brasileiro (dois ou três anos atrás) em que o Edmundo arrasou, eu estava caminhando sozinho pro estádio quando passaram os ônibus da Mancha. Vestindo camisa do Fla, corri para longe, mas mesmo assim atiraram uma bomba na minha direção. Isso porque os ônibus estavam escoltados pela PM... (como parece que foi o caso ontem, aliás)

Por medo da violência, a maioria dos meus amigos abriu mão, há muito tempo, de um direito que para mim é dever e sagrado: ir ao estádio com a camisa do meu time.

Esse problema das torcidas é grave e concordo que ainda não foi compreendido. Contudo, devo dizer que, por mais que aconteçam brigas e barbaridades hoje (e devamos lamentar e repudiar episódios como os de ontem), a situação não é nem de perto tão braba quanto na primeira metade dos anos 1990. Ou estou errado?

Olavo Soares disse...

Sim, Rafael. Nisso eu concordo. O bicho hoje tá menos feio do que já foi.

Nicolau disse...

O Caio Ribeiro, esse príncipe das obviedades futebolísticas, usou o termo "frio" para se referir ao time do Corinthians. No sentido de calmo, tranquilo, seguro, concordo. A forma como o time toca a bola, controla o ritmo do jogo, não se desespera, é de deixar torcedor louco. Prova disso são o primeiro tempo do jogo contra o Vasco no Maracanã lotado, onde o Timão abafou e não deixou os cariocas jogarem, e a segunda do jogo de ontem, onde o time se isolou dos gritos da Fiel e fez seu jogo defensivo tão bem descrito e elogiado pelo Maurício.

Historinha: Hoje de manhã, na lanchonete perto de casa, um cliente palmeirense provocava um atendente corintiano. "Eu aposto dez caixas que o Inter ganha a final". O atendente topou, mas baixou a aposta para cinco caixas. "Que marca?", perguntou. O cliente respondeu: "Você vê aí o que você quer, pra mim é refrigerante". Lamentável a postura do rapaz. Alguém arrisca o palpite?

Nicolau disse...

Saiu o sorteio da CBF: primeiro jogo em São Paulo, dia 17/6, e o segundo em Porto Alegre, dia 1/7.

Glauco disse...

Ô, Nivaldo, o Fredi falou isso no post anterior...

Maurício Ayer disse...

Taí o Anselmo defendendo a classe dos homens-bomba. Valeu!

Leandro disse...

Sigo querendo saber porque os jogos seguem iniciando dez da madrugada se o "Biguibródi" já acabou faz tempo, felizmente.
Também quero saber porque o bestial Mano colocou na lateral esquerda o bom e jovem zagueiro Diego no lugar do mascarado e selecionado André Santos se os substitutos naturais seriam os verdadeiros laterais Saci (ruim, mas lateral, ao contrário do Diego, posto na fogueira) e Bruno Bertucci (garoto bastante promissor).
Sobre a atuação de ontem, se na maior parte do primeiro jogo parecia que o Corinthians estava no Pacaembu ou no Morumbi, em boa parte deste segundo jogo parecia que o Vasco estava no Maracanã ou no São Januário.
Jogando desse jeito, dando apagões e perdendo gols feitos na hora de definir, chego a temer que o Corinthians perca as duas partidas para o Inter com direito ao Nilmar repetindo contra os titulares o gol que fez nos juvenis. O consolo é que ouvi de quem viu o jogo do Inter que o temor é exatamente o mesmo em relação ao Corinthians se os colorados jogam como jogaram em Curitiba.