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domingo, fevereiro 07, 2010

Sobre enchentes nos dois lados do Atlântico

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Pouco tenho aparecido aqui no Futepoca, pois o mestrado aqui exige muito e futebol, só sei de ler as notícias depois de jogo, mesmo dos meus times São Paulo e Arsenal - piorado pelo fato de que a Premier Ligue não passa na TV aberta. (Se vocês quiserem encarar isso como desculpinha para eu não escrever sobre a derrota do São Paulo para o Santos tudo bem, estou preparada).

Em compensação, não paro de caçar notícias sobre São Paulo - a cidade. Tentar relacionar o conteúdo do curso, as experiências in loco e o que acontece aí desse lado do Atlântico é muito interessante, mas infelizmente tem sido desalentador. Não, pior. Desesperador.

A temporada de enchentes é, por óbvio, o que mais tem chamado a atenção. E uma série de informações que me chegaram nessa última semana fez com que eu ficasse com vontade de bater a cabeça na parede de raiva. Como não ia adiantar nada, resolvi escrever esse post.

Em primeiro lugar, vieram as declarações de gente do governo do estado de São Paulo dizendo mais besterias do que eu supunha ser possível. Elas foram sintetizadas nessa matéria da Isto É. Primeiro, em resposta a um relatório do Inpe alertando sobre o alto nível das represas de São Paulo, a Sabesp responde que, como não era possível prever o dia e a hora da chuva, não havia nada que pudesse ser feito. O companheiro Frédi já destacou essa bobagem.

Depois, imagino que em resposta à autora da matéria, o responsável direto pelo gerenciamento das barragens na região metropolitana da cidade de São Paulo, Hélio Castro, afirmou que “as chuvas foram excepcionais, mas não há garantias de que isso volte a ocorrer. Eu duvido que alguém sustente a afirmação de que essas chuvas excepcionais continuarão existindo”. Eu não sou especialista em mudanças climáticas, mas posso assegurar que todas as cidades grandes aqui da Europa estão se preparando para eventos climáticos mais extremos. Eu tenho a impressão de que elas não gastariam os milhões que vão gastar sem que o risco de fato exista. A resposta de Castro parece argumento de negacionista das mudanças ambientais. Feio!

A essas imbecilidades junta-se um seminário muito apropriado, organizado pelo meu curso, chamado "A Cidade Vulnerável". Três especialistas foram convidados para falar sobre a vulnerabilidade das cidades diante das... mudanças climáticas! E uma série de informações só confirmaram o que eu já intuía: com boa governança, as cidades sofrem consideravelmente menos com eventos extremos.

O caso de Londres é exemplar para nós, paulistanos. A cidade é bastante populosa - 7 milhões de pessoas - e também é inteirinha permeada por rios e córregos. Alex Nickson, gerente para adaptação às mudanças climáticas da prefeitura de Londres (na tradução da promoção), informou que por aqui nada menos do que 600 mil propriedades estão nas áreas alagáveis do Tâmisa e de seus afluentes. Tem enchente aqui? Tem, em média uma vez a cada dois anos. É grave? Bom, para os londrinos é o fim do mundo, mas para qualquer paulistano isso seria o paraíso para São Paulo. Morre gente? Acho que eu não preciso responder essa pergunta.

Mas o participante que mais chamou a minha atenção foi David Satterthwaite, pesquisador do International Institute for Environment and Development. Sua apresentação teve como título "Como se adaptar às mudanças climáticas com governos ineficazes". Ele faz parte de um time que estuda 16 cidades em países pobres, no que tange à adaptação - ou não - às mudanças climáticas. O Brasil não entra na lista, e inclusive Porto Alegre foi citada como um ótimo exemplo de cidade que consegue garantir acesso a àgua para todos.

Satterthwaite enfatizou que um sinal para saber se a cidade tem boa governança (conceito mais amplo que o de governo, é bom dizer) é ver quem são mais afetados por eventos extremos como secas inundações. Se todas as classes sociais são afetadas igualmente, a governança tende a ser boa. Afinal, porque diabos uma seca deixaria apenas os pobres sem água? E porque enchentes afetariam apenas as casas pobres localizadas em áreas de várzea?

O pesquisador disse, ainda, por que é tão difícil fazer com que os governos ajam em relação às catastrofes. Algumas das razões: falta de capacidade técnica; recusa de agir em bairros irregulares; dificuldade em convencer os governantes de que o quadro é sério; o fato de que a prevenção de uma tragédia não traz votos, já a recuperação depois de uma, sim.

Eu poderia discorrer por mais alguns parágrafos por questões interessantíssimas colocados nessa palestra, mas acho que eu já consegui ilustrar meu ponto. São Paulo sofre do todos os problemas citados acima. Mas esses problemas foram encontrados e listados em cidades pobres. E se tem uma coisa que São Paulo não é, é pobre. Tanto a cidade como o estado. Por que então a cada assunto abordado na palestra eu me contorcia na cadeira querendo gritar para o mundo que não, o problema não é falta de dinheiro?

Depois da palestra, tive a oportunidade de conversar com Satterthwaite durante um jantar. E quando eu lhe disse que São Paulo estava passando pelos mesmos problemas que ele havia apontado na palestra, sua primeira reação foi de desdém. Algo do tipo "é que você nunca viu ao vivo o que é uma enchente dessas numa cidade pobre". Quando eu disse que mais de 70 pessoas morreram por conta das chuvas, ele até se assustou. Nunca esperava que isso pudesse ocorrer no Brasil. Não por chute, mas porque ele trabalhou no Brasil já, conhece São Paulo, tinha contato direto com Paulo Teixeira durante a prefeitura da Marta. Cito uma frase. "Isso não deveria acontecer em São Paulo. A cidade tem especialistas, tem estrutura para evitar isso". E tem dinheiro.

Então por que isso não acontece? Por que as pessoas morrem? Evidente que a resposta mais geral é que nossos governantes paulistas não focam no que deveriam. Mas na prática isso se dá, por exemplo, em colocar em cargos importantes gente que não está preparada (para ser bem tucana em relação ao pessoal de gerenciamento das represas). Em privilegiar obras nas Marginais e tirar espaço das margens. Em concretar o rio. Em dizer que a culpa é de São Pedro. Em dizer que já combinou com Papai Noel que não vai chover mais. Em não ter um mapa atualizado de áreas de risco. Em negligenciar os casos de leptospirose depois das enchentes, provavelmente para mascarar as estatísticas.

Mais uma vez, eu poderia continuar por muitas linhas, mas não tenho nem vontade. O que acontece aí é tão triste que eu gostaria de poder simplesmente esquecer, para não entrar em crise. Por que eu estou aqui estudando para melhor entender São Paulo, mas cada pedacinho a mais que eu entendo, eu ganho mais um motivo para achar que temos cada vez menos saídas. Que as urnas nos ajudem, no final desse ano e depois em 2012.

(esse post ficou uma coisa meio terapia. Perdão pelo excesso de letrinhas)

ps: leio hoje, segunda 08/02, que os moradores do Jd. Romano foram reprimidos com gas pimenta durante manifestacao em frente a Prefeitura. Parece que as coisas ficam cada vez piores. A cada dia uma fronteira e ultrapassada, ate que todo mundo ache que todas as violencias que essas pessoas estao passando sao normais.

6 comentários:

Anselmo disse...

excelente.

de um lado, eu ponderaria que não deve ser fácil pra quem opera as barragens abrir a comporta em outubro, antes de as chuvas caírem. Vai que erram a previsão? Depois da catástrofe, não ter prestado atenção a uma previsão de fonte confiável, fica bem feio. Mas o debate avançou mais lá no post do fredi e a própria thalita explicou bem que a decisão é política.

e a sequência de enchentes e mortes e caos é mto surreal pra uma cidade como são paulo.

hoje, segunda-feira, 8 de fevereiro, completam-se dois meses que o jardim pantanal e jardim romano estão debaixo dágua. Por mais que seja uma área de várzea, como as casas estão lá há algum tempo, é difícil explicar por que o fato nunca ocorreu antes.

bizarro.

Thalita disse...

putz, Anselmo... ninguem pediu pra esvaziar muito. A questao e que no verao chove. Isso nao muda. E o El nino eh um fenomeno que permite um pouco de previsibilidade, ou seja, embora nao fosse possivel saber que ia ser o diluvio que esta sendo, jah dava pra ver que ia chover bem.

Glauco disse...

Post excelente, até pra gente sair do discurso circular e algo fatalista que corre pelas bandas de cá, com culpados como a prórpia população (leia-se os mais pobres) e São Pedro. Acho que o trecho "Isso não deveria acontecer em São Paulo. A cidade tem especialistas, tem estrutura para evitar isso" é definitivo, mesmo porque a imagem do país lá fora, pelo que diz a própria Thalita, é muito boa, e, quem diria, é São Paulo quem estraga com ela.

fredi disse...

Para mim, o mais importante do post, muito bom por sinal, é a parte em que se fala que se as tragédias afetam da mesma maneira todas as classes sociais há um bom gerenciamento.

Aqui, é exatamente o contrário.

Não queria usar a palavra, mas é verdadeiro genocídio com os mais pobres. Só eles morrem em "tragédias".

Estou com raiva, então as comparações serão toscas mesmo:
Para a empregada da madame possa lavar a calçada do prédio "varrendo" com água, o filho dela pode morrer na enchente ou por leptospirose.

Esse povo que administra não é incompetente, o que faz é opção mesmo.

E, depois, a culpa é de quem joga lixo na calçada. Esse povo é nojento.

Nicolau disse...

Excelente post, é preciso ter mais discussão qualificada sobre esses e outros temas. Sobre São Paulo, é realmente deprimente. Descaso total, preconceito, elitismo e sei lá mais o que. Dá realmente desgosto...

Marcão disse...

Matou a pau, Thalita. E o pior é que o (des)governo de S.Paulo, além de não ter diminuído o nível de água das represas antes das chuvas, de não ter escavado os rios para permitir mais vazão e fluxo contínuo dos afluentes e de não ter tomado medidas de urbanização, moradia e saneamento nas áreas de várzea e de alto risco, ainda passa DOIS MESES vendo tudo alagar, desabar e MATAR sem que tenha anunciado UMA MEDIDA SEQUER contra qualquer um desses problemas. E para a imprensa a culpa é da população porca. Ou da crise econômica mundial...