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sexta-feira, março 05, 2010

'Nunca fui muito de grupo'

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Chego ao escritório agora pela manhã e me deparo com a notícia da morte do músico, cantor e compositor Johnny Alf, aos 80 anos. Quando o entrevistei, há menos de dois anos, em Santo André (cidade na qual se recuperava em tratamento de câncer e onde veio a falecer), já notava-se que não teria muito tempo de vida. Mas o que mais me impressionou, na ocasião, foi o misto de tristeza, orgulho e resignação de seu olhar cansado e de suas respotas lacônicas. Ele sabia quem era, não precisava dizer.

Na época, Alf ensaiava com um maestro e um coral improvisado no auditório do Hospital Estadual Mário Covas, onde faria uma pequena apresentação com o também músico (e fã) Toquinho. Apareceu em uma cadeira de rodas, com um colete protetor (reproduzo acima imagem daquele dia feita pelo amigo fotógrafo Luciano Vicioni, do jornal ABCD Maior). Estava sereno, calmo, como quem achasse curioso que mesmo o espetáculo do próprio declínio despertasse a avidez da mídia e dos holofotes, coisas que haviam sido rotina em um passado muito longínquo. Na matéria que fiz depois para a Revista Fórum, contrapondo o sucesso e endeusamento de João Gilberto com o decadente ostracismo de seu amigo e ídolo Johnny, tentei passar um pouco daquela impressão que Alf me deixou. Quando perguntei se o fato de ter vindo trabalhar em São Paulo em 1955, pouco antes de a Bossa Nova explodir, poderia ter ofuscado sua importância histórica, respondeu:

“Não creio que houve um desencontro”, defende-se o artista, como se perdoasse, com uma dose de parcimônia, a curiosidade dos jovens que o cercam no auditório do hospital. “Eu achava o pessoal do Rio meio confuso e quando caí em São Paulo vi organização. Fiquei por aqui mesmo”, diz Alf, com simplicidade.

No livro "Chega de Saudade", de 1990, Ruy Castro diz que Ronaldo Bôscoli ainda tentou resgatar Johnny Alf para o movimento, como quando, no primeiro show oficial da turma, em maio de 1960, no Rio, o apresentou como alguém que fazia Bossa Nova "há dez anos". Mas a juventude presente ali na Faculdade de Arquitetura da Praia Vermelha queria mesmo era ouvir João Gilberto, daí explica-se que, segundo Castro, o desconhecido - e assustado - Alf tenha aparecido de porre (o que justifica o marcador "cachaça" neste post) e desafinado um pouco em sua tímida apresentação - o que não contribuiu em nada para sua aceitação. "Não me juntei com eles. O fato é que me chamavam, eu não ia lá. Nunca fui muito de grupo", justificou, quando o entrevistei.

Nas décadas seguintes, apesar do absoluto reconhecimento no cenário internacional e de ser unanimidade entre os colegas músicos, Alfredo José da Silva (esse era seu verdadeiro nome) seguiu uma trajetória discreta e excluída do consumo de massa. O que nunca vão dizer com todas as letras é que o fato de ser negro e homossexual contribuiu decisivamente para sua exclusão no mercado brasileiro. Um fato emblemático foi o escândalo provocado pelo disco "Nós", lançado pela EMI em 1974, em plena transição entre os truculentos governos dos generais Emílio Médici e Ernesto Geisel, em que Alf aparece na capa com uma roupa colorida e, ao fundo, caminhando em sua direção, um homem.

De qualquer forma, sinto agora uma espécie de "dever cumprido" por ter destacado sua importância, em uma revista de circulação nacional, antes das manjadas condolências que toda a mídia deverá prestar na hora de sua morte. E termino o post com o trecho de uma canção pouco conhecida de Vinicius de Moraes e Toquinho, de 1975, que fala de um solitário com o mesmo nome de batismo de Johnny Alf. E que descanse, finalmente, em paz.

Um homem chamado Alfredo

O meu vizinho do lado
Se matou de solidão
Abriu o gás, o coitado
O último gás do bujão
Porque ninguém o queria
Ninguém lhe dava atenção
Porque ninguém mais lhe abria
As portas do coração
Levou com ele seu louro
E um gato de estimação

Há tanta gente sozinha
Que a gente mal adivinha
Gente sem vez para amar
Gente sem mão para dar
Gente que basta um olhar
Quase nada
Gente com os olhos no chão
Sempre pedindo perdão
Gente que a gente não vê
Porque é quase nada


6 comentários:

Anselmo disse...

grande Johnny Alf. Há que se beber o morto.

só fiquei pensando que, se ele não se saiu bem na apresentação que fez a convite do Ronaldo Bôscoli por estar de porre, seria complicado mesmo participar de um grupo que tinha ébrios contumazes como Vinicius e Tom Jobim.

agora, escrevendo sério, excelente os tributos feitos em vida.

Glauco disse...

A matéria da Fórum já estava ótima, o post agora idem. Que descanse em paz.

Marcão disse...

Sobre a cachaça de Tom e Vinicius, tem esse post aqui:

http://www.futepoca.com.br/2008/01/o-sangue-s-corre-bem-quando-tem-bebida.html

Sobre a importância do morto, frase de Roberto Menescal:

- É uma perda muito grande. Há João Gilberto, havia o Tom Jobim e, acima de todos eles, estava Johnny Alf.

Leandro disse...

O "Bar da Praia", em Santos, SP, existe(iu) mesmo?
Se existe(iu), em que bairro está(eve)?

Glauco disse...

Leandro, o Bar da Praia existiu sim e ficava na praia do Gonzaga. Era um ambiente cult que contrastava com outros bares da região, e tocava-se lá jazz, bossa nova,MPB e quetais. Se não me engano, fechou na década de 90.

Inclusive o Caldeira, citado na letra de Johnny Alf, é o ex-dono, o musicista Eduardo Caldeira que recentemente abriu outro bar em Santos.

Leandro disse...

Glauco,
Gostei bastante do pouco que conheci da noite de Santos e região, e este Bar da Praia foi, sem dúvida, um lugar que eu gostaria de ter conhecido.
Como, infelizmente, não vai ser possível, quero compensar isso conhecendo o novo bar do Caldeira.
Então, como o assunto tem tudo a ver com o objeto do Blog, tomo a liberdade de sugerir uma postagem com mais informações deste novo ponto "cult-manguaça" praiano.