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segunda-feira, outubro 25, 2010

Do vinho e da verdade

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Nas últimas semanas, estive absorvido na elaboração de um livro sobre a pianista Cristina Ortiz, uma das maiores solistas do mundo. Fui visitá-la em sua casa de veraneio na região de Bordeaux, na França, e, em mais de 20 horas de entrevistas, gravadas neste computador, tive o privilégio de compartilhar com ela reflexões sobre tudo o que envolve a arte musical de concerto.

Seria muito tratá-la como um Pelé do piano, mas sem dúvida é algo assim como um Zico. Ou seja, alguém que, como muito poucos, conheceu cada detalhe de sua arte, magnetizou grandes plateias, venceu os maiores concursos, tocou ao lado das mais reputadas orquestras e dos melhores regentes nas principais salas de espetáculo dos cinco continentes. Suas palavras têm o lastro de quem esteve lá, viu, viveu, venceu, e nunca abriu concessões naquilo que é a razão de sua vida: a música.

Essa breve introdução é apenas um pano de fundo, que talvez explique a mim mesmo o quão sensível estive, durante aqueles dias na França, à verdade das coisas. Um elemento indispensável participou de minha intelecção: vinho farto e excelente. Conversávamos regados a vinho local, e quando uma garrafa chegava ao fim, quase que imediatamente eu era interpelado: “Acabou? Qual você quer abrir? Tem este de um chateau a dois quilômetros daqui, este outro quem faz é um amigo que me deu quando toquei lá em etc. etc.”. Tive a oportunidade rara de viver uma imersão no vinho, coisa que, pela tradição latina, é o mesmo que uma imersão na verdade. In vino veritas, diz o bordão. A verdade do próprio vinho, a verdade das coisas que o vinho traz à tona.

Pude, pela primeira vez, acompanhar com minha própria língua a abertura de um vinho. Há vinhos que abrem. Tem gente que prefere esperar que ele se abra antes de começar a degustá-lo. Mas eu, desavisado e ignorante, servi e logo dei minha talagada. Um amargor sanguíneo atiçou as regiões embaixo da língua, fez-me pensar em uma textura áspera. A luz da tarde incidia sobre a velha casa com delicadeza, estava linda, o que aumentava o contraste com meu paladar. Fui caminhando pelo gramado, sentindo a bebida afetar cada parte de meu corpo à medida que seu aroma se revelava com nitidez e ganhava espessura ao redor de mim.

Algo aconteceu. Não era ainda que eu o conhecia, mas sim uma sensação comparável a quando de repente se toca a pele da mulher que começa a se envolver no jogo de sedução. Como se o vinho, depois de apresentado a mim, me oferecesse algo que naquele momento era só nosso, e que me capturava para dentro dele.

Sorvi devagar, contornando a casa pelo jardim, e ao encher a boca e depois o peito, um sabor frutado e doce foi brotando de dentro do sangue. Eu, cada vez mais envolvido, vivendo o paradoxal sentimento de pisar mais firme sobre a terra e, a um só tempo, transcender a pele das coisas, me percebi amando o vinho, que se abria cada vez mais surpreendente, com um sabor claro, impactante e nuançado. Este encontro erótico durou ainda alguns minutos.


Sentindo a alma límpida, deixei o copo vazio descansar sobre um tronco e sai a caminhar. Uns passos além do portão e já se margeia os campos de vinhas, que ali estão, sem qualquer proteção de cercas ou muros. Bem próximo de mim, galhos pendiam ao peso dos cachos de uvas pretas de tão maduras. Tomei-as delicadamente nas mãos e constatei o óbvio. Como eu, qualquer um poderia arrancar e deliciar-se com aqueles frutos. No entanto, ninguém o faz, e a prova era aquele cacho em minha mão, frágil, desprotegido. Os vinhedos, que a princípio me pareceram feios e excessivamente disciplinados, com o sol quase horizontal transluziram, como um vitral de igreja ou caleidoscópio, tonalidades de vermelho amarelo e verde.

Devolver as uvas cuidadosamente ao seu lugar foi, para mim, participar do sagrado. E o sagrado, embora experienciado por cada um, só pode ser algo que se compartilha em irmandade. Tive a certeza de que, num lugar onde existe tamanho respeito por aquele elemento mágico que une a todos igualmente em torno de uma mesa para celebrar a comunhão promovida pelo que oferecem generosamente o sol, as chuvas, a terra e seus frutos, as pessoas sem dúvida podem olhar-se nos olhos com simplicidade e dizer o que pensam, sonham e desejam, sem recalcar sua própria casca de convívio num mundo de hipocrisia.

A verdade é, necessariamente, simples.

O olhar direto e cristalino, a palavra clara e o gesto indúbio são coisas que teremos que reconquistar na terra da cachaça, depois do pleito de 2010.

1 comentários:

Marcão disse...

Candidato ao texto mais bonito já produzido para o Futepoca. Volta a frisar que defendemos o consumo de bebida como afetividade, união e estímulo a projetos coletivos. Parabéns, Maurício, e reproduzo um trecho que merece:

"Devolver as uvas cuidadosamente ao seu lugar foi, para mim, participar do sagrado. E o sagrado, embora experienciado por cada um, só pode ser algo que se compartilha em irmandade. Tive a certeza de que, num lugar onde existe tamanho respeito por aquele elemento mágico que une a todos igualmente em torno de uma mesa para celebrar a comunhão promovida pelo que oferecem generosamente o sol, as chuvas, a terra e seus frutos, as pessoas sem dúvida podem olhar-se nos olhos com simplicidade e dizer o que pensam, sonham e desejam, sem recalcar sua própria casca de convívio num mundo de hipocrisia."

Bravo!