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quinta-feira, novembro 04, 2010

'É preciso criar o Partido dos Trabalhadores'

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Viciado em biografias, resolvi esta semana arriscar o "Nem vem que não tem - A vida e o veneno de Wilson Simonal", de Ricardo Alexandre (Editora Globo, 2009). E não me arrependi. Além de extremamente bem escrito e econômico, com uma pesquisa de dez anos muito completa, o livro cumpre até o fim o papel de esmiuçar a maior tragédia na vida do cantor, compositor, apresentador e showman Simonal: o nebuloso episódio em que teria mandado dois amigos seus, agentes do DOPS (um dos principais órgãos de repressão e tortura da ditadura militar), espancar e torturar um de seus ex-funcionários para que ele confessasse que desviava dinheiro. Pior de tudo é que, quando a vítima resolveu registrar a ocorrência em uma delegacia e a bomba estourou na imprensa, em agosto de 1971, Simonal achou que limparia a barra se acusasse o ex-funcionário de terrorista, em declaração oficial firmada no próprio DOPS. E nesse documento, inacreditavelmente, o artista assinou embaixo do seguinte texto:

"(...) QUE O DECLARANTE aqui comparece visto a confiança que deposita nos policiais aqui lotados e visto aqui cooperar com informações que levaram esta seção a desbaratar por diversas vezes movimentos subterrâneos subersivos no meio artístico; QUE O DECLARANTE quando da revolução de Março de Mil Novecentos e Setenta, digo Sessenta e Quatro aqui esteve oferecendo seus préstimos ao Inspetor José Pereira de Vasconcellos;"

Foi o suficiente para que Simonal fosse taxado para todo o sempre como o maior dedo-duro e informante da ditadura, o que arruinou sua (brilhante) carreira e, de maior astro nacional no final da década de 1960, campeão absoluto de venda de discos e de audiência televisiva, maior até do que Roberto Carlos e Elis Regina naquela época, único capaz de comandar um côro de 30 mil pessoas no Maracanazinho, de lançar discos nos EUA, Itália, Argentina, de dividir o palco com Sarah Vaughan e de representar oficialmente o país na Copa do México, com um prestígio igual ao de Pelé (foto acima), depois da pecha de dedo-duro, chegou a ser preso e foi banido do cenário artístico e isolado totalmente da TV e dos grandes centros urbanos entre 1975 e 1992, período em que mergulhou na depressão e no alcoolismo.

O livro procura mostrar que, de fato, Simonal tinha amigos no DOPS, policiais que costumavam fazer bicos de segurança para vários artistas. O famigerado Sérgio Paranhos Fleury, um dos torturadores mais notórios, chefiou a segurança dos artistas na TV Record e era chamado por Roberto Carlos de "Tio Sérgio". Simonal teria se aproximado de Mário Borges - policial acusado da tortura e morte de Stuart Angel, filho da estilista Zuzu Angel, e acusado em mais nove processos semelhantes daquele período - ao ser chamado ao DOPS, em 1969, para explicar a presença de uma bandeira da então União Soviética no cenário do show "De Cabral a Simonal". Depois disso, Borges e outros asseclas passaram a fazer bicos para o cantor/compositor. Nada leva a crer que, de fato, ele fosse informante do órgão repressor.

Mas o poder que obteve e a suprema arrogância de achar que, naquele momento, podia fazer o que bem entendesse, o levou a usar policiais para "dar uma prensa" num ex-funcionário, dentro de um órgão público, e, pior de tudo, achou que se mentisse declarando que era "ajudante" do DOPS, o governo militar livraria sua cara. Foi o beijo da morte. Longe de querer inocentar Simonal, o autor do livro condena essas suas atitudes mas pondera que, junto com a fama de "dedo-duro", o "linchamento" público do artista também foi impulsionado pelo seu poder, sua arrogância, como se dissessem "tá na hora de acabar com esse negro insolente de uma vez por todas". A classe artística se esqueceu que ele teve a coragem de se solidarizar, em seu programa de TV, ao vivo, com os atores da peça de teatro "Roda Viva", espancados em 1968. Só se lembraram de suas músicas ufanistas, "Brasil, eu fico", "País tropical" etc (todas de autoria do "bonzinho" Jorge Ben). Mário Borges, o torturador, foi inocentado. Simonal escapou da cadeia, mas "morreu em vida".

Curioso é que, sem entender muito de política e sempre querendo evitar se envolver com isso, o ex-favelado Simonal declararia, em 1979, um ano antes de Luiz Inácio Lula da Silva comandar a fundação do PT:

"O MDB e a Arena são uma farsa, é preciso criar o Partido dos Trabalhadores."

Mas aí ninguém mais lembrava que ele existia. Há um documentário que foi lançado ao mesmo tempo que o livro, "Ninguém sabe o duro que eu dei". Achei um trailler, em que até o Pelé dá seu pitaco:

6 comentários:

Azarias disse...

Necessário que se faça o Partido dos Trabalhadores. Esta frase o Golbery, eminencia parda do regime, soltava a todo o momento na imprensa. A Abertura já estava sendo costura antes da entrada da década de 80. Vai ver que o Simonal para agradar, repetiu-a.

Mauro Silva disse...

Prezados
Quem levantou em coro uníssono o Maracanãzinho foi Geraldo Vandré, banido pela ditadura militar e, depois, pela midiática.

Marcão disse...

Sim, Mauro, o Vandré cantou e o povão cantou junto, em 1968. Mas, em 1969, o Simonal foi além, "dividindo" o público em três partes para que cada um cantasse uma coisa, dizendo mais ou menos "agora os dez mil daqui, agora só os dez mil de lá, agora os dez mil dali" - e, espantosamente, sendo obedecido e incendiando o recinto.

O livro também fala da exclusão de Vandré, a partir do reposicionamento do "tabuleiro" musical brasileiro ali no início dos anos 1970, que isolou gente como ele e o Simonal e alçou para a glória eterna Gil e Caetano, entre outros.

Interessante é que, quando Simonal estava para morrer, Vandré apareceu de surpresa para visitá-lo no hospital. O livro traz uma foto desse encontro histórico entre os "excluídos".

Bárbara disse...

Eu não li o livro, mas pelo que li sobre o livro (e o filme) o ostracismo do Simonal aconteceu sem que tivesse sido articulado intencionalmente entre quem quer que fosse.

Eu, pessoalmente, se fosse artista na época, ia querer distância e não ia aceitar participar de nada ao lado dele. Por segurança. Tem um monte de gente sendo presa, torturada, morta, exilada, e eu vou arriscar que o cara só dizia da boca pra fora que era dedo-duro, mas na verdade não era?

Ao invés de redimi-lo, eu prefiro dizer "o cara era um filho da puta, mas o filho da puta sabia fazer música, hein?"

Glauco disse...

Concordo com a Barbara. O resgate artístico do Simonal vale muito a pena, mas peralá. Vi o documentário e achei que era praticamente uma comprovação de tese que vitimiza o Simonal, alvejado e isolado pelos "artistas-intelectuais de esquerda". Como se fossem eles os donos de gravadoras ou dos veículos de comunicação è época. A grande maiores desses donos, aliás, apoiadores da ditadura...

Exemplos de artistas que chegam ao auge e depois vão para o ostracismo existem inúmeros. Mudam os interesses comerciais, a pessoa entra em decadência porque é suplantada por outras, a produção artística cai. E, no caso específico, alguém que tem seguranças que trabalham pro regime militar, manda capangas espancarem um contador e ainda confessa ser um delator, não parece ser das figuras que você chama pra tomar uma cerveja no bar, ainda mais naquela época.

Mauro Silva disse...

Caros
Correu boato que Erlon Chaves, muito amigo de Simonal, teria entrado em depressão até a morte depois do episódio e muitos artistas atribuiram isso (ele era adorado no meio, além de grande arranjador) ao Simonal.
Onde estaria a verdade?
O "pobrema" é que o cara admitiu ser informante, quando todos sabiamos que muita gente sumia do nada pela ação desses.
Fica difícil inocentá-lo, sequer perdoá-lo por isso.
Foi lorota?
Até provar que focinho de porco não é tomada .....
Quanto a "regência" da platéia no Maracananzinho, observada pelo Marcão, não se compara à final do FIC-68: o público acompanhou Vandré (ele e seu violão) como se cantasse um hino nacional. Impressionante! Tanto que sumiram com as imagens.