Destaques

domingo, dezembro 26, 2010

Na cachaça, a amizade e o amor incondicionais

Compartilhe no Twitter
Compartilhe no Facebook

Na ficção "Incidente em Antares" (Editora Glôbo, 1971), do gaúcho Érico Veríssimo, sete defuntos que são impedidos de serem sepultados por uma greve geral que abrange também os coveiros se levantam dos caixões e, em protesto contra os "maus tratos", retornam para assombrar e empestear a cidade com seus aspectos hediondos e o odor insuportável. Cada um deles tem suas contas a ajustar: o advogado flagra a esposa com outro na cama e vai ao cartório para fazer uma mutreta; a matriarca milionária surpreende as filhas e os genros discutindo com violência sobre a partilha de jóias que ela pedira para ser enterrada com elas; o maestro fracassado que cortou os pulsos volta à casa de solteirão para finalmente executar a sonata que não conseguira décadas antes, em público; o militante que morreu torturado pela polícia vai conversar com um padre progressista para tratar da emigração de sua esposa grávida; a anciã e ex-prostituta retorna à sua moradia miserável para consolar a amiga e colega de profissão; o sapateiro anarquista vai à delegacia atazanar o truculento torturador do município. O único que não tem rancor ou assuntos urgentes é Pudim de Cachaça, o bêbado que, mesmo tendo sido envenenado pela esposa, que não aguentava mais seus porres e agressões, vai procurar apenas seu melhor amigo e companheiro de copo, um tal de Alambique.

"Alambique espanta as môscas que voejam também em tôrno da sua cabeça, pega o violão e começa a tocar uns ponteios. O morto pergunta:

- Escuta aqui... é verdade mesmo que a Natalina botou veneno na minha comida?

- É. Confessou.

- Não teria sido invenção da polícia?

- Não. Falei com ela. Não nega que te matou de propósito.

- Coitada! Não está arrependida?

- Não sei. Mas não me pareceu.

- E agora? Será que vai pegar muitos anos de cadeia?

- Ora, menino, isso depende de muita coisa. Do discurso do promotor. Do advogado dela. Dos jurados. Toma alguma coisa!

Alambique ergue-se e, meio cambaleante, vai até a prateleira do botequim, por trás do balcão, segura uma garrafa de cachaça e volta com ela para a mesa.

- Estamos de donos desta joça. Quando te viu, o Quincas ficou branco como papel e botou o pé no mundo. Hoje podemos beber de graça. Quem sabe aceitas um vinho... ou um licorzinho?

Pudim belisca, distraído, as cordas do violão do amigo.

- Onde está a Natalina?

- Na cadeia municipal. Onde mais?

Pudim de Cachaça passa a mão pelo estômago, quase numa carícia.

- Escuta aqui, Alambique... E se a gente hoje de noite fôsse fazer uma serenata pra ela?"

2 comentários:

Maurício Ayer disse...

Grande lembrança, Marcão, este romance é excepcional.

Anselmo disse...

alambique e pudim de cachaça... duas alcunhas quase nada reveladoras.