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sexta-feira, agosto 05, 2011

“Vai cair a educação de Pinochet”

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Em um painel publicitário do metrô de Santiago, Chile, os lindos olhos de uma mãe querem expressar toda a preocupação revelada pelo texto logo abaixo: “EU MORRO se meus filhos não puderem continuar estudando”. Em seguida, sugere-se ao cidadão que contrate um seguro: “O negócio mais importante de sua vida”. Por fora dos tubos que percorrem as entranhas da cidade, milhares de estudantes e professores saíram às ruas para defender uma outra proposta para se garantir a educação dos jovens chilenos.

E foram recebidos com bombas de gás lacrimogêneo e jatos d’água. Os conflitos nas ruas em torno da reforma da Educação no Chile já duram meses e tiveram um primeiro ápice no final de junho, quando as passeatas reuniram mais de 400 mil pessoas, o que resultou na queda do então ministro da Educação, Joaquín Lavín, dias depois. Com uma nova proposta em que cedem em vários pontos ao movimento estudantil, o governo declarou que “o tempo das marchas se acabou”, mas estudantes e professores discordam e marcaram duas grandes passeatas “não autorizadas” para a quinta-feira, 4 de agosto, uma de secundaristas outra de universitários. Ao final do dia havia 874 manifestantes presos e cerca de 30 feridos.

Pelo que afirma o movimento estudantil, o governo do presidente Sebastian Piñera está mais alinhado com a mamãe preocupada da publicidade. As diversas propostas do então ministro Lavín, que é um grande empresário da área de educação, mais reforçavam que reformavam o perverso sistema educacional chileno. Com leis escritas num gabinete de Pinochet e impostas no início dos anos 80, o sistema não apenas tornou pagas (e caras) as universidades públicas como criou uma série de repasses estatais ao sistema privado. Mesmo sendo o lucro ilegal para as instituições privadas, mecanismos simples permitem aos proprietários lucrar e muito. Para citar um exemplo recorrente, o reitor muitas vezes é também dono do prédio onde está a faculdade e o aluga à instituição.

A pedra fundamental da “reforma” de Lavín era um plano que levaria 70 mil bolsas de estudo a secundaristas, repassadas às instituições. Algumas faculdades privadas já haviam começado a oferecer “benefícios” como vales transportes para que os bolsistas as prefiram e assim possam incorporar o investimento público às suas receitas. Como era parte diretamente interessada (nos lucros), estudantes e professores recusaram o ministro como interlocutor, o que levou a sua queda.

As 21 propostas apresentadas pelo governo nesta segunda procuram incorporar exigências do movimento. Os manifestantes consideraram entretanto que o governo não toca no fundamental – a mercantilização da educação – e convocaram as passeatas para um dia antes do prazo que teriam para dar uma resposta. Declaração de Camila Vallejo, presidente da Federação dos Estudantes da Universidade do Chile, foi retomada por muitos: “é mais do mesmo com uns pesos a mais”. Para se ter uma ideia, hoje é possível que uma universidade que não siga padrões mínimos de qualidade definidos pelo Ministério sigam funcionando; a ideia é deixar que os “consumidores” terminem por escolher as melhores e que o mercado trate de eliminar as piores. Há então hoje universidades “acreditadas” e “não-acreditadas”, todas elas autorizadas a funcionar.


As manifestações foram duramente reprimidas em todo o país. Tropas de carabineros realizaram verdadeiras operações de guerra para abafar o movimento; preparados, os manifestantes armaram-se de celulares para contra-atacar pelo Twitter e bexigas com tinta colorida para pintar o arsenal dos pacos. Para o governo, a decisão de dar uma “prova de força” pela força das armas se mostrou uma catástrofe política. A aprovação a Piñera caiu ao nível mais baixo já alcançado por um presidente desde que se começou a medição, há 20 anos, atingindo menos que 30%; pela repressão desmesurada, os estudantes agora pedem a renúncia do ministro do Interior, Hinzpeter.

As reformas



Carteiras e cadeiras enganchadas nas grades das escolas indicam adesão aos protestos. Foto: El Post.




Nos últimos dias, estive em Santiago, Valparaíso e La Serena (no norte do país), e o que se observa é uma impressionante coesão das escolas e universidades em torno do movimento. As escolas de ensino médio trazem carteiras enganchadas nas grades externas, como forma de dar a ver a adesão à paralisação, e as universidades trazem grandes faixas com dizeres como “Isso não é uma brincadeira” ou “Universidade pública e gratuita”.

O que exigem os estudantes e professores não é pouca coisa: querem retomar o sentido da educação pública que havia no período pré-Pinochet. E a resposta da sociedade foi impressionante, tornando-o “mais que um movimento estudantil, um movimento cidadão”, segundo as palavras da líder estudantil Vallejo.


Na raiz das reivindicações está a exigência de reforma do texto constitucional para que a Educação seja declarada como “direito e bem público, sendo o Estado responsável por provê-la assegurando gratuidade e qualidade geral”. A subvenção do governo, dizem os estudantes, deve ser feita às instituições públicas por meio de incremento no orçamento e não como “assistência” – isto é, de forma marginal e complementar por meio de bolsas de estudo, como é a proposta do governo. As escolas devem ser administradas publicamente e ligadas diretamente ao Ministério (hoje muitas são geridas por agências ligadas aos municípios), e todas as universidades devem seguir padrões que permitam sua acreditação. Entre outros pontos.

A síntese se ouvia como grito de guerra pelas ruas de Santiago: “Se va a caer / se va caer / la educación de Pinochet”.

Bombas, jatos d’água e o delicado retinir das panelas


Foto: Maurício Ayer 

Por volta das 18h cheguei à Praça Itália, local de onde tradicionalmente saem as marchas de protesto pela Alameda, principal avenida da cidade. A presença militar era fortíssima, com uma quantidade enorme de soldados, e também de caminhões e viaturas blindadas e de todos os tamanhos. Todas as áreas foram cercadas com grades, oficiais falavam em rádios constantemente, como se aguardassem na trincheira a investida de um exército.

Estive em vários pontos do centro durante a tarde e, como sobra dos confrontos da manhã com os secundaristas, toda a região recendia a gás lacrimogêneo. Várias viaturas estavam pintadas de manchas coloridas, marcas das tintas jogadas pelos estudantes nos protestos. Em frente à Universidade de Santiago, pedras e paus cobrem as ruas, e o acesso ao metrô estava bastante dificultado.

Chegando o horário marcado, 18h30, via-se que estudantes começavam a aceder ao redor das áreas cercadas, os policiais trataram de tirar-nos das calçadas para as ruas, restando uma única área em que estudantes e imprensa não disputavam espaço com os carros. Os policiais pediam que saíssemos: “Por favor, caminen hacia allá” (por favor, andem para lá). Diante de tamanha delicadeza, um homem que preferia permanecer no seu lugar contestou um fleumático “no gracias”. A policial mais próxima parou um segundo, mas seguiu coagindo a que todos se movessem.

Tudo permanecia tranquilo, não se viam maiores sinais de agressividade de nenhuma parte. De repente, sem qualquer aviso, um caminhão parado no canto da praça disparou um potente jato d’água que derrubou alguns manifestantes que permaneciam parados diante de uma linha de carabineiros. Um jipe blindado passou em seguida soltando uma nuvem de gás. A polícia montada criava outra linha, encurralando ainda mais os estudantes, que instados pela repressão acenderam os protestos. Estudantes cantavam e produziam uma infinidade de imagens – que fez que as manifestações chegassem ao topo mundial do Twitter. 

A um ritmo regular, cada par de minutos a polícia avançava com novas ações de coação. Os cavalos adiantaram-se um corpo, causando grande tumulto. Aí vieram as bombas. A multidão escapou pelo canal de vazão deixado pela polícia, para o qual a impulsionava. As entradas do metrô estava todas fechadas. E dá-lhe bomba de gás, por trás vinha o caminhão mandando água pra cima dos garotos. Pernas pra que te quero.

À meia-noite, quando terminava de escrever este post, ainda se ouviam panelas retinindo nas janelas e sacadas dos prédios ao redor do bairro de Las Condes, e pelo site El Mostrador se via ao vivo que o panelaço soava por todo o país como signo de repúdio à repressão. Repressão que tratou de fortalecer o movimento, que agora, mais que nunca, coloca o governo contra a parede.

3 comentários:

Olavo Soares disse...

Mauricio, até que ponto as redes sociais foram preponderantes nessa onda chilena de manifestações?

Moriti disse...

Beleza de texto, Maurício. Reportagem das boas. Mostra bem a disposição histórica dos chilenos - ou pelo menos de boa parte deles - em brigar pelo interesse público.

Por aqui, certo Paulo Renato fez movimento parecido com o de Lavín,formulando propostas que atendiam aos interesses dele no "mercado" da Educação.

Maurício Ayer disse...

Opa Olavo, acho que as redes sociais não tiveram um grande papel, são manifestações mais clássicas. O que sem dúvida é de nosso tempo é que rapidamente as imagens circulam pelo mundo. E os estudantes sabem muito bem que esta é uma das principais armas: a repressão hoje tem que enfrentar as imagens, o que lhe dificultou a vida. Repressão só funciona bem na sombra.

Salve Moriti. Imagine um tipo que chegue ao governo uns 25 anos depois de o Paulo Renato ter feito o seu trabalho... pois esse era o lugar do Lavín. Seu papel histórico foi o de acender o movimento estudantil chileno.

A parte tudo isso, recomendo uma busca para se ver Camila Vallejo: é uma deusa comunista.