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terça-feira, fevereiro 28, 2012

Insustentável

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Por Daniel Soares



João entrou no bar pisando duro, mãos nos bolsos das calças, camisa para fora delas. O colarinho devia estar desajeitado havia horas e o usual arrumadinho João não parecia se importar.

— Uma cachaça!

Vavá se impressionou, João não era homem de cachaça pelo menos até a quarta, quinta cerveja, quando outro João assumia o controle da cabeça.

— Certeza?

O olhar. Vavá se lembraria por meses, dormiria mal. Tanto peso, tanto desgosto num só olhar. Serviu a Velho Barreiro como quem servia sangue. E com Stanheger!!

João bebeu às sorvidinhas longas, bebia pouco por vez, mas inalava muito do vapor medonho da pinga. Todos no bar olhavam para ele, um jogo de sinuca parara no meio, duas discussões, a TV havia sido desligada.

— Um torresmo!

Vavá hesitou, João estava sempre preocupado com o colesterol.

— Mas... e o coração, o fígado?

Dessa vez não era o olhar que o destruía, mas sim uma certa pressão nos lábios. Tanto ressentimento! Nem o divórcio, nem sua mãe cheia de rancor por ter largado a faculdade décadas atrás, não sentira tanto desgosto nunca! Serviu o torresmo num papel grosso, que automaticamente se tornou transparente. João mordeu com mandíbulas que podiam cortar aço. Aquele homem que normalmente estaria elogiando as fotos dos filhos de alguém mais bêbado, que tinha dó de ganhar dos mais ferrados na sinuca apostada. Aquele homem que já dividira o prêmio do bicho com os amigos!

— Muito seco...

Todos esperaram, ninguém ousara se mover.

— Passa no óleo Liza pra mim, Vavá...

Olhos se arregalaram pelo bar. O João! No Lisa! Ninguém acreditava. Vavá já não ousava contrariar, mas se contorcia por dentro, não entendendo o ocorrido. Pegou a lata de óleo, trêmulo, despejou um bocado numa bandejinha vazia da estufa. Sentiu de longe o cheiro da gordura.

Todos observavam, alguns levantaram devagar das mesas e se puseram a olhar com mais atenção. Um no fundo fazia um sinal da cruz, lentamente, para que João não percebesse. João pegou o torresmo, descartara o papel, esfregou por todo o decorrer da bandeja. Enquanto sua mão subia, duas gotas de óleo caíram no balcão, fazendo tremer o chão do bar do Vavá. O torresmo alcançou a altura dos lábios. Paulão quis gritar, mas um outro o impediu por medo. João mordeu e mastigou devagar, beiços brilhando, óleo escorrendo pelo canto da boca. Virou a cachaça de um gole só.

Ele se levantou, todos se encolheram nas cadeiras. Foi até perto da mesa de sinuca, pegou um taco, ajeitou as bolas no veludo verde. O olhar destruidor foi quem convocou um pobre coitado para o jogo. João esfregou o giz leeeentamente, não se sabe se saboreava cada movimento ou se amaldiçoava cada milissegundo do universo. O outro engolia em seco como se fosse jogar na encruzilhada pela própria alma contra o diabo. E nem sabia o que ganharia se vencesse! Num “plá!” vigoroso João estourou as bolas. Encaçapou duas.

Todos olharam ao mesmo tempo, enquanto João continuava debruçado sobre a mesa de sinuca, como um soldado insano que admirasse a fumacinha saindo da ponta do rifle. O adversário sentia as mãos suarem, tremerem.

João era, pasmem, um sujeito baixinho, todo arrumadinho, usava óculos e era um príncipe entre os homens. Mal se reconhecia João naquela pilha de terror que jogava sinuca com hálito de óleo, pinga e desgraça. Uma parte de todo mundo ali pensava “ah! É só o João! Tome tento!”. Mas essa parte ficava quieta quando o homem dava seu olhar de morte para todos de vez em quando. Em minutos, o jogo de sinuca já havia virado massacre. Mané, o adversário, suava nas palmas, na testa e na alma. “João vai me matar!”

Depois de vencida a partida, João deixou o taco de lado e foi para o fundo do bar, onde uma Jukebox mais velha que Oscar Niemeyer se encontrava encostada desde antes da puberdade de Noé. João fuçou atrás dela e encontrou o fio da tomada. Ninguém ousou se mexer enquanto ele ligava a dita cuja. Fuçou por uns instantes, aprendeu a mexer na máquina e colocou Chico Buarque para tocar. Vai trabalhar, vagabundo!

Ele olhou pela sala em busca de alguma reclamação. Nada. Ouviu a música inteira encostado na máquina, olhando para lugar nenhum com seus olhos de morte certa. Quando a canção terminou, puxou o fio da tomada com força, olhou de novo para o pessoal.

— Casada.

Ninguém ouviu direito. Todos se levantaram um pouco e penderam na direção dele para entender melhor.

— Casada!!! É casada!!! Porra!!!

Ninguém tinha coragem de retrucar. João era puro descontentamento, pura raiva na figura de um baixinho vestido de social. Foi o Mané quem levantou a mão devagar para chamar a atenção e falou, ombros encolhidos, taco de sinuca ainda na mão.

— Você também, né, João?

João o encarou com o olhar mais pasmo que se podia imaginar naquela noite. Dez anos de casamento pareceram uma novidade tremenda por um instante. Olhou para o Vavá detrás do balcão com um olhar de ódio que podia bem dar gastrite em alguém.

— Outra cachaça!!!


Daniel Soares é manguaça, nerd gordo e co-autor do blog A Horda, além de prolixo colecionador de histórias insanas de transporte coletivo, bares suspeitos e noites de insônia na internet.

4 comentários:

Glauco disse...

Excelente, Daniel!

Anne disse...

Muito bom. Nem sei dizer do que gosto mais.

Nicolau disse...

A história do Liza é baseada em fatos reais, hehe. Valeu, mano!

Daniel disse...

Valeu mesmo pelos elogios, galera! Torresmo para todos! haha! Se eu aparecer com mais histórias de manguaças eu aviso.