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terça-feira, abril 08, 2014

Futebol é esporte aquático?

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Com o São Paulo afundando, treinador recorre a equipamento de mergulho...





segunda-feira, abril 07, 2014

A história de José Leandro Andrade, o primeiro ídolo internacional negro do futebol - Futebol Sem Racismo

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“Foi negro, sul-americano e pobre, o primeiro ídolo do futebol internacional”.

Era assim que o escritor uruguaio Eduardo Galeano se referia, em Futebol ao Sol e à Sombra, ao seu conterrâneo, José Leandro Andrade, campeão olímpico em 1924 e 1928 e campeão mundial na primeira Copa em 1930. Muito antes dos brasileiros, que deram ao mundo alguns dos maiores jogadores da História – a maioria negros e mestiços – o meia platino apresentou aos países vizinhos e ao Velho Mundo uma nova forma de praticar o futebol.
Homenagem a Andrade no Museu do Centenário (Montevidéu)

Nascido em 1901 na cidade de Salto, no Uruguai, Andrade era filho de uma argentina com um brasileiro, que não participou de sua criação. Aliás, o pai do atleta havia fugido do Brasil ainda como escravo e teria, na época do nascimento de seu filho, incríveis 98 anos. Mudou-se ainda jovem para o bairro de Palermo, em  Montevidéu, onde passou a viver com uma tia. Trabalhou como engraxate, vendedor de jornais e começou a tocar tamborim, apaixonado que se tornou pelo carnaval. Sim, a festa não é exclusividade dos brasileiros.

Com 1,80 m de altura e 79kg, seu porte lhe dava uma vantagem sobre os concorrentes. Aliado ao físico privilegiado, sua técnica o fez se destacar em sua primeira equipe, o Misiones. O primeiro contrato profissional foi no então forte Bella Vistal, onde atuou como meia direita. Sob as bênçãos do companheiro de time José Nasazzi, mítico capitão da primeira seleção campeã mundial, passou a ser convocado para a seleção uruguaia.

Após suas aparições nos Jogos Olímpicos de Paris e de Amsterdã, Andrade foi celebrado na Europa como o "jogador de futebol com os pés de ouro". Na Inglaterra, pátria do futebol e país mais importante do ludopédio até então, o atleta foi chamado de "o maior de todos os grandes uruguaios", por conta de suas façanhas olímpicas.

O lendário jogador alemão Richard Hofmann descrevia Andrade desta forma: “O Uruguai era então o melhor time do mundo. Sua estrela era Andrade. Um artista futebol que poderia simplesmente fazer qualquer coisa com a bola. Era um cara alto, com movimentos elásticos, que sempre preferia o jogo direto, elegante , sem contato físico e estava sempre à frente com seus movimentos e sua agilidade mental. Andrade era um jogador visivelmente justo. Nunca imitava os interlúdios teatrais de seus companheiros de equipe, que rolavam no chão depois de faltas, a fim de conseguir uma vantagem com os árbitros. Mesmo durante amistosos, Andrade sempre irradiou sorrisos”.
 

Contudo, após um choque com a trave em uma das partidas disputadas nos Jogos de Paris, Andrade começou a ter problemas de visão, que avançaram pouco a pouco. Mesmo assim, disputou a Copa de 1930 e integrou a seleção dos melhores do Mundial. Ali, quem ainda não o conhecia passou a apreciar o futebol daquele que foi apelidado de “A Maravilha Negra”.

Depois da Copa, atuou na Argentina, por Atlanta e Lanús, no Wanderers de Montevidéu e se aposentou pelo Argentinos Juniors. A partir daí, enquanto seu companheiros de seleção conseguiram encontrar outras ocupações, Andrade não achou mais nenhum emprego fixo, e sua vida entrou em declive. 

Em 1956, o jornalista germânico Fritz Hack viajou ao Uruguai para encontrá-lo e, depois de três dias de busca, o encontrou em um sótão, alcoolizado e quase cego por conta do choque ocorrido em Paris. Pouco tempo depois, aos 56 anos, José Leandro Andrade faleceu e seus pertences se resumiam àquela altura a uma caixa de sapatos com medalhas, além de alguns troféus. 

Teve ainda um sobrinho, Victor Rodríguez Andrade, campeão mundial com a seleção uruguaia na Copa de 1950.


O caso Adelir tem a ver com todos nós

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Em uma decisão aparentemente inédita no Brasil, a Justiça obrigou uma grávida, Adelir Góes, a realizar uma cesariana contra sua vontade. O pedido foi realizado por duas médicas obstetras do Hospital Nossa Senhora dos Navegantes, no município de Torres (RS) e acatado pela juíza Liliane Mog da Silva. Adelir aceitou ser conduzida à cirurgia depois de ouvir que seu marido seria preso caso ela resistisse.


1 – Contexto – sistema obstétrico brasileiro, uma jabuticaba podre

Para entender de fato o que aconteceu, é preciso conhecer os meandros do sistema obstétrico brasileiro, líder mundial em número de cesarianas. Não é uma narrativa fácil pois envolve uma multiplicidade de atores, cada um com seus motivos e, principalmente, suas contradições. O que apresento agora é um resumo esquemático, usando o caso Adelir como guia, sem pretensão de esgotar o assunto.
Adelir, 29 anos, já havia passado por outras três gestações. Uma terminou em um aborto espontâneo e as outras duas em cirurgias cesarianas. Dada a fragilidade de Adelir no momento, as circunstâncias desses partos ainda não são conhecidas do grande público. Depois da segunda cesariana, ela ouviu do médico que uma terceira cirurgia seria muito arriscada. Engravidou novamente por um erro no uso da pílula.

O relato usual de mulheres que fizeram cesarianas mesmo querendo parto normal, no entanto, costuma ser bastante semelhante. O meu, inclusive. Ainda que não haja complicações aparentes, os obstetras começam a afirmar, normalmente a partir de 30 semanas de gestação, que um parto normal está saindo de cena, por motivos mil. Alguns dos mais comuns são cordão umbilical enrolado no pescoço (falso), cabeça muito grande do bebê, mais precisamente desproporção cefalo-pélvica (existente, porém diagnosticada apenas em pleno trabalho de parto), pouco líquido amniótico (pode vir a ser um problema, mas na maior parte dos casos o problema é resolvido com a ingestão de muito líquido, não com uma cirurgia), mais de 40 semanas de gestação (falso), idade materna avançada, a partir de 35 anos (falso), gestação de gêmeos (falso) e muitos outros, listados aqui.

No meu caso, a obstetra tentou jogar a ficha da desproporção cefalo-pélvica. Fiz cara de paisagem. Na minha cabeça, ficar em casa esperando o trabalho de parto evoluir resolveria minha situação. Com 38 semanas, a bomba: a ultrassonografia havia mostrado que minha placenta estava “envelhecida”, ou seja, passando poucos nutrientes para o bebê. Essa motivação para a cesariana eu não conhecia. Numa cidade nova, sem ter para quem pedir indicações de obstetras confiáveis (eu ainda confiava na minha) para uma segunda opinião, simplesmente chorei e aceitei. Depois descobri que esse motivo para a cirurgia é bastante duvidoso. Mas só depois. Há casos muitíssimo piores de coação para uma cesariana. Essa página do Facebook lista histórias de mulheres que passaram por isso.

As razões para essa situação são múltiplas e provavelmente não todas conhecidas. Entre elas estão a falha da formação de médicos, que não encaram, ainda na faculdade, o parto como um evento fisiológico, mas como um processo médico, sempre (foco no sempre) passível de intervenções. Outro problema é a forma como o pré-natal é feito, especialmente no sistema de saúde privado. A grávida escolhe um médico para acompanhá-la durante a gravidez e é esse médico que, via de regra, fará o seu parto. O problema desse esquema é a dificuldade de conciliação da agenda de consultório com trabalhos de parto longos. Desde o início das contrações, a mulher pode passar dias até entrar em franco trabalho de parto. Mesmo que o médico mobilize-se apenas quando as contrações passam a ser ritmadas e em intervalos curtos, o tempo até o parto propriamente dito não raro chega às 24 horas. Isso traz um problema quase insolúvel para o médico. Não falo aqui nem de ganância (existente, fato), mas de respeito com as outras pacientes. Se a cada parto o médico for obrigado a desmarcar toda a agenda, o sistema não anda.

Claro que a solução encontrada aqui no Brasil é a pior de todas: agendamento rotineiro de cesarianas fora do trabalho de parto, um desastre de proporções gigantescas. O que deveria acontecer era, em gestações saudáveis – a ampla maioria – um parto assistido por obstetrizes (profissional com ensino superior em Obstetrícia), enfermeiras especializadas ou mesmo obstetras de plantão. O obstetra do pré-natal apareceria apenas em partos de risco. Faltam também, nos hospitais, locais onde a mulher possa esperar a evolução do trabalho de parto. O que acontece hoje é que existe a hotelaria e o centro cirúrgico, mais nada. Alguns hospitais têm salas de parto humanizado, mas mesmo esses apresentam altos índices de cesarianas, mostrando que essa ideia ainda não foi absorvida pelo sistema obstétrico.

Um exemplo divertido de como o parto normal é encarado fora do Brasil é a representação dos nascimentos dos trigêmeos de Phoebe e da filha de Rachel, no seriado Friends. Ambas têm seus filhos de parto normal em situações que, no Brasil, seriam indicação inapelável para cesarianas: gestação múltipla, demora na evolução do trabalho de parto e bebê pélvico, ou seja, com as nádegas, e não a cabeça, para baixo. O episódio não deixa claro quantas horas Rachel espera pelo nascimento de Emma, mas aparentemente são mais de 24 horas. Apenas no momento do parto, a parteira/obstetriz descobre que o bebê está na posição errada e tudo o que diz é "você terá que fazer mais força". E tudo isso sem os gritos tão comuns nas representações de trabalho de parto na teledramaturgia brasileira. Infelizmente não encontrei a cena de Phoebe em trabalho de parto.

É bom lembrar que é apenas o início do trabalho de parto que indica que aquele bebê está pronto de verdade para nascer. Mesmo com 40 semanas de gestação é possível que os pulmões do feto não estejam amadurecidos. Pode não parecer, mas a natureza tem seus mecanismos. Se não há trabalho de parto ainda, algum motivo existe. Não consegui achar os dados epidemiológicos do país para mostrar aqui, mas esses dois estudos, um realizado em Cascavel (PR) e outro em Pelotas (RS) mostram que a prematuridade é o principal motivo de morte em bebês. E qual o motivo para o aumento da prematuridade? As cesarianas eletivas sem indicação médica. De acordo com o Ministério da Saúde, a chance de internação de crianças nascidas em parto vaginal é de 3%, enquanto as nascidas em cesarianas são internadas em 12% das vezes.

Eu poderia falar parágrafos sobre ética médica, problemas nos planos de saúde, falhas do SUS, representação social do parto normal, arrogância médica e outros fatores que influenciam o alto número de cesarianas no Brasil, mas acredito que meu ponto principal já esteja colocado. Vamos adiante.

2 – Disputas entre as visões da medicina

Como qualquer campo do saber, a medicina e a obstetrícia especificamente são palco de disputas. Seja dentro da academia, seja na prática dos hospitais, seja nos grupos de grávidas e mães, cada um quer usar os melhores argumentos a seu favor, aqueles que reforcem suas teses. Não há ingenuidade aqui. É evidente que os obstetras brasileiros são bastante competentes naquilo que se propõem a fazer. Eu não duvidaria que o Brasil seja o lugar que forma os melhores fazedores de cesarianas, afinal é praticamente só o que a maior parte deles sabe fazer.

Entretanto, a minha experiência e estudo (leio sobre o assunto há 3 anos sem parar) é que, enquanto os médicos ditos cesaristas e/ou intervencionistas costumam afirmar que tomam suas decisões baseadas na prática pessoal, os profissionais que atuam no movimento de humanização do parto apresentam o maior número de estudos científicos possíveis para mostrar que alguns procedimentos são equivocados. Isso é um pouco óbvio, já que quem domina o sistema não tem motivos para se importar em justificar seus atos. Quem busca o seu espaço acaba trabalhando em dobro para rebater ideias incrustadas no inconsciente coletivo.

A maior expoente dessa prática de rebater práticas tradicionais nos nosso partos é a obstetra Melania Amorim, que mantém o blog Estuda, Melania, Estuda!. Ela cita tantos estudos que dá pra se perder por lá. Recomendo para todos que queiram aprofundar-se no assunto.

Citar estudos sem fim garante que sua visão sobre o parto esteja “correta”, seja lá o que isso signifique? Não, mas eleva a discussão para outro nível. Passa-se do argumento de autoridade para uma discussão com base em fatos.


3 – O movimento nacional pela humanização do parto

Frente ao cenário calamitoso de cesarianas no Brasil, era de se esperar que houvesse um movimento de contraposição. O que começou com grupos desconexos de mulheres reclamando de suas cesarianas desnecessárias virou um movimento nacional articulado que vem conseguindo avanços importantes. A luta dessas mulheres é para que todas as gestantes recebam informação de qualidade durante o pré-natal (durante a vida na verdade) para que possa escolher a forma de parir que mais lhe aprouver. E também para que o sistema obstétrico esteja preparado para receber essa gestante em sua escolha, qualquer que seja ela. Sim, é verdade. Apesar de ser óbvio que as integrantes desse movimento rechacem a ideia de cesarianas marcadas com antecedência sem motivo médico, não passa pela cabeça de ninguém propor que essas cirurgias sejam proibidas (ok, deve passar pela cabeça de alguém, mas não é uma reivindicação do movimento).

Lutam, também, pelo fim da violência obstétrica, que atinge uma em cada quatro parturientes no país. A violência obstétrica vai desde agressões verbais (coisas do tipo: “para de gritar, na hora de fazer não gritou”), passa por o uso de procedimentos sem explicação ou mesmo com um pedido ativo para que não sejam realizados (episiotomia, o corte no períneo, é um caso clássico) e chega a procedimentos realizados de maneira violenta (há casos em que a episiotomia chegou até a coxa da paciente. Empurrar a barriga da gestante para "acelerar" o parto também é muito comum).

O assunto sempre foi debatido no SUS. As casas de parto públicas, 14 no total, existem desde 1999 e usam um modelo semelhante ao de países como Holanda, Japão e Nova Zelândia. Os partos são acompanhados por obstetrizes ou enfermeiras obstétricas e só há remoção para um hospital se houver alguma complicação. A pequena quantidade de casas de parto, no entanto, mostram que as intenções estão lá, mas na prática poucas mulheres têm acesso a elas.

Mas iniciativas isoladas estão se avolumando e tentando melhorar a vida das gestantes no país. Belo Horizonte conta com uma equipe de parto domiciliar – outra opção de baixo risco para gravidez sem intercorrências – bancada pelo SUS. Em São Paulo, virou lei que todas as parturientes devem dispor da possibilidade de receber anestesia durante o parto (essa vai pra quem acha que esse movimento prega apenas o parto natural, sem qualquer intervenção). Há outros avanços.

4 – O caso Adelir

Na minha opinião, discutir os meandros do caso Adelir é um desrespeito com a própria. Sua vida e suas escolhas tornaram-se públicos e pessoas que desconhecem qualquer fato sobre o sistema obstétrico brasileiro não se furtam a julgá-la e condená-la como a louca do parto normal, irresponsável, leviana e até assassina. É por conta desse julgamento feroz que escrevo sobre sua gravidez e suas decisões aqui.

Adelir estava com 40 ou 41 semanas de gravidez. Essa informação é imprecisa por natureza, já que não há método infalível para determinar o dia da fecundação. Em média, a gestação humana dura 40 semanas, mas na verdade esse período varia entre 38 e 42 semanas. Isso significa que Adelir estava dentro do tempo esperado para a duração da gravidez. Isso é confirmado pelo exame realizado no hospital Nossa Senhora dos Navegantes. No laudo lê-se que o desenvolvimento do feto era compatível com 40 semanas de gravidez. Mais uma vez afirmo que esse dado, em um exame realizado em gravidez avançada, é questionável, já que os fetos desenvolvem-se de maneira diferente uns dos outros. Mas era essa a informação disponível para a obstetra que a examinou, Joana de Araújo. Além de estar dentro do período normal de gestação, os exames de Adelir mostraram mãe e bebê em perfeito estado.

A ecografia teria mostrado o bebê em posição pélvica. O parto normal nessas condições apresenta um nível de risco mais elevado para o bebê do que se ele tivesse em posição cefálica. Por isso, a equipe médica deve explicar a situação à paciente, pesar riscos e benefícios de cada opção de parto e deixá-la decidir.

O complicador nesse quesito é o fato de que Adelir e sua doula, Stephany Hendz, acharam estranho o fato de o bebê estar em posição pélvica, uma vez que essa informação ainda não teria aparecido no pré-natal. É bastante raro que o feto faça esse movimento com a gravidez tão avançada. Por isso, tinham a intenção de fazer o exame em outro local. Pediram, inclusive, uma guia com o pedido médico para apresentar em uma clínica particular.

Outra alegação para a indicação de cesariana  foi a de que ela já havia realizado duas cirurgias antes e seu útero poderia romper. É, poderia. Em um parto sem cesariana esse risco também existe. Com duas cesáreas, o risco, que já é baixo, aumenta cerca de 1%. Já o risco de uma terceira cesárea não foram explicados a ela.

Mesmo com mãe e bebê bem, Joana quis internar Adelir para a realização de uma cesariana. Adelir recusou. Para poder sair do hospital, foi obrigada a assinar um termo de responsabilidade, dizendo entender os riscos que sofria. Isso aconteceu na madrugada do dia 1° de abril.

Adelir e Stephany não conseguiram realizar um novo exame. Poucas horas depois, o trabalho de parto começou. Adelir passou o dia em casa, esperando as contrações ficarem ritmadas para ir ao hospital – não aquele que queria obrigá-la a fazer uma cesariana, mas outro, que tinha uma equipe humanizada. Quando ela já estava com contrações de cinco em cinco minutos, ou seja, perto do momento em que iria para o hospital, um oficial de justiça, acompanhado por policiais armados, apareceu com uma ambulância e um mandado judicial em mãos, obrigando Adelir a ser removida para o hospital. Adelir e o marido, junto com a doula, embarcaram na ambulância pedindo para serem levados para o hospital escolhido para o parto. Não foram atendidos. Ao chegar no hospital Nossa Senhora dos Navegantes, Adelir aceitou passar pela cirurgia, para evitar que seu marido fosse preso.

Adelir relatou os acontecimentos em um vídeo. Afirmou categoricamente que jamais teve em mente parir a qualquer custo, apenas gostaria que a cesariana fosse sua última opção. Ela estava ciente do que se passava com ela e com sua filha. Havia se informado. Mas nenhum representante o poder médico acreditou nela. Uma mulher humilde, que vive em uma casa na zona rural de Torres, ainda em construção pelo marido, não foi ouvida porque, falando daquele jeito, só poderia estar sendo enganada. Não sabia, coitada, dos riscos que corria. Quem diz isso não sou eu, mas o diretor do hospital, em entrevista ao Jornal Zero Hora. Ele afirma com todas as letras: “Sentimos que a mãe não tinha compreendido os riscos que estava correndo e fomos procurar apoio”. Foco no verbo utilizado. Sentimos. Tivemos um feeling. Olhamos para a paciente e vimos uma mulher que não poderia fazer escolhas informadas.

Alguns pontos importantes:
  • há relatos de pais que foram enganados em relação à posição de seus filhos nas últimas semanas de gravidez para que aceitassem realizar cesarianas. Se Adelir não acreditou no exame que mostrou sua filha em posição pélvica, a responsabilidade é dos médicos sem ética que chegam ao ponto de mentir para seus pacientes. Adelir sabia, e saber foi seu pecado.
  • é fato que o parto pélvico apresenta riscos maiores do que o cefálico, mas ele é uma opção viável. Cesarianas também têm riscos, como já mencionei acima. Cada mulher escolhe o risco que deseja correr. Partos ainda serão eventos de risco. Não há lugar no mundo em que a mortalidade materna seja 0. Parir é sempre um perigo. Como viver.
  • a única conduta certa do hospital Nossa Senhora dos Navegantes foi assumir que não tem pessoal capacitado para realizar um parto pélvico. Esse tipo de parto deve ser realizado por uma equipe experiente, que já tenha feito o acompanhamento desse tipo de nascimento antes. Também por isso Adelir não queria voltar àquele hospital.
  • a obstetra que queria internar Adelir imediatamente é totalmente responsável por esse caso, mas é também vítima. Ela não aprendeu a fazer outra coisa, nem na faculdade nem na prática diária. Não acredito que ela tivesse em mente qualquer coisa diferente que o bem estar de mãe e bebê. Mas ela errou.

5- Seu corpo, suas regras, desde que estejam de acordo com as minhas

É essa a postura médica de uma maneira geral. Eu entendo, de verdade, que médicos acabem por sentir um desejo de decidir por seus pacientes, uma vez que carregariam o conhecimento técnico que leigos não possuem. Não sei se, caso eu fosse médica, eu teria um sentimento diferente.

Mas médicos são regidos por um código de ética. Nele está escrito 

É vedado ao médico:

Art. 22. Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte.

Art. 23. Tratar o ser humano sem civilidade ou consideração, desrespeitar sua dignidade ou discriminá-lo de qualquer forma ou sob qualquer pretexto.

Art. 24. Deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo.

Um médico não pode obrigar um paciente terminal a receber um tratamento para prolongar a vida. Não pode intervir em uma greve de fome, mesmo que haja risco iminente de morte. A decisão é sempre do paciente.

Não é assim que o sistema obstétrico brasileiro vem funcionando. O que é o convencimento, a coação e agora o mandado judicial para obrigar uma mulher a fazer uma cirurgia indesejada? É o uso de seu poder para decidir pelo paciente. Os mecanismos desse convencimento são cruéis. Qualquer um com um mínimo de empatia sabe que não há mãe que, ao ouvir palavras como “sofrimento fetal agudo”, não aceite qualquer intervenção sugerida. Apesar de isso também acontecer em outras especialidades, é na obstetrícia que isso fica claro, especialmente pela questão do tempo. Mesmo um paciente com câncer terminal tem tempo para pedir uma segunda opinião. Mulheres em trabalho de parto não têm esse tempo. Nem podem se locomover com facilidade. Não há escape que não seja um volume imenso de informações absorvidas antes do parto.

O que é grave é que essa desconfiança em relação ao médico ainda vai fazer vítimas. É óbvio que casos de cesarianas absolutamente necessárias continuarão a acontecer – de acordo com a Organização Mundial de Saúde, até 15% dos partos podem requerer cirurgia. E é inevitável que, no meio dessas mulheres que se rebelam contra o senso comum, algumas terão que passar por cesarianas. Só que, ao duvidar do médico, elas podem acabar decidindo não se submeter à cirurgia. E morrer. É urgente mudar essa forma de agir dos médicos no país. A confiança precisa reger a relação médico-paciente, mas não é isso que acontece.

6 – Direito do bebê

Juridicamente não existe a figura do feto como detentor de direitos, apesar da tentativa de aprovação de um Estatuto do Nascituro no ano passado. Dito assim, na lata, parece uma crueldade. E em alguns momentos vai ser. Mas qualquer lei pode ser cruel quando há situações limite. Não descarto a possibilidade de discutir eventuais alternativas para uma situação em que o bebê estivesse realmente em risco (nesse caso não estava). Só que não vejo saída que não respeitar a decisão da mulher, que é o sujeito que já existe afinal. Mas também entendo que haja sentimentos de preocupação com o bebê. Claro que há. Da minha parte também.

Pior, diferente da maior parte das mulheres que já escreveram textos defendendo Adelir, consigo imaginar casos em que a mãe agiria contra os interesses do ainda não nascido filho. Gravidez não desejada em situações limite ou depressão, por exemplo, poderiam fazer que a mãe, ainda que inconscientemente, desejasse perder o bebê, ainda que causando risco a si própria. Seria esse um caso de intervenção? Como identificar uma situação dessas? Como trazer para uma regra geral a suposição de que a mãe queira um mal a seu próprio filho, quando virtualmente todas as mulheres só querem a saúde e o bem estar de seus rebentos? É só tentar responder essas questões que a inviabilidade de decisões desse tipo fica aparente. É preciso assumir que a intenção da mulher é sempre que todos saiam vivos. Supor o contrário é insano.

Além disso, o saber médico tradicional erra. Assim como erra o saber antigo, é evidente. Qualquer base “técnica” para uma decisão desse tipo no campo da medicina é falha, pois não há saber técnico absoluto. No campo da disputa teórica já mencionada, há espaço para argumentos para parto normal e para cesariana. Para colocação ou não de ocitocina na veia para acelerar o parto. Para a realização ou não da episiotomia. Para a raspagem ou não dos pelos pubianos (é sério). Privilegiar um deles não é papel para a Justiça.


7 – Sujeito x sujeitado

As laudas usadas para explicar o contexto obstétrico brasileiro e o caso Adelir em detalhes estão aqui porque o debate foi quase que totalmente centrado neles. As críticas foram a eles. Mas me recuso aceitar que a questão pare por aqui. A discussão central é a possibilidade de intervenção no corpo do outro. Essa discussão é de todos nós.

O corpo é nosso santuário. Nunca entendi tão bem o sentido dessa frase quanto com esse caso. O corpo deveria ser indevassável. Nesse caso não foi.

E agora? Abre-se o precedente? Vamos impedir as cesarianas com 38 semanas com mandado judicial também? Ou forçar uma parturiente a aceitar, ou não se submeter, qualquer procedimento que queiram ou não queiram usar? Para parir em paz mulheres terão que mentir sobre seu endereço? É esse o assunto que deve ser discutido.
Mulheres e homens deveriam ser sujeitos de suas próprias vidas. As opções existentes a cada tempo, em cada realidade, deveriam estar disponíveis para todos, para que possam escolher que caminhos trilhar. O que acontece na realidade é que todos os grupos minoritários (em relação à representação social) têm menos opções do que aqueles reconhecidos como majoritários. No Brasil, negros têm menos opções de estudo, trabalho, lazer. Caminhos, enfim. O mesmo acontece com mulheres, indígenas, gays, transexuais. Só que ser sujeito, ser autônomo, é condição fundamental para a realização pessoal.

Não é diferente com o movimento pela humanização do parto. Com um agravante: o grupo majoritário (homens) não tem a menor ideia do que seja gestar, parir e nutrir uma criança. Não sabe porque não pode saber, biologicamente falando. Para que um homem entenda do que isso se trata, o único caminho é o da empatia.

Isso significa que não há, aqui, pedido de equiparação. Não se pode pedir um parto igual ao dos homens, assim como se exige salários iguais. Então o parto que as mulheres querem é decidido por elas mesmas. Não há um padrão de comparação. Isso deveria ser uma vantagem. Os termos são nossos. Só que não são. O saber médico moderno – notadamente masculino – apropriou-se do parto. Isso poderia ser uma ótima notícia. Juntos, tradição e medicina poderiam terminar por derrubar ao mínimo as taxas de morte de mães e bebês no parto. O que aconteceu, no entanto, foi que no século XX as mulheres deixaram de conduzir o parto e perderam saberes ancestrais. Em alguns lugares mais do que em outros e no Brasil mais do que em qualquer outro lugar. O movimento de humanização, presente em todo o mundo, conseguiu resgatar o protagonismo da mulher em muitos países. São dignos de nota o Reino Unido, a Holanda, a Nova Zelândia, entre outros. Não por acaso as mortes de bebês e mães nesses países são baixíssimas. Lá, o corpo feminino faz seu trabalho em paz. Nos casos que resultariam em complicações ou morte, e apenas nesses, a medicina intervém e salva vidas.

É para isso que se luta aqui no Brasil. Mas a resistência à mudança é tão forte que parece que a proposta é voltar a parir sem atenção médica. Essas mulheres, que só querem ter o poder de decidir sobre seus corpos, nas melhores condições possíveis, são atacadas como se fossem alienadas. São chamadas de xiitas, talibãs, loucas. Querem ser sujeitos, mas quem as controla prefere que continuem sendo sujeitadas. Mulher sem informação dá menos trabalho, afinal. Como provou Adelir.

terça-feira, abril 01, 2014

José Serra, sempre pé quente...

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segunda-feira, março 31, 2014

Futebol: um termômetro da sociedade?

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O texto abaixo é de autoria de Paulo Reis, foi publicado no Trilha da Rua, e faz parte da campanha Futebol sem Racismo. 

Os recentes casos de racismo do futebol nos mostram uma coisa muito importante: devemos abandonar essa expressão racismo no futebol, como se esse fosse apartado da sociedade, com sua própria maneira de funcionar e independente dos valores compartilhados pela sociedade.

Não comentaremos apenas os casos de racismo, há outros itens que demonstram a intolerância e as diferenças simbólicas que o futebol carrega. Tentaremos de maneira bem corrida traçar algumas características do futebol hoje que parecem correspondentes à sociedade.

Embora falar apenas dos casos de racismo não seja o foco desse post, vamos apenas situar os mais recentes. Vai vendo. No dia 16 de fevereiro, no jogo entre Real Garcilaso e Cruzeiro pela Libertadores, o volante Tinga do time brasileiro foi alvo de provocações racistas: a cada instante em que Tinga pegava na bola, a torcida imitava o som de um macaco. Dentro algumas declarações, Tinga disse que “Trocaria um título pela igualdade entre raças e classes e respeito” e que “as pessoas [falaram] do que aconteceu lá, mas isso tem todo dia. No nosso país tem muito, não só (preconceito) racial, mas social, que acho que é até maior”.

No último dia 6 de março, após apitar o jogo entre Esportivo e Veranópolis pelo Campeonato Gaúcho, o arbitro Márcio Chagas da Silva encontrou bananas no seu carro e as portas amassadas. O arbitro disse que também ouviu xingamentos e ofensas como “macaco”, “teu lugar é na selva” e “volta para o circo” na entrada do gramado do jogo e durante o intervalo.

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Na goleada do Santos contra o Mogi Mirim por 5 a 2 pelo Campeonato Paulista, o volante Arouca do Peixe foi chamado de macaco pelos torcedores do Mogi. Em nota, o atleta disse: “Tenho muito orgulho das minhas origens africanas, que foi o que o sujeito tentou usar para me ofender, dizendo que eu deveria procurar alguma seleção de lá para jogar. Dando a entender que um negro igual a mim não serve para defender a seleção brasileira. Como se algumas das páginas mais bonitas da história da nossa seleção não tivessem sido escritas por jogadores como Leônidas, Romário e pelo Rei Pelé, também negros. Não ouvi os gritos de ‘macaco’ que alguns repórteres disseram ouvir, mas, caso tenha realmente acontecido, é ainda mais triste.”

Esses casos são sintomáticos. É incrível como pode haver um preconceito tão violento. Não devemos aceitar esse quadro, ainda mais porque houve discriminação nos limiares do futebol também. O futebol brasileiro iniciou-se quando o brasileiro de ascendência inglesa Charles Miller, que inclusive batiza a praça do lado do Estádio do Pacaembu, trouxe uma bola para cá e introduziu o “football” aqui. De lá para cá, o futebol passou por uma série de transformações. E não apenas em táticas, uniformes e tecnologia. O futebol era um esporte praticado pela elite brasileira. Caberia aqui tratarmos da fundação dos times mais tradicionais desse Brasilzão, mas isso seria interessante em um outro post.

Quem praticava o futebol eram homens, brancos e proprietários. Não haviam pobres, ainda mais negros nos times. O primeiro mulato a se destacar foi Arthur Friedenreich, chamado de El Tigre, no Paulistano. Em alguns times, houve resistência a inclusão de negros. O Fluminense tinha um jogador negro, mas ele tinha que passar pó de arroz antes dos jogos. A torcida começou a reparar, já que ele suava e podia-se ver o pó saindo de seu rosto. Não é consenso qual o primeiro time a aceitar negros.

Há quem diga que foi o Vasco da Gama, em 1923, sagrando-se campeão carioca com um time talentoso. Há quem diga que foi a Ponte Preta, que teve Miguel do Carmo, um dos fundadores da Ponte, como jogador da mesma no ano seguinte à fundação (1901). Em seguida, na década de 30 houve a profissionalização do futebol e consequentemente uma maior abertura para que os jovens talentos do Brasil, independentemente de sua origem e cor, pudesse ter chance de ser um jogador de futebol. Muitas limitações ainda permanecem no futebol. Não podemos esquecer que no Sudeste/Sul, os times de futebol têm mais estrutura e mais recursos. O que corresponde a força econômica de alguns estados brasileiros. O que, por sua vez, corresponde a condição dos jovens tentarem a vida nesse esporte. Disso podemos dizer que há uma elitização no futebol, no sentido de que os times considerados grandes entram numa competição com muito mais vantagens que os times considerados menores.

Mas e hoje? Analisando de modo até amador da minha parte, a profissionalização não quebrou muito com esse quadro de preconceito. Há uma série de itens que correspondem à lógicas de pensamento e valores que estão introjetados na nossa sociedade e até são sutilizados. Todo o jornalismo esportivo criticou os casos recentes de racismo, colocando-o como abomináveis e algo que não deve existir em nosso tempo. Seguindo uma lógica que preza pela igualdade entre as raças, é certo condenar o racismo mesmo. Mas o racismo que é condenado aí é o explicito. É curioso que na grande imprensa brasileira (quase) não se tenha jornalistas esportivos negros. É curioso contarmos nos dedos os repórteres e âncoras negros, não apenas do jornalismo esportivo, mas dele como um todo. Ou seja, o racismo é condenável, mas ainda vivemos em uma sociedade considerada racista, onde modos implícitos e sutis de preconceito racial estão diluídos no nosso cotidiano.

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Um segundo movimento disso tudo foi uma mobilização por parte da Federação Paulista de Futebol contra o racismo. Mais especificamente no jogo Corinthians x São Paulo, onde havia uma faixa dizendo “O Futebol Paulista repudia o racismo”, a torcida corinthiana provocava a torcida tricolor chamando o goleiro Rogério de “bicha”, além das provocações já de praxe com apelo sexual. Não é contraditório? A partir do momento que a orientação sexual passa a ser objeto de chacota/desgosto/ódio, independente de quem for o objeto de “xingamento” (aqui com todas as aspas possíveis), o discurso contra o preconceito foi pro beleleu. Sejamos contra o preconceito racial, mas não contra o preconceito de orientação sexual. Só um adendo: isso é uma “sutileza” em termos de preconceito homofóbico no futebol. Vale ressaltar outros itens aqui. O jogador Richarlyson, quando jogava no São Paulo, foi chamado, de modo sutil, de homossexual por um cartola do Palmeiras. Depois de todo um embrólio, o caso foi parar no tribunal, onde foi arquivado pelo juiz Manoel Maximiano Junqueira Filho, já que, nas palavras dele, o futebol é “jogo viril, varonil e não homossexual”. Além também de Cassano, na Eurocopa de 2012, onde o jogador italiano, perguntado sobre a possibilidade de haver um jogador gay no selecionado italiano, disse que “Se eles são “frocio” (termo vulgar em italiano para se referir a gays), o problema é deles. Eu espero que não exista qualquer “frocio” na seleção. Mas se eles são isso, é com eles. Não sei se existe alguém. Deixo assim, caso contrário, já sabem, virão os ataques de todas as partes”. Isso foi em junho. Em abril daquele ano, o técnico da seleção italiana Cesare Prandelli colocou que “No futebol e no esporte ainda existe um tabu sobre a homossexualidade, quando as pessoas deveriam viver livres de acordo com seus próprios desejos e sentimentos. Quando falamos de amor e sentimentos, o povo deveria poder amar quem quisesse”.

Outro ponto é talvez o menos sensível às pessoas. Quando se fala do próprio racismo, ou mais recentemente de entrega de jogo, o discurso segue a mesma tônica: “somos homens, temos caráter, somos honestos!”. Percebam que esse discurso, de modo inconsciente, provavelmente, associa caráter e honestidade ao fato de ser homem. Não fica explicito que uma mulher não seja assim, mas fica implícito que são valores compartilhados entre os homens. Pode até parecer viagem, mas é incrível como o uso da palavra em determinado discurso exclui/inclui as pessoas. Vale ressaltar que a mulher vem ganhando uma presença cada vez maior na vida política, econômica, social e esportiva da sociedade. Embora não haja tanto destaque midiático, o futebol feminino vem crescendo muito. Vez ou outra podemos ver jogos das seleções, mas os jogos de clubes não. Em nome da tradição, ainda estamos muito presos ao calendário do futebol masculino. Soma-se a isso o fato dos patrocinadores primarem mais pela modalidade considerada oficial. Além também da presença da mulher na arbitragem, no jornalismo esportivo e em outras esferas. Elas também manjam muito. Não deve haver o determinismo que diz que por ser mulher não deve saber de futebol. Se pá elas manjam de futebol, NHL, UFC e Hokey muito mais que você que é homem e tá lendo isso.

Enfim, a questão é que, embora algumas dessas coisas pareçam que só são explícitas, brincadeira pra provocar rival, entre outros, são formas de preconceitos, mas são sutis. Ao rebater o racismo não devemos usar o argumento do que o maior jogador de todos os tempos era negro. Porque mesmo se fosse bisonho, grosso, péssimo jogador, Pelé mereceria respeito simplesmente por ser uma pessoa. Ao nos declarar contra o preconceito, devemos perceber como gestos e práticas legitimam ainda mais a diferenciação entre as pessoas. Disso fica a resposta da pergunta: o futebol é um termômetro da sociedade. Tudo que foi dito não faz parte de casos isolados, mas sim de toda uma lógica e uma estrutura de pensamento e de vida.

Fontes: http://globoesporte.globo.com/platb/memoriaec/2011/03/23/a-contribuicao-do-vasco-para-o-integracao-racial-e-social-no-futebol/

http://www.estadao.com.br/noticias/esportes,arouca-e-chamado-de-macaco-apos-goleada-do-santos-em-mogi-mirim,1138189,0.htm

http://globoesporte.globo.com/futebol/eurocopa/noticia/2012/06/cassano-aquece-polemica-sobre-jogadores-gays-na-selecao-italiana.html

'Tudo é possível'

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Veículo da Folha incendiado: acusado de transportar presos políticos
Risível, para não dizer desaforado, o editorial da Folha de S.Paulo no domingo, 30 de março. O embaraço ao fazer um mea culpa nos 50 anos do golpe militar começa logo pelo título: "1964" - apenas o ano do acontecimento, tentando uma "neutralidade" que beira (ou alcança) o tucanismo. Todo esse cuidado, esse pisar nas pontas dos pés, sobre ovos, se reflete ainda mais na linha fina que apresenta o texto (o grifo é nosso): "Aos olhos de hoje, apoiar a ditadura militar foi um erro, mas as opções de então se deram em condições bem mais adversas que as atuais". Ou seja: sim, nós apoiamos os militares; e sim, isso foi ruim; mas, "veja bem, não é o que você está pensando, sejamos razoáveis..."

Depois das necessárias - ainda que tardias - críticas à ditadura, nos quatro primeiros parágrafos, pra tentar "ganhar" a simpatia daqueles que a condenam, a Folha desliza na argumentação (o grifo é nosso): "Parte da esquerda forçou os limites da legalidade na urgência de realizar, no começo dos anos 60, reformas que tinham muito de demagógico". Como assim?!? "Forçou os limites da legalidade"?!? O governo de João Goulart não teve tempo - nem força - para tomar uma medida sequer, legal ou "ilegal", a favor ou contra qualquer coisa. Pelo contrário: assim que Jânio Quadros renunciou, Jango sofreu o primeiro golpe, ao ser obrigado a aceitar um regime temporário de parlamentarismo. Isso sim "forçou os limites da legalidade". Aliás, quando os militares tentaram impedir a posse LEGAL de Jango como presidente, o governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, conseguiu garanti-la justamente com uma campanha de resistência batizada de "Corrente da Legalidade".

Jornal chama ditadura de 'ditabranda' e gera protesto popular
Mas o editorial da Folha omite tudo isso e prossegue derrapando: "Logo após 1964, quando a ditadura militar se continha em certas balizas, grupos militarizados desencadearam uma luta armada dedicada a instalar, precisamente como eram acusados pelos adversários, uma ditadura comunista no país". Ah, mas que boazinha essa ditadura! Que esforço ela fazia para se conter, coitada! Tanto que, ANTES de qualquer pessoa pegar em armas contra ela, os militares cassaram centenas de políticos democraticamente eleitos, prenderam arbitrariamente milhares de pessoas, institucionalizaram a tortura, proibiram eleições, alçaram a "linha dura" ao poder, censuraram a imprensa, amordaçaram o Congresso e "estupraram" o país ao impor o AI-5. Isso é ser "contida"?

Pois foi justamente por toda essa violência que muitos (ainda que equivocadamente) partiram para a luta armada. Não contente, porém, o editoral emenda cinco parágrafos de exaltação ao "milagre econômico" do início dos anos 1970, como sendo o lado "benéfico" e "justificável" do golpe militar. E aí vem o grand finale, quando o jornal assume o apoio que deu ao regime de exceção - e procura nos convencer de que, na época, foi uma atitude "correta": "Às vezes se cobra, desta Folha, ter apoiado a ditadura durante a primeira metade de sua vigência, tornando-se um dos veículos mais críticos na metade seguinte. Não há dúvida de que, aos olhos de hoje, aquele apoio foi um erro". Somente "aos olhos de hoje"?!?? Vá dizer isso a alguém que foi barbaramente torturado naqueles tempos! E que talvez, como registram várias denúncias, tenha sido transportado para cárceres clandestinos em veículos da própria Folha de S.Paulo. A mesma Folha que já chamou a ditadura de "ditabranda"...

Abril de 1964: Folha defende o 'regime'
É isso, minha gente. O jornal que insuflou o golpe em quase todo o período do curto - mas legítimo - governo João Goulart, e que saudou a tomada de poder pelos militares como a salvação do país, diz agora que "errou", mas termina o editorial em tom de "sermão" contra possíveis detratores. Só que tem um lance curioso: quando pensei em fazer esse post, imaginei os comentários que faria para encerrá-lo. Mas foi aí que eu reparei em outros três textos publicados na mesma página 2 da Folha de domingo (assinados por Eliane Cantanhêde, Henrique Mirelles e Carlos Heitor Cony) e notei que, por uma "coincidência semiótica", os títulos de cada um resumiam - ou comentavam - o descarado editorial: 'Desastres nada naturais', 'O que não foi feito' e 'Tudo é possível'. Impressionante como, sem querer, qualquer um desses títulos poderia nominar o editorial, em vez do anódino "1964". Por isso, me sinto à vontade para terminar o texto com uma definição do Dicionário Informal: "CARA DE PAU: Pessoa descarada, sem vergonha. Atrevido. Sinônimos: atrevido, sem vergonha, safado, mentiroso, descarado, sem escrúpulos, cara lisa". Sem mais. 

sexta-feira, março 28, 2014

JUSTO

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Som na caixa, manguaça! - Volume 76

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NA BATUCADA DA VIDA
(Ary Barroso / Luís Peixoto)

CARMEN MIRANDA

No dia em que apareci no mundo
Juntou uma porção de vagabundo da orgia
De noite teve choro e batucada
Que acabou de madrugada em grossa pancadaria

Depois do meu batismo de fumaça
Mamei um litro e meio de cachaça, bem puxado
E fui adormecer como um despacho
Deitadinha no capacho na porta dos 'Injeitados'

Cresci olhando a vida sem malícia
Quando um cabo de polícia
Despertou meu coração
Mas como eu fui pra ele muito boa
Me soltou na rua à toa
Desprezada como um cão

Agora, que eu sou mesmo da virada
E que eu não tenho nada, nada
E por Deus fui esquecida
Irei cada vez mais me 'esmulambando'
Seguirei sempre cantando na batucada da vida


(Gravação em 78 R.P.M., RCA Victor, 1934)



quinta-feira, março 27, 2014

'É que Narciso acha feio o que não é espelho...'

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Narciso ontem, no Morumbi: histórico
O sentido dos versos de Caetano Veloso que dão título ao post não tem nada a ver com o que vou relatar, mas é irônico que eles estejam numa canção chamada "Sampa", porque citam o nome do grande carrasco do time homônimo na partida disputada ontem à noite no Morumbi. Sim, o ex-jogador Narciso fez história como treinador ao impor um vexame incontestável ao São Paulo, em pleno Morumbi, e sacramentar a maior façanha do Penapolense em toda a sua existência, a classificação para a semifinal do Campeonato Paulista. Mais do que isso: foi uma (justa) vingança.

No dia 25 de janeiro de 2010, no Pacaembu, Santos e São Paulo decidiram a Copa São Paulo de Futebol Júnior. Narciso era o técnico do Peixe. No fim do primeiro tempo, os santistas já venciam por 1 x 0 quando partiram num contra-ataque fulminante, para sacramentar o título. Mas o goleiro Richard, do São Paulo, parou o atacante adversário com uma falta feia. Para perplexidade geral, e principalmente de Narciso, o juiz marcou a falta mas só deu cartão amarelo para o goleiro, que deveria ter sido expulso. O lance foi capital, pois, se ficasse com um a menos, dificilmente o Tricolor reverteria a derrota.

Em 2010, Narciso reclamou e foi expulso na decisão da Copinha
Por isso, depois que os sãopaulinos igualaram o placar no segundo tempo e o juiz apitou o fim do jogo, provocando a disputa de pênaltis, Narciso partiu pra cima da arbitragem, completamente fora de si. Tanto gritou e reclamou sobre a não expulsão de Richard no primeiro tempo que o técnico santista acabou expulso, deixando os garotos sob seu comando visivelmente nervosos. Prova disso é que erraram os três pênaltis que bateram. E o goleiro Richard, o mesmo que foi poupado do cartão vermelho, defendeu as cobranças e foi o herói do título do São Paulo na Copinha.

Richard deveria ter sido expulso
Narciso engoliu aquilo quieto. Ontem, exatamente 50 meses depois daquela injustiça, o técnico estava no comando do Penapolense, como "azarão" ou franco-atirador no confronto das quartas-de-final do Paulistão, em jogo único. De forma brilhante, armou um esquema de marcação que anulou todos os meias e atacantes do São Paulo - e deixou o tempo passar. Depois de "cozinhar" o time de Muricy Ramalho no primeiro tempo, em "banho-maria", Narciso soltou a equipe de Penápolis no contra-ataque na etapa final e por pouco não liquidou a fatura no tempo normal.

Mas a vingança tem requinte de detalhes: a decisão seria, como na decisão da Copinha de 2010, por pênaltis. Dessa vez, mesmo tendo assistido um jogador seu ser supostamente derrubado na área do adversário durante o segundo tempo, num lance em que a arbitragem não marcou pênalti, Narciso, mais maduro e experiente, manteve-se calmo e não reclamou. Provavelmente, deve ter dito ao seu time: "A pressão está em cima deles. A obrigação de se classificar é deles. Vão lá e acertem as cobranças, sem medo. Eles vão se complicar sozinhos". Não sei se foi assim. Mas foi o exatamente o que ocorreu, para glória máxima do treinador.

Narciso consola o derrotado Rogério Ceni: vingança, 4 anos depois
Por fim, outras duas curiosidades. Como técnico, Narciso vai enfrentar, na partida única da semifinal, o Santos, time que o projetou como jogador de futebol, que o amparou completamente quando ele enfrentou um tipo raro de leucemia e que permitiu que ele iniciasse a carreira de treinador em suas categorias de base. E o Penapolense foi o único time que conseguiu golear os santistas neste campeonato (4 a 1) - justo eles, que estão impondo aos adversários seguidas goleadas, como a de ontem (4 x 0), na Ponte Preta. Seja como for, estar na semifinal já é um título para Narciso.

Não, Rodrigo Caio não é o culpado
Sobre o São Paulo, o curioso é que caiu na mesma situação do Corinthians. Não adianta culpar Rodrigo Caio, que desperdiçou sua cobrança de pênalti, pois a eliminação é responsabilidade única e exclusiva do time inteiro, que não jogou absolutamente nada ontem. Assim como os corintianos não podem culpar ninguém, pois a não classificação para a reta final foi resultado daquilo que não jogaram no início da competição. Mas não custa lembrar que, ao sugerir que o São Paulo tinha "entregado o jogo" para o Ituano, para desclassificar o Corinthians, o técnico alvinegro Mano Menezes disse que os deuses do futebol puniriam tal atitude. Que língua! Deus me livre de praga de corintiano! (rsrs) E meu consolo, no momento, é que, jogando mal desse jeito, o São Paulo foi poupado de passar vexame maior ao sofrer uma sonora goleada na Vila Belmiro, como a que o Corinthians sofreu na primeira fase.

quarta-feira, março 26, 2014

Leônidas da Silva, negro diamante - Futebol Sem Racismo

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"A alma não tem cor", diz a canção de André Abujamra. A alma brasileira está colada no futebol. E a alma do futebol brasileiro é multicolor. Na campanha por Futebol Sem Racismo, cujo pontapé inicial já foi dado e que avança pela meia cancha, a gente não se cansa de lembrar talentos negros. O primeiro é Leônidas da Silva, o Diamante Negro.

Criador do gol de bicicleta e apontado como "maior do que Pelé" pelo adversário e goleiro Oberdan Cattani, Leônidas da Silva foi o Diamante Negro. Símbolo de um povo, mágico com a bola nos pés, encantou os europeus nas Copas do Mundo de que participou. Nascido em 1913, jogou entre 1923 e 1951. Atuou por Flamengo e Botafogo, além de protagonizar uma das primeiras transações milionárias do futebol brasileiro, ao ser transferido para o São Paulo.

Era considerado temperamental, de pavio curto. Porém tal traço parece ter atrapalhado mais sua trajetória como treinador do que como jogador. Talvez o talento com os pés tenha tenha sido mais eficaz para cessar a sanha dos críticos do que os resultados como comandante. Tampouco impediu uma bem sucedida corrida como comentarista esportivo.

Outro Estigma que recai sobre a biografia do gênio é o de ter sido ausente, por contusão, na partida semifinal da Copa de 1938, quando o Brasil perdeu da Itália. Nos anos 1950, ele chegou a ser acusado de ter recebido suborno do regime de Benito Mussolini para "amarelar". Não era verdade.

O apelido "Diamante Negro" foi talhado pela imprensa francesa durante aquele mundial. O que envolve o fato de ter marcado 7 gols (foram 8, mas a Fifa tirou-lhe a autoria de um), incluindo o sexto do 6 a 5 contra a Polônia, na prorrogação da decisão de terceiro lugar.

Foto: Reprodução de Globo Sportivo, ao lado de Zizinho

A alcunha batizou o chocolate, vendido até hoje no mercado brasileiro. Por causa dos US$ 3 mil pagos a Leônidas pela fabricante, o jogador é visto como precursor do marketing esportivo. O fato de ter namorado figuras como a cantora Elizeth Cardoso contribuíram para um lado "celebridade" do atleta, visto como primeiro ídolo do futebol brasileiro e um dos responsáveis pelo crescimento da popularidade do Flamengo.

Ficha técnica de Leônidas da Silva

N° da camisa que consagrou: 9
Clubes em que atuou: Flamengo, Botafogo e São Paulo
Partidas na seleção: 37, com 37 gols marcados
Copas do mundo: 1934 e 1938
Marca registrada: O principal divulgador da bicicleta e ser considerado "Maior do que Pelé"
Estigma: o de ser temperamental e o de não ter conquistado Mundial de futebol em 1938, chegando a ter sido acusado de ter recebido suborno da ditadura de Mussolini

Leia também:
O mesmo estádio, o mesmo clássico, o mesmo placar. Mas o uniforme do São Paulo, quanta diferença...
O homem que colocou o São Paulo entre os grandes

terça-feira, março 25, 2014

Pelo Futebol Sem Racismo, uma campanha

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Está no ar a campanha Futebol Sem Racismo, uma iniciativa do Futepoca e do Blog do Santinha. Após os episódios envolvendo jogadores, como Tinga e Arouca, árbitros, como Márcio Chagas, "humoristas"... a iniciativa quer fazer uma corrente pra frente para parar com o racismo dentro dos gramados.

Precisamos e queremos parceiros. Entre em contato.

Sobre o Futebol Sem Racismo




A pátria em chuteiras, na expressão consagrada por Nelson Rodrigues, é uma das definições mais bem resolvidas de tudo o que o futebol representa para o brasileiro. Pés de todas as cores foram, são e serão calçados para fazer do país uma fonte de craques. O racismo não pode ter espaço nem dentro do gramado, nem nas arquibancadas. Muito menos na Copa do Mundo de 2014.

Manifestações recentes de intolerância contra jogadores, árbitros e torcedores negros são o ponto de partida desta campanha, movida por pessoas, torcedores, blogueiros, jornalistas, cidadãos... Gente que quer o espetáculo da bola entre jogadores, independentemente da cor da pele.

Se a conversa começa com o Futepoca e o Blog do Santinha, ela avança com apoio de todos.
Primeiro, vamos jogar o racismo para escanteio. Depois, vamos tirar o tema da retranca e contra-atacar: construir ações para clubes, jogadores, torcedores, poder público... para cada um assumir sua posição no time do Futebol Sem Racismo.

Como participar

Há muitas formas de participar da campanha. Curtir a página no Facebook, compartilhar os conteúdos produzidos, espalhar o selo, ajudar a difundir... Confira:

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Reproduza e divulgue tudo o que gostar.

Produza, remixe
Escreva biografias de jogadores negros, indígenas, brancos, cafusos, mulatos... Conte histórias de igualdade, denuncie casos de racismo (de hoje e do passado). Se você tem um blogue, escreva sobre a campanha, e torne pública sua adesão.

Vista a camisa
Se você tem um blogue, escreva sobre a campanha, por que você apóia, por que o assunto é importante... Publique um dos selos com link apontado para a página do Facebook. Altere seu avatar nas redes sociais com o escudo.

Proponha
Ajude a desenhar ações, peças e medidas concretas.

Redes
GMAIL: futebolsemracismo@gmail.com
FACEBOOK: facebook.com/pages/Futebol-Sem-Racismo/132206113621217
TWITTER: twitter.com/futebolsracismo


'Imponderável de Almeida' beneficiou Muricy e Ceni

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Muricy e Ceni: sucesso no São Paulo
Se existe um ano decisivo para dois dos maiores ídolos do São Paulo (e que ainda trabalham juntos no clube), este foi 1992. E o curioso é que a ascensão de ambos contou com a ajuda do "Imponderável de Almeida", personagem criado pelo jornalista e teatrólogo Nélson Rodrigues, em suas crônicas esportivas, quando queria narrar algo inesperado ou inimaginável - personagem que também foi chamado muitas vezes por ele de "Sobrenatural de Almeida". Bom, seja o que for, o que importa nessa história é que, no fim de 1991, nem Muricy Ramalho nem Rogério Ceni enxergavam alguma remota chance de, a curto ou médio prazo, emplacarem carreiras profissionais significativas como treinador e goleiro, respectivamente.

Muricy no Atibaiense (1988)
Muricy havia se aposentado precocemente como jogador em 1985, aos 30 anos, no América-RJ, por conta de seguidas e graves contusões no joelho. Tornou-se dono de uma rede de farmácias com seus irmãos mas, em 1988, aceitou o convite do modesto Grêmio Esportivo Atibaiense para ganhar mais alguns trocos como jogador disputando a mambembe 3ª Divisão do Campeonato Paulista. Não deu: depois de dois jogos os combalidos joelhos o obrigaram a abandonar de vez a ideia de jogar bola. Porém, o Atibaiense insistiu em contar com sua ajuda e, para justificar os dois salários mínimos que recebia, Muricy aceitou assumir o comando do time (de amadores) quando seu técnico foi demitido. Foram apenas 10 jogos. Mas ele pegou gosto...

Oscar e Moraci Sant'Anna (1991)
Dois anos depois, faria um curso de treinador no Puebla, do México, onde havia jogado entre 1979 e 1984. No ano seguinte, conseguiu cavar uma vaguinha como treinador nas categorias de base do São Paulo, clube onde havia se formado e despontado como jogador. Mas o emprego não dava qualquer garantia de prosseguimento futuro no time profissional. Prova disso é que, justamente em 1991, outro ex-jogador do clube, o zagueiro Oscar Bernardi (titular da seleção brasileira na Copa da Espanha), foi contratado para ser o auxiliar do técnico Telê Santana. E o combinado era que Oscar assumiria o comando assim que Telê saísse, pois o treinador já falava em aposentadoria. Só que aí apareceu o "Imponderável": Telê começou a ganhar tudo e (lógico) não quis mais sair.

Muricy como auxiliar de Telê: acaso
Depois de treinar o time júnior do São Paulo na Copinha de 1992, Oscar percebeu que seria auxiliar ainda por muito tempo. E se irritou: “Se houvesse uma garantia, por escrito, de que daqui a seis meses eu seria o técnico, eu ficaria”, afirmou ao jornal Notícias Populares, em fevereiro. “Acho melhor desligar-me. Ficar no São Paulo só para dizer que estou no São Paulo, eu não quero.” O jornal ironizou, dizendo que Oscar saiu do clube "chiando" e que "passaram o conto do auxiliar-técnico nele" (reprodução abaixo). A verdade é que a reclamação do ex-zagueiro não tinha o menor fundamento: Telê, que já havia ganho o Brasileiro e o Paulista em 1991, seria bi-paulista, bi da Libertadores e bi do Mundial entre 1992 e 1993, entre outros títulos.


Oscar Bernardi no Cruzeiro (1997)
Surpresa pela atitude de Oscar, a diretoria do São Paulo improvisou Muricy, das categorias de base, como auxiliar de Telê. E foi assim, por acaso, que aquele que ganharia quatro títulos pelo clube (Conmebol em 1994 e Brasileirão de 2006, 2007 e 2008) e que o dirige atualmente ganhou sua grande chance para pavimentar uma carreira como treinador profissional. Fora o São Paulo, Muricy ganhou títulos na China, em Pernambuco, no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro, além de conquistar uma Libertadores com o Santos, em 2011. E Oscar? Bem, o ex-zagueiro deixou o posto de auxiliar no São Paulo para treinar a Inter de Limeira e o Guarani. Chegou a treinar o Cruzeiro. Nunca ganhou nada. E encerrou a aventura como técnico em 1998.

Alexandre: sucessor natural de Zetti
Assim como a surpreendente saída de Oscar e a inesperada efetivação de Muricy como auxiliar-técnico no São Paulo, a segunda parte dessa história também ocorreu em 1992. Na época, o paranaense Rogério Ceni, que havia completado 19 anos em janeiro, morava em um alojamento no estádio do Morumbio e ocupava a posição de 4º goleiro do clube, sem qualquer esperança de, tão cedo, treinar com os profissionais. Zetti era o titular absoluto, com o pernambucano Gilberto como reserva. E o 3º goleiro era a jovem promessa Alexandre, de 20 anos, que muitos diziam ter vaga assegurada no time profissional, já naquela temporada de 1992. Essa certeza veio na Libertadores, a primeira conquistada pelo São Paulo.

Marilene e a medalha da Libertadores
No primeiro jogo contra o Nacional do Uruguai, em Montevidéu, pelas oitavas-de-final, Zetti foi expulso no segundo tempo. Alexandre entrou e segurou a apertada vitória por 1 a 0. No Morumbi, na partida de volta, o jovem goleiro foi titular e teve uma elogiada atuação na vitória por 2 a 0, classificando o São Paulo para as quartas-de-final. Depois de levantar o troféu, com Alexandre no banco de reservas, Zetti foi sondado por um clube europeu - e a diretoria sãopaulina estava prestes a fechar o negócio. "O Zetti ia mudar para um time da Alemanha, não me recordo o nome, em 92. Estava tudo certo. O Alexandre seria titular", contou Marilene Escobar, mãe de Alexandre, ao Globo Esporte, em 2012. Aí, o "Imponderável de Almeida" deu as caras outra vez - dessa vez, de forma cruel.

Rogério Ceni campeão no Japão (1993)
No dia 18 de julho de 1992, um mês e um dia após conquistar a Libertadores pelo São Paulo, Alexandre, que tinha acabado de ficar noivo e de comprar um carro (sinal de que a a venda de Zetti e ascensão do jovem ao time titular de Telê pode mesmo ter algum fundo de verdade) foi a um churrasco com alguns jogadores do clube na capital paulista. Na volta, sozinho, bateu o veículo em uma mureta na rodovia Castello Branco. E morreu na hora. "Alexandre era muito melhor do que eu. Velocidade incrível de movimentos, excelente chute. Telê Santana adorava! (...) Minha carreira, com certeza, seria completamente diferente caso Alexandre não tivesse partido. Ele era apenas um ano mais velho do que eu. Ocuparia a sua posição por muito tempo. Quem sabe até hoje", reconhece Rogério Ceni, no livro "Maioridade Penal – 18 anos de histórias inéditas da marca da cal".

Notícia da morte do jovem goleiro: foi socorrido com vida, mas não resistiu aos ferimentos
Ceni e Muricy no São Paulo (1996)
De acordo com a mãe de Alexandre, sua morte trágica fez com que o São Paulo desistisse de vender Zetti. No ano seguinte, Rogério Ceni estreou no time profissional, em uma excursão à Espanha. E garantiu seu posto no banco de reservas nas conquistas da Libertadores e do Mundial de 1993. No ano seguinte, sua trajetória começaria a se confundir com a de Muricy Ramalho. Como auxiliar de Telê, o jovem técnico foi incumbido de comandar o "Expressinho" do Tricolor, um "catado" de reservas e de atletas da base que disputava as competições que o time principal, por conflito de datas, não podia disputar. E foi com Rogério no gol que Muricy ganhou seu primeiro troféu, da Copa Conmebol.

Rogério Ceni comemora seu 1º gol
No início de 1996, outra fatalidade: Telê sofreu uma isquemia e se afastou definitivamente do futebol. Mais uma vez, sem esperar, Muricy acabou como técnico, de fato, do São Paulo. Depois de um curto período de volta ao posto de auxiliar, no Brasileirão daquele ano, quando o time foi comandado por Carlos Alberto Parreira, Muricy tornou-se técnico efetivo do São Paulo. E iniciou a temporada de 1997 com Rogério Ceni como titular, após a venda de Zetti. Ali, o técnico tomou uma atitude ousada: como o goleiro era o que mais treinava cobrança de faltas nos treinos, permitiu que ele fosse o cobrador oficial nas partidas. Em 15 de fevereiro de 1997, sob o comando de Muricy, Ceni marcou de falta o primeiro dos 114 gols que marcou até hoje, como maior goleiro-artilheiro do mundo.

Dá a impressão, portanto, que técnico e goleiro estavam fadados a fazer história no São Paulo. Pelo menos pela "forcinha" que o "Imponderável - ou Sobrenatural - de Almeida" deu para que assim fosse, naquele fatídico ano de 1992...

quarta-feira, março 12, 2014

'Danonezinho'

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Aloísio, Muricy e Milton Cruz durante treino do São Paulo em Maceió
Que o Muricy Ramalho gosta de "molhar a palavra", não resta dúvida (vide episódio da caipirinha no seu acerto com o Santos ou o da cerveja durante as férias compulsórias após sair daquele clube). Por isso mesmo, o treinador vai aproveitar a passagem por Maceió, onde o São Paulo enfrenta o CSA hoje, em sua estreia na Copa do Brasil, para dar mais um tapa na goela. E seu companheiro de copo, dessa vez, será o folclórico centroavante Aloísio Chulapa, que apareceu no treino de ontem do Tricolor, na capital alagoana, para reencontrar o "patrão" Rogério Ceni e os ex-comandantes Muricy e Milton Cruz. Quem relata é o repórter Bruno Quaresma, do jornal Lance!:

Conversou com o Muricy?
Aloísio Chulapa - Quando saí [do São Paulo], ele me falou foi que quando viesse para Alagoas queria tomar um "danonezinho", que é cerveja com colarinho. Graças a Deus chegou essa oportunidade.


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Rogério Ceni, um fã e a placa do Bolsa Família: parecia propaganda
POST SCRIPTUM - Ainda sobre Aloísio Chulapa e a viagem do São Paulo à Alagoas, vi depois de fazer esse post que ele levou o Rogério Ceni para sua cidade natal, Atalaia, a 68 quilômetros de Maceió, para inaugurar uma escolinha de futebol. O curioso foi ver que, involuntariamente (óbvio!), o goleiro sãopaulino, que nutre notória e pública admiração pelo PSDB e por José Serra, posou para uma foto com uma placa gigante do Bolsa Família ao fundo. Para refrescar a memória, reproduzo declarações de Ceni e do político tucano sobre o programa do governo federal (que injetou R$ 2,1 bilhões na economia brasileira em fevereiro deste ano e que recentemente foi considerado "exemplo de erradicação de pobreza" pela ONU):

"A pessoa raciocina assim: eu tenho o Bolsa Família, o Bolsa Escola, isso me dá cento e tantos reais, então eu prefiro ficar em casa do que arriscar, do que ter que trabalhar. (...) Eu vejo isso como um fator determinante para o não crescimento do nosso país." (entrevista de Rogério Ceni ao programa Roda Viva, da TV Cultura, em 30/10/2006)

"Bolsa Família não é a solução. Ele estaciona. Para a pessoa subir na vida precisa mais do que isso. Não se fez inovação nenhuma." (entrevista de Serra à Rádio Metrópole, de Salvador, em 06/08/2013)