Enciclopédia. Essa era a alcunha pela
qual também atendia Nilton Reis dos Santos, nascido em 16 de maio de
1925 e falecido em 27 de novembro de 2013.Um atleta que atuou em
quatro Copas do Mundo, vivendo a tragédia da Copa de 1950, passando
pela frustração de 1954, chegando ao triunfo de 1958 e à
consagração final em 1962. Foram 18 anos de Botafogo, 792 partidas
com a camisa da Estrela Solitária. E olha que ele quase parou no São
Cristovão...
A passagem está no livro Recados da
Bola (Cosac Naify), organizado por Jorge Vasconcellos. Em 1945,
Nilton entrou para a Aeronáutica e atuava no time de lá. No fim de
1947, a equipe fez um jogo-treino contra os titulares do São
Cristovão e o técnico rival, Arquimedes, quis levá-lo para o
clube. Mas um major da Aeronáutica o aconselhou: “Se for para
tentar um clube, que seja um clube grande”, disse o oficial
Honório, que tinha um tio, Bento Ribeiro, à época diretor social
do Botafogo. E o então meia foi para General Severiano tentar a
sorte. Mas quem deu sorte foi o Alvinegro.
Carlito Rocha, presidente do clube
carioca, recebeu o aspirante a jogador e perguntou sua altura. “Um
metro e oitenta e um”, respondeu Nilton. “Você é do meio pra
trás”, vaticinou. E assim nascia um dos maiores – se não o
maior – laterais esquerdos da História. Um jogador que tinha a
vantagem de ser ambidestro. “Eu usava as duas pernas, saía jogando
para onde estivesse virado; se estivesse voltado para dentro do
campo, saía com a esquerda; se estivesse virado para o outro lado,
saía com a esquerda. Nunca fiz gol contra. Veja o Roberto Carlos,
que nem tem tanto tempo de Seleção [a entrevista foi feita em
1994] assim e já fez gol contra. Por quê? Porque vai correndo
para dentro da área, bate na perna ruim e entra”, diz, em
depoimento retratado em Recados da Bola.
Da tragédia de 1950 à consagração de 1962
Na obra, ele reclama do técnico da
seleção de 1950, Flávio Costa, o acusando de autoritarismo. Foi
convocado para ser reserva do lateral-direito de Augusto, capitão do
time. No lado canhoto, havia o titular Bigode eu reserva Noronha.
“Acho que ele só me chamou como justificativa, para não dizer que
não chamou ninguém do Botafogo.” Ele atribuía a derrota no
Mundial ao treinador. “Se ele fosse para o Botafogo, eu não
ficaria o tempo que fiquei no clube, porque ele era muito
autoritário, e eu achava (embora não falasse), como acho até hoje,
que o técnico precisa mais do jogador do que o jogador do técnico.
Eu, na condição de jogador de futebol, se não jogar aqui, jogo
ali. A consagração do técnico só acontece quando o time ganha, e
quem ganha sou eu e não ele.”
Nilton dizia que o segredo das vitórias
em 1958 e 1962 era a união dos jogadores. Ninguém torcia para
alguém se machucar e poder entrar. Além disso, o treinador da Copa na Suécia,
Vicente Feola, era de “trocar ideias”, sendo que o
preparador físico Paulo Amaral, também era merecedor de elogios do Enciclopédia. Aymoré manteve o esquema em 1962 e obteve o sonhado bicampeonato.
Na Copa no Chile, aliás, um dos lances que marcou sua carreira: o
esperto passo para a frente que fez com que não fosse anotado
pênalti a favor da seleção da Espanha, quando o Brasil perdia
por 1 a 0, derrota que o desclassificaria na primeira fase.
“Por sorte, dei o tal passo à
frente. Foi num contra-ataque da Espanha. Eu fiz um pênalti no
ponta-esquerda Collar, mas o juiz estava longe do lance. Então
cinicamente levantei as mãos como um gesto de que não tinha feito
nada e dei um passo à frente. Quando ele chegou, marcou falta onde
eu estava. Naquela hora, valeu a presença de espírito, jogador de
pelada tem esses recursos”, explicou em depoimento no livro. “Os
espanhóis reclamaram, mas não adiantou. O cara bateu achando que
dali faria o gol do mesmo jeito – eles estavam ganhando de 1 X 0,
marcaria o segundo e acabaria com a gente. O que passou pela minha
cabeça é que se eu desse uns dois passo chamaria muito a atenção.”
O lance está em 0:32 do vídeo abaixo.
Nilton Santos. Eterno (Divulgação/Botafogo)
Bicampeão do mundo como titular, aos
38 anos. Feito para poucos. Aos 82, foi diagnosticado com o cruel Mal
de Alzheimer. Mas para resumir sua grandiosa jornada, vale o último
parágrafo do belo texto de João Máximo e Mascos de Castro em outro
belo livro, Gigantes do Futebol Brasileiro (Civilização
Brasileira):
“Nilton Santos é, numa palavra,
eterno. Entre os troféus e medalhas ganhos, um há de ficar, por sua
singeleza, como a mais perfeita definição de uma vida dedicada ao
futebol – a bola com que os amigos o presentearam, em 1983, com a
seguinte dedicatória: “Mestre Nilton, hoje estou realizando o
sonho de felicidade de todas as bolas do mundo: ser só sua para
sempre.”
Em um dia 17 de junho como hoje o Brasil defendia seu
primeiro título mundial de futebol, conquistado quatro anos antes na Suécia. A base titular daquela seleção
era praticamente a mesma de 1958, inicialmente, apenas com
duas mudanças: os zagueiros, Mauro e Zózimo,
no lugar de Bellini e Orlando. Nílton Santos, mesmo com 37 anos e já
atuando como zagueiro pelo Botafogo por conta da idade, foi escalado
como titular, barrando Rildo, do Santos, que fazia parte da primeira
lista de 41 convocados mas acabou cortado. Já Coutinho, que vinha
jogando no time de Aymoré Moreira, foi para a reserva e cedeu lugar
para Vavá no Mundial, pois o treinador privilegiou a experiência
dos campeões de 58.
Dos 22 atletas que
foram ao Chile, sete eram do Santos, cinco do Botafogo, três do
Palmeiras, três do Fluminense e dois do São Paulo. Ainda havia
Zózimo, do Bangu, e o jovem Jair da Costa, da Portuguesa. O grupo da
seleção no torneio contava com México, Tchecoslováquia e Espanha.
A estreia foi contra os mexicanos e o Brasil venceu por 2 a 0, mas
não jogou um futebol convincente. Pelé fez o cruzamento para
Zagallo marcar o primeiro gol da partida, que só surgiu aos 11 do
segundo tempo e o próprio Dez marcou o segundo, depois de driblar
dois adversários, aos 28.
Mas se a desconfiança
pairava sobre a seleção, que muitos viam como uma equipe
envelhecida, a situação ficaria ainda pior na segunda partida. O
jogo entre Brasil e Tchecoslováquia terminou em zero a zero, mas a notícia ruim foi a contusão de Pelé, que, aos 27 minutos, depois de
finalizar de fora da área, sentiu a virilha esquerda. Sem condições
de atuar, ficou em campo até o final, já que não eram permitidas
substituições. No dia seguinte, o diagnóstico de distensão no
músculo adutor da coxa esquerda confirmava os temores do time e da
torcida: Pelé estava fora da Copa.
Na partida que fechou a
primeira fase, o Brasil precisava somente do empate para ir às
quartas de final do Mundial, mas a Espanha era um time forte, que
tinha praticamente o ataque do Real Madrid campeão europeu. E
contava com um expediente que depois seria proibido: a naturalização
de atletas, mesmo daqueles que já tinham disputado jogos por outras
seleções. Assim, a Fúria vinha com o húngaro Puskas e o argentino
Di Stefano, que chegou ao Chile contundido, além do uruguaio
Santamaría e o paraguaio Martínez. Após a Copa, a Fifa proibiu a
“naturalização por atacado”, que estava virando moda, como
mostrava a seleção da Itália, que também tinha os seus: os
brasileiros Sormani e Altafini e os argentinos Sívori e Maschio
O time inteiro jogava
mal e a Espanha chegou ao gol aos 35, com Adelardo. Tudo poderia
ter sido ainda pior se não fossem dois grandes erros da arbitragem. O
primeiro, em um lance que já se tornou lenda, no qual Nílton Santos
derrubou Collar na área mas, espertamente, deu um passo à frente,
ludibriando o árbitro chileno Sergio Bustamante. Na sequência, após
a cobrança de falta de Puskas, Peiró marcou de bicicleta, mas o gol
foi anulado por Bustamante ter entendido o lance como “jogada
perigosa”, ainda que Peiró estivesse a mais de um metro de Zózimo.
O vídeo abaixo mostra dos dois lances. Amarildo e Garrincha
marcariam a virada brasileira.
E Garrincha apareceu
Vieram as quartas de final
foram contra a Inglaterra e, finalmente, brilhou a estrela de
Garrincha. O ponta havia sido muito criticado pelo seu desempenho na
primeira fase e, sem Pelé, o Brasil apostava no talento do craque
das pernas tortas. Ele marcou o primeiro tento da partida, de cabeça,
mas os ingleses empataram oito minutos depois, com Hitchens. A
igualdade persistiu até os 8 do segundo tempo, quando Vavá escorou
após rebote do goleiro Springett em cobrança de Garrincha. O ponta
faria ainda o terceiro, em chute de fora da área. Naquele dia,
Garrincha só seria driblado por um cachorro que entrou em campo
paralisando a peleja. Outro cão provocou uma segunda paralisação e
sumiu debaixo das arquibancadas.
A semifinal seria
contra os donos da casa e a seleção tentou se precaver contra
qualquer imprevisto. Tanto que a refeições do dia da semifinal
foram providenciadas pela própria comissão técnica brasileira, que
tinha medo de algum “problema” com a comida servida aos jogadores
no hotel. Na partida, o infernal Garrincha assegurou a vantagem logo
aos 9, com um chute de fora da área que foi parar no ângulo
esquerdo de Escuti. Ele marcaria novamente aos 31, de cabeça, com o
Chile descontando em cobrança de falta aos 41 ainda do primeiro
tempo.
Logo no início da
segunda etapa, Vavá não deixou os anfitriões se animarem, e marcou
após escanteio. Leonel Sanchez descontou de pênalti e Vavá
fez o quarto, aos 33. Depois do último gol, o jogo sairia do
controle do árbitro peruano Arturo Yamazaki. Landa foi expulso após
falta dura em Zito e Garrincha, caçado durante todo o tempo, revidou
em cima de Rojas, agredindo o chileno. O juiz não viu o lance, mas
foi cercado pelos chilenos, que apelaram para o testemunho do
auxiliar uruguaio Esteban Marino, que confirmou a agressão. Como não
havia suspensão automática, ficava a dúvida: Garrincha poderia
jogar a final pelo Brasil?
E daí surge mais um
episódio “estranho” a favor dos brasileiros. Em sessão
extraordinária do Tribunal da Fifa, o árbitro disse não ter visto
a agressão, mas que o uruguaio Marino havia confirmado que ela tinha
existido. Convocado para depor, Marino não compareceu, pois já teria
deixado o Chile àquela altura. Sem o depoimento, Garrincha foi
liberado para atuar contra a Tchecoslováquia. À época, dizia-se
que a CBD teria pago a viagem de Marino, que estaria no Brasil.
Um mês após a Copa, o uruguaio foi contratado pela Federação
Paulista de Futebol.
No dia da final,
Garrincha amanheceu com febre e não teve a destacada atuação dos
dois jogos anteriores. Os tchecos aproveitaram e abriram o placar aos
15. Mas somente dois minutos depois do gol de Masopust, Amarildo
empatou, em um lance no qual o arqueiro Schroif fez um fatídico golpe de
vista.
Na etapa final, a
seleção veio melhor, mas poderia ter encontrado mais problemas se o
árbitro Nikolai Latchev tivesse marcado pênalti quando Djalma
Santos tocou a bola com o braço dentro da área, em cruzamento de
Jelinek. Como o juizão interpretou “bola na mão”,
o jogo seguiu e, aos 24, Amarildo fez grande jogada pela esquerda e
cruzou para Zito, que marcou. Algo raro, já que, por ser volante, o santista costumava chegar pouco à área e na sua trajetória com a camisa do Brasil foram apenas três gols. Um deles, este, que pode ser considerado o do título.
Após nova falha, mais grotesca, de Schroif, Vavá fez
o terceiro aos 33 e selou a vitória brasileira. O país que tinha
complexo de vira-latas no futebol antes do Mundial de 58, vencia pela
segunda vez a Copa do Mundo. E como perguntar não ofende, será que algum jogador, desses que costumam imitar João Sorrisão e quetais, na rodada do Brasileirão de hoje vai lembrar de homenagear os grandes de 1962?
Boa parte das
informações contidas neste post estão no ótimo livro de Lycio
Vellozo Ribas, O
mundo das Copas. Mais que recomendável.