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Amanhecer na entrada do Vale do Elqui |
A cidade é uma curva na estrada, no vale do Elqui, em direção à cordilheira. A igrejinha
com uma única torre se coloca no centro deste cenário ao mesmo tempo delicado e
grandioso: barrancos secos cor de serragem, coberto de vinhas igualmente secas,
perfeitamente perfiladas; ao fundo, os picos nevados.
É neste pequeno lugar que se encontra a mais antiga e
respeitada destilaria artesanal de pisco do Chile. O vilarejo chama-se Pisco
Elqui, e foi ali que viveu, ainda no século XIX, Rigoberto Rodriguez Rodriguez,
o homem responsável por tornar uma lenda o pisco 3Rs (marca que hoje é
explorada por uma grande indústria exportadora).
Com mais um punhado de casas, esta é Pisco Elqui. |
Arrisco dizer que Don Rigoberto está para o pisco chileno
como Anísio Santiago está para a cachaça mineira. Sua pequena destilaria hoje
se chama Los Nichos e fica na beira da estrada, poucos quilômetros depois de
passada a igrejinha. Acompanhei uma visita guiada ao local com o guia Carlos,
que nos explicou todo o processo de produção da bebida.
Intervalo cultural: a produção do pisco
Na semana em que o Futepoca esteve no Chile, no início de
agosto, a seleção do país austral havia perdido da seleção do Peru por 2 a 1,
sendo o gol chileno na realidade um contra do zagueiro peruano. Os descendentes
dos incas não perderam a oportunidade de dizer que até os gols chilenos são, na
verdade, peruanos.
Com o pisco acontece a mesma coisa. O Peru afirma que o
pisco original e único verdadeiro é produzido em suas terras. O guia Carlos
explicou que a produção de pisco em seu país é tão antiga quanto no país vizinho,
mas que no Chile a grande indústria (como o Capel, a 51 do pisco) proliferou de
tal modo que desfigurou completamente a bebida original. Um verdadeiro pisco
artesanal chileno é tão bom ou melhor que o seu correspondente peruano.
Diferente da grappa
italiana ou da bagaceira portuguesa, que destilam o produto da fermentação do
bagaço da uva, o pisco (como o Cognac) é um destilado de vinho. Primeiro
produz-se um vinho muito doce e de alto teor alcoólico, a partir de uvas
brancas como a moscatel. Este vinho é fermentado, produzindo um mosto, que é
decantado e, depois, destilado. Despreza-se a cabeça e a cauda da para ficar
apenas com o coração da destilação, o chamado “álcool de pisco”.
Neste estágio, o licor tem graduação alcoólica entre 70 e
80%. É então diluído em água, obtendo-se a graduação desejada, de 30% até 45%.
Conforme me explicou Carlos, o pisco tradicional não é envelhecido. Foi a má
fama adquirida pelo produto industrial que levou alguns fabricantes a
envelhecerem o pisco em carvalho, como esta fosse a razão da qualidade. Não é.
Epitáfios a quem sai
na horizontal
Nichos à esquerda, habitados pelos espíritos de manguaças ilustres. |
Foi numa mesa colocada diante de suas melhores garrafas que Don Rigoberto
recebeu as mais ilustres figuras da sociedade chilena, entre eles vários chefes
de Estado, além de comparsas locais. Aos amigos do peito, homens de caráter
que por pelo menos cinco vezes “entrassem nas covas na vertical e saíssem na
horizontal”, Rigoberto reservava-lhes um nicho e escrevia um epitáfio. Hoje,
cada nicho é dedicado a um desses nobres senhores, cujo espírito habita entre as garrafas.
Comprei duas, uma de Los Nichos e outra de Espírito del Elqui, mais forte. A primeira é para os amigos, a ser compartilhada em plena alegria; a outra, para beber só, é dos inimigos, para quando
fazem meu fígado trabalhar demais e preciso dar-lhe alguma tarefa que me
devolva à sensatez.