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Um ônibus vindo da estação Barra Funda do metrô para o largo de Pinheiros, às 16h30 de uma quarta-feira. Eu de pé, e dois figuras sentados conversam. Pelo conteúdo, eu presumiria que ambos são trabalhadores da construção civil autônomos, aproveitando o crescimento do setor nos últimos anos. O da janela saca uma garrafinha de plástico, abre, e toma um gole. O do corredor não perdoa:
— É cachaça, né? Já tá tomando uma...
Um olhar híbrido de condenação e iminência de xingamentos múltiplos se dirigiu ao acusador. Depois de alguma insistência, a recusa:
— É água! Sou prevenido.
— Água? É cachaça, vai – devolveu rápido.
— É água. Pra se eu tiver sede no dia. Sou prevenido.
— Mas que sede? Vai tomar água quente aí guardada na bolsa. A geladinha é cinquenta centavos!
O da garrafinha resmungou alguma coisa sobre as formas de manter o líquido fresco, que ele não era rico pra ficar gastando, mas parou ao se dar conta de que o preço era muito baixo.
— Cinquenta centavos? Onde é isso?
— Lá no ponto do ônibus, cinquenta centavos.
— Ih, rapaz, que água é essa? Cê bebe essa água três dias e já era, tá morto.
Aí começou a fazer as contas para provar por a mais be que o vendedor provavelmente comprava água em galão ou sabe-se lá onde e lançava mão de algum tipo de envase artesanal, sem garantias de higiene.
O outro achou graça do prazo de vida que restaria para o bebedor de água e concordou, era melhor comprar na loja, na padaria, onde fosse, porque o risco seria menor. O informal é mais barato, mas pode sair um problema.
Quando parecia que o consenso se aproximava, acho que eles olharam pela janela e viram que o ponto final estava longe. E recomeçaram:
— Tem coisa que não dá — recuou o da garrafa — Lá, do lado de casa, o preço do saco de cal com 20 quilos é cinco e trinta...
— Mas você pede nota fiscal?
— O quê?
— É, você pede nota fiscal? Tem que ser nota fiscal paulista, hein?
— Que... — desdenhou depois de uma pausa — se o cara paga a nota, não chega no preço.
— É, mas aí você tá roubando o dinheiro do... do... lá do governo!
— Mas eles vão roubar mesmo, pelo menos não tenho que ouvir [patrão] dizer que tô passando a mão no material.
E assim, uma leva de gente subiu e me jogou para o fim do coletivo, distante do momento em que a tão profícua conversa chegaria ao futebol. Se bem que é com cal se marca o gramado e, na verdade, os caras podem ser jogadores de futebol de várzea e não construtores autônomos. Vai ver eu que entendi errado.
3 comentários:
A opressão do capital levando o trabalhador a sonegar impostos e lesar o Estado.
Um dia fui visitar um amigo em Santo Amaro e não sabia em que ponto descer. Perguntei para o cobrador e ele estava tomando uma garrafinha de água mineral, mas, ao me responder, pude comprovar que era, na verdade, da que passarinho não bebe...
Essas conversas de ônibus são sensacionais! Foda é que pra ouvir isso temos que ouvir alguns infelizes que não sabem ler as plaquinhas de "proibido o uso de aparelhos sonoros" e nos divertem no coletivo com uma mistura de funk e forró. A trilha sonora ideal pra um longo passeio em pé e espremido.
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