Destaques

Mostrando postagens com marcador canto dos malditos. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador canto dos malditos. Mostrar todas as postagens

terça-feira, junho 03, 2008

O último canto do "maldito"

Compartilhe no Twitter
Compartilhe no Facebook

Hoje faz uma semana que perdemos Austregésilo Carrano Bueno (foto), ativista da luta antimanicomial que inspirou o filme "Bicho de sete cabeças", de Laís Bodansky. Morreu no Hospital das Clínicas, em São Paulo (perto da minha casa, sem que eu soubesse), aos 51 anos, vítima de câncer no fígado. Fiquei mal com a história, pois conheci Carrano em 2001, no lançamento do filme em Fortaleza (CE). Na época, eu fazia assessoria de imprensa voluntária para a luta antimanicomial. Ficamos amigos, por assim dizer. Sempre nos encontrávamos para beber e conversar quando ele ia ao Ceará, trocávamos emails. Ele me contou o quanto os hospícios foram financiados pela ditadura militar, como alternativas de prisões políticas, e me presenteou com o livro "Canto dos malditos", base da versão cinematográfica. Só que o texto de Carrano, autobiográfico, é uma porrada no estômago, faz o filme parecer um conto de fadas.

Internado aos 17 anos pelo pai, que foi aconselhado por um amigo policial a agir assim depois de descobrir cigarros de maconha na jaqueta do filho, Carrano viveu quase uma década sedado, sofria agressões e sessões sádicas de eletrochoque - práticas comuns nos hospícios. Uma vez ele pediu para eu apalpar a base de seu crânio, perto da nuca, onde havia um desnível provocado pelas pancadas que dava com a cabeça quando era eletrocutado. Também mordeu e engoliu parte da língua numa dessas sessões de horrores. Na época que ele me deu o livro, a obra estava proibida por pedido judicial da família do proprietário do hospital espírita onde foi internado nos anos 1970. Carrano chegou a ser ameaçado de prisão e de pagar R$ 60 mil de multa pelo o que havia escrito e publicado. Seus emails falavam dessa briga.

Depois de ler "Canto dos malditos" fiquei tão atordoado que "transpirei" uns versos angustiados. Pensei em mostrar para o Carrano, mas não deu tempo. Transcrevo meu escrito abaixo, portanto, como homenagem póstuma a esse grande cidadão, que chegou a ser homenageado em vida, em 28 de maio de 2003, pelo Ministério da Saúde e pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva por sua luta e empenho na construção da rede nacional de trabalhos substitutivos aos hospitais psiquiátricos no Brasil. Valeu, Carrano!

PELOS CANTOS

sinto solto o sangue
sento, santo
sufocando o canto
dos malditos

sangro sem saber
e ouço sempre
gritos, prantos
mal contidos
pretos, brancos
mal vestidos
sujos
cegos, surdos
praguejando mudos
contemplando o muro
sem saída

sigo só e sonolento
tento ser, nessa cabeça
alguém
mas não sou

sopro a sede
a boca seca pede
e não impede a morte
sério, sangro e morro
sem sucesso
sem socorro
ressuscito
sofro
santo, morto
assim
maldito até o fim