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Em uma decisão
aparentemente inédita no Brasil, a Justiça obrigou uma grávida,
Adelir Góes, a realizar uma cesariana contra sua vontade. O pedido
foi realizado por duas médicas obstetras do Hospital Nossa Senhora
dos Navegantes, no município de Torres (RS) e acatado pela juíza
Liliane Mog da Silva. Adelir aceitou ser conduzida à cirurgia depois
de ouvir que seu marido seria preso caso ela resistisse.
1 – Contexto – sistema obstétrico brasileiro, uma jabuticaba podre
Para entender de fato o
que aconteceu, é preciso conhecer os meandros do sistema obstétrico
brasileiro, líder mundial em número de cesarianas. Não é
uma narrativa fácil pois envolve uma multiplicidade de
atores, cada um com seus motivos e, principalmente, suas
contradições. O que apresento agora é um resumo esquemático,
usando o caso Adelir como guia, sem pretensão de esgotar o assunto.
Adelir, 29 anos, já havia
passado por outras três gestações. Uma terminou em um aborto
espontâneo e as outras duas em cirurgias cesarianas. Dada a fragilidade de Adelir no momento, as
circunstâncias desses partos ainda não são conhecidas do grande
público. Depois da segunda cesariana, ela ouviu do médico que uma terceira cirurgia seria muito arriscada. Engravidou novamente por um erro no uso da pílula.
O relato usual de
mulheres que fizeram cesarianas mesmo querendo parto normal, no
entanto, costuma ser bastante semelhante. O meu, inclusive. Ainda que
não haja complicações aparentes, os obstetras começam a afirmar,
normalmente a partir de 30 semanas de gestação, que um parto normal
está saindo de cena, por motivos mil. Alguns dos mais comuns são
cordão umbilical enrolado no pescoço (falso), cabeça muito grande
do bebê, mais precisamente desproporção cefalo-pélvica
(existente, porém diagnosticada apenas em pleno trabalho de parto),
pouco líquido amniótico (pode vir a ser um problema, mas na maior
parte dos casos o problema é resolvido com a ingestão de muito
líquido, não com uma cirurgia), mais de 40 semanas de gestação
(falso), idade materna avançada, a partir de 35 anos (falso),
gestação de gêmeos (falso) e muitos outros, listados
aqui.
No meu caso, a obstetra
tentou jogar a ficha da desproporção cefalo-pélvica. Fiz cara de
paisagem. Na minha cabeça, ficar em casa esperando o trabalho de
parto evoluir resolveria minha situação. Com 38 semanas, a bomba: a
ultrassonografia havia mostrado que minha placenta estava
“envelhecida”, ou seja, passando poucos nutrientes para o bebê.
Essa motivação para a cesariana eu não conhecia. Numa cidade nova,
sem ter para quem pedir indicações de obstetras confiáveis (eu
ainda confiava na minha) para uma segunda opinião, simplesmente
chorei e aceitei. Depois descobri que esse motivo para a cirurgia é
bastante duvidoso. Mas só depois. Há casos muitíssimo piores de
coação para uma cesariana. Essa
página do Facebook lista histórias
de mulheres que passaram por isso.
As razões para essa
situação são múltiplas e provavelmente não todas conhecidas.
Entre elas estão a falha da formação de médicos, que não
encaram, ainda na faculdade, o parto como um evento fisiológico, mas
como um processo médico, sempre (foco no sempre) passível de intervenções. Outro
problema é a forma como o pré-natal é feito, especialmente no
sistema de saúde privado. A grávida escolhe um médico para
acompanhá-la durante a gravidez e é esse médico que, via de regra,
fará o seu parto. O problema desse esquema é a dificuldade de
conciliação da agenda de consultório com trabalhos de parto
longos. Desde o início das contrações, a mulher pode passar dias
até entrar em franco trabalho de parto. Mesmo que o médico
mobilize-se apenas quando as contrações passam a ser ritmadas e em
intervalos curtos, o tempo até o parto propriamente dito não raro
chega às 24 horas. Isso traz um problema quase insolúvel para o
médico. Não falo aqui nem de ganância (existente, fato), mas de
respeito com as outras pacientes. Se a cada parto o médico for
obrigado a desmarcar toda a agenda, o sistema não anda.
Claro que a solução
encontrada aqui no Brasil é a pior de todas: agendamento rotineiro
de cesarianas fora do trabalho de parto, um desastre de proporções
gigantescas. O que deveria acontecer era, em gestações saudáveis –
a ampla maioria – um parto assistido por obstetrizes (profissional
com ensino superior em Obstetrícia), enfermeiras especializadas ou
mesmo obstetras de plantão. O obstetra do pré-natal apareceria
apenas em partos de risco. Faltam também, nos hospitais, locais onde
a mulher possa esperar a evolução do trabalho de parto. O que
acontece hoje é que existe a hotelaria e o centro cirúrgico, mais
nada. Alguns hospitais têm salas de parto humanizado, mas mesmo
esses apresentam altos índices de cesarianas, mostrando que essa
ideia ainda não foi absorvida pelo sistema obstétrico.
Um exemplo divertido de
como o parto normal é encarado fora do Brasil é a representação
dos nascimentos dos trigêmeos de Phoebe e da filha de Rachel, no
seriado Friends. Ambas têm seus filhos de parto normal em situações
que, no Brasil, seriam indicação inapelável para cesarianas:
gestação múltipla, demora na evolução do trabalho de parto e bebê pélvico, ou seja, com as nádegas, e não a cabeça, para baixo. O
episódio não deixa claro quantas horas Rachel espera pelo
nascimento de Emma, mas aparentemente são mais de 24 horas. Apenas no
momento do parto, a parteira/obstetriz descobre que o bebê está na posição errada e tudo o que diz é "você terá que fazer mais força". E tudo isso sem os gritos tão comuns nas representações de
trabalho de parto na teledramaturgia brasileira. Infelizmente não encontrei a cena de Phoebe em trabalho de parto.
É bom lembrar que é
apenas o início do trabalho de parto que indica que aquele bebê
está pronto de verdade para nascer. Mesmo com 40 semanas de gestação
é possível que os pulmões do feto não estejam amadurecidos. Pode
não parecer, mas a natureza tem seus mecanismos. Se não há
trabalho de parto ainda, algum motivo existe. Não consegui achar os
dados epidemiológicos do país para mostrar aqui, mas esses dois
estudos, um realizado em Cascavel (PR) e outro em Pelotas (RS)
mostram que a prematuridade é o principal motivo de morte em bebês.
E qual o motivo para o aumento da prematuridade? As cesarianas
eletivas sem indicação médica. De acordo com o Ministério da
Saúde, a chance de internação de crianças nascidas em parto
vaginal é de 3%, enquanto as nascidas em cesarianas são internadas
em 12% das vezes.
Eu poderia falar
parágrafos sobre ética médica, problemas nos planos de saúde,
falhas do SUS, representação social do parto normal, arrogância
médica e outros fatores que influenciam o alto número de cesarianas
no Brasil, mas acredito que meu ponto principal já esteja colocado.
Vamos adiante.
2 – Disputas entre as
visões da medicina
Como qualquer campo do
saber, a medicina e a obstetrícia especificamente são palco de
disputas. Seja dentro da academia, seja na prática dos hospitais,
seja nos grupos de grávidas e mães, cada um quer usar os melhores
argumentos a seu favor, aqueles que reforcem suas teses. Não há
ingenuidade aqui. É evidente que os obstetras brasileiros são
bastante competentes naquilo que se propõem a fazer. Eu não
duvidaria que o Brasil seja o lugar que forma os melhores fazedores
de cesarianas, afinal é praticamente só o que a maior parte deles
sabe fazer.
Entretanto, a minha
experiência e estudo (leio sobre o assunto há 3 anos sem parar) é
que, enquanto os médicos ditos cesaristas e/ou intervencionistas
costumam afirmar que tomam suas decisões baseadas na prática
pessoal, os profissionais que atuam no movimento de humanização do
parto apresentam o maior número de estudos científicos possíveis
para mostrar que alguns procedimentos são equivocados. Isso é um
pouco óbvio, já que quem domina o sistema não tem motivos para se
importar em justificar seus atos. Quem busca o seu espaço acaba
trabalhando em dobro para rebater ideias incrustadas no inconsciente
coletivo.
A maior expoente dessa
prática de rebater práticas tradicionais nos nosso partos é a
obstetra Melania Amorim, que mantém o blog
Estuda, Melania, Estuda!.
Ela cita tantos estudos que dá pra se perder por lá. Recomendo para
todos que queiram aprofundar-se no assunto.
Citar estudos sem fim
garante que sua visão sobre o parto esteja “correta”, seja lá o
que isso signifique? Não, mas eleva a discussão para outro nível.
Passa-se do argumento de autoridade para uma discussão com base em
fatos.
3 – O movimento nacional
pela humanização do parto
Frente ao cenário
calamitoso de cesarianas no Brasil, era de se esperar que houvesse um
movimento de contraposição. O que começou com grupos desconexos de
mulheres reclamando de suas cesarianas desnecessárias virou um
movimento nacional articulado que vem conseguindo avanços
importantes. A luta dessas mulheres é para que todas as gestantes
recebam informação de qualidade durante o pré-natal (durante a
vida na verdade) para que possa escolher a forma de parir que mais
lhe aprouver. E também para que o sistema obstétrico esteja
preparado para receber essa gestante em sua escolha, qualquer que
seja ela. Sim, é verdade. Apesar de ser óbvio que as integrantes
desse movimento rechacem a ideia de cesarianas marcadas com
antecedência sem motivo médico, não passa pela cabeça de ninguém
propor que essas cirurgias sejam proibidas (ok, deve passar pela
cabeça de alguém, mas não é uma reivindicação do movimento).
Lutam, também, pelo fim
da
violência obstétrica, que atinge
uma em cada quatro parturientes
no país. A violência obstétrica vai desde agressões verbais
(coisas do tipo: “para de gritar, na hora de fazer não gritou”),
passa por o uso de procedimentos sem explicação ou mesmo com um pedido ativo para que não sejam realizados (episiotomia, o corte
no períneo, é um caso clássico) e chega a procedimentos realizados
de maneira violenta (há casos em que a episiotomia chegou até a
coxa da paciente. Empurrar a barriga da gestante para "acelerar" o parto também é muito comum).
O assunto sempre foi
debatido no SUS. As casas de parto públicas, 14 no total, existem desde 1999 e usam um
modelo semelhante ao de países como Holanda, Japão e Nova Zelândia.
Os partos são acompanhados por obstetrizes ou enfermeiras obstétricas e só há remoção para
um hospital se houver alguma complicação. A pequena quantidade de
casas de parto, no entanto, mostram que as intenções estão lá,
mas na prática poucas mulheres têm acesso a elas.
Mas iniciativas isoladas
estão se avolumando e tentando melhorar a vida das gestantes no
país. Belo Horizonte conta com uma equipe de parto domiciliar –
outra opção de baixo risco para gravidez sem intercorrências –
bancada pelo SUS. Em São Paulo, virou lei que todas as parturientes
devem dispor da possibilidade de receber anestesia durante o parto
(essa vai pra quem acha que esse movimento prega apenas o parto
natural, sem qualquer intervenção). Há outros avanços.
4 – O caso Adelir
Na minha opinião,
discutir os meandros do caso Adelir é um desrespeito com a própria.
Sua vida e suas escolhas tornaram-se públicos e pessoas que
desconhecem qualquer fato sobre o sistema obstétrico brasileiro não
se furtam a julgá-la e condená-la como a louca do parto normal,
irresponsável, leviana e até assassina. É por conta desse
julgamento feroz que escrevo sobre sua gravidez e suas decisões
aqui.
Adelir estava com 40 ou 41
semanas de gravidez. Essa informação é imprecisa por natureza, já
que não há método infalível para determinar o dia da fecundação.
Em média, a gestação humana dura 40 semanas, mas na verdade esse
período varia entre 38 e 42 semanas. Isso significa que Adelir
estava dentro do tempo esperado para a duração da gravidez. Isso é
confirmado pelo exame realizado no hospital Nossa Senhora dos
Navegantes. No laudo lê-se que o desenvolvimento do feto era
compatível com 40 semanas de gravidez. Mais uma vez afirmo que esse
dado, em um exame realizado em gravidez avançada, é questionável,
já que os fetos desenvolvem-se de maneira diferente uns dos outros.
Mas era essa a informação disponível para a obstetra que a
examinou, Joana de Araújo. Além de estar dentro do período normal
de gestação, os exames de Adelir mostraram mãe e bebê em perfeito
estado.
A ecografia teria mostrado
o bebê em posição pélvica. O parto normal nessas condições apresenta um
nível de risco mais elevado para o bebê do que se ele tivesse em
posição cefálica. Por isso, a equipe médica deve explicar a
situação à paciente, pesar riscos e benefícios de cada opção de
parto e deixá-la decidir.
O complicador nesse
quesito é o fato de que Adelir e sua doula, Stephany Hendz, acharam
estranho o fato de o bebê estar em posição pélvica, uma vez que
essa informação ainda não teria aparecido no pré-natal. É
bastante raro que o feto faça esse movimento com a gravidez tão
avançada. Por isso, tinham a intenção de fazer o exame em outro
local. Pediram, inclusive, uma guia com o pedido médico para
apresentar em uma clínica particular.
Outra alegação para a indicação de cesariana foi a de que ela já havia realizado duas cirurgias antes e seu
útero poderia romper. É, poderia. Em um parto sem cesariana esse risco também existe. Com duas cesáreas, o risco, que já é baixo, aumenta cerca de 1%. Já o risco de uma terceira cesárea não foram explicados a ela.
Mesmo com mãe e bebê
bem, Joana quis internar Adelir para a realização de uma cesariana.
Adelir recusou. Para poder sair do hospital, foi obrigada a assinar
um termo de responsabilidade, dizendo entender os riscos que sofria.
Isso aconteceu na madrugada do dia 1° de abril.
Adelir e Stephany não
conseguiram realizar um novo exame. Poucas horas depois, o trabalho
de parto começou. Adelir passou o dia em casa, esperando as
contrações ficarem ritmadas para ir ao hospital – não aquele que
queria obrigá-la a fazer uma cesariana, mas outro, que tinha uma
equipe humanizada. Quando ela já estava com contrações de cinco em
cinco minutos, ou seja, perto do momento em que iria para o hospital,
um oficial de justiça, acompanhado por policiais armados, apareceu
com uma ambulância e um mandado judicial em mãos, obrigando Adelir
a ser removida para o hospital. Adelir e o marido, junto com a doula,
embarcaram na ambulância pedindo para serem levados para o hospital
escolhido para o parto. Não foram atendidos. Ao chegar no hospital
Nossa Senhora dos Navegantes, Adelir aceitou passar pela cirurgia,
para evitar que seu marido fosse preso.
Adelir relatou os
acontecimentos em um
vídeo. Afirmou categoricamente que jamais teve
em mente parir a qualquer custo, apenas gostaria que a cesariana
fosse sua última opção. Ela estava ciente do que se passava com
ela e com sua filha. Havia se informado. Mas nenhum representante o
poder médico acreditou nela. Uma mulher humilde, que vive em uma
casa na zona rural de Torres, ainda em construção pelo marido, não
foi ouvida porque, falando daquele jeito, só poderia estar sendo
enganada. Não sabia, coitada, dos riscos que corria. Quem diz isso
não sou eu, mas o diretor do hospital, em
entrevista ao Jornal Zero
Hora. Ele afirma com todas as letras: “Sentimos que a mãe não
tinha compreendido os riscos que estava correndo e fomos procurar
apoio”. Foco no verbo utilizado. Sentimos. Tivemos um feeling.
Olhamos para a paciente e vimos uma mulher que não poderia fazer
escolhas informadas.
Alguns pontos importantes:
há relatos de pais
que foram enganados em relação à posição de seus filhos nas
últimas semanas de gravidez para que aceitassem realizar
cesarianas. Se Adelir não acreditou no exame que mostrou sua filha
em posição pélvica, a responsabilidade é dos médicos sem ética
que chegam ao ponto de mentir para seus pacientes. Adelir sabia, e
saber foi seu pecado.
é fato que o parto
pélvico apresenta riscos maiores do que o cefálico, mas ele é uma
opção viável. Cesarianas também têm riscos, como já mencionei
acima. Cada mulher escolhe o risco que deseja correr. Partos ainda
serão eventos de risco. Não há lugar no mundo em que a
mortalidade materna seja 0. Parir é sempre um perigo. Como viver.
a única conduta
certa do hospital Nossa Senhora dos Navegantes foi assumir que não
tem pessoal capacitado para realizar um parto pélvico. Esse tipo de
parto deve ser realizado por uma equipe experiente, que já tenha
feito o acompanhamento desse tipo de nascimento antes. Também por
isso Adelir não queria voltar àquele hospital.
a obstetra que queria
internar Adelir imediatamente é totalmente responsável por esse
caso, mas é também vítima. Ela não aprendeu a fazer outra coisa,
nem na faculdade nem na prática diária. Não acredito que ela
tivesse em mente qualquer coisa diferente que o bem estar de mãe e
bebê. Mas ela errou.
5- Seu corpo, suas regras,
desde que estejam de acordo com as minhas
É essa a postura médica
de uma maneira geral. Eu entendo, de verdade, que médicos acabem por
sentir um desejo de decidir por seus pacientes, uma vez que
carregariam o conhecimento técnico que leigos não possuem. Não sei
se, caso eu fosse médica, eu teria um sentimento diferente.
É vedado ao médico:
Art. 22. Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte.
Art. 23. Tratar o ser humano sem civilidade ou consideração, desrespeitar sua dignidade ou discriminá-lo de qualquer forma ou sob qualquer pretexto.
Art. 24. Deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo.
Um médico não pode obrigar um
paciente terminal a receber um tratamento para prolongar a vida. Não
pode intervir em uma greve de fome, mesmo que haja risco iminente de
morte. A decisão é sempre do paciente.
Não é assim que o
sistema obstétrico brasileiro vem funcionando. O que é o
convencimento, a coação e agora o mandado judicial para obrigar uma
mulher a fazer uma cirurgia indesejada? É o uso de seu poder para
decidir pelo paciente. Os mecanismos desse convencimento são cruéis.
Qualquer um com um mínimo de empatia sabe que não há mãe que, ao
ouvir palavras como “sofrimento fetal agudo”, não aceite
qualquer intervenção sugerida. Apesar de isso também acontecer em
outras especialidades, é na obstetrícia que isso fica claro,
especialmente pela questão do tempo. Mesmo um paciente com câncer
terminal tem tempo para pedir uma segunda opinião. Mulheres em
trabalho de parto não têm esse tempo. Nem podem se locomover com
facilidade. Não há escape que não seja um volume imenso de
informações absorvidas antes do parto.
O que é grave é que essa
desconfiança em relação ao médico ainda vai fazer vítimas. É
óbvio que casos de cesarianas absolutamente necessárias continuarão
a acontecer – de acordo com a Organização Mundial de Saúde, até
15% dos partos podem requerer cirurgia. E é inevitável que, no meio
dessas mulheres que se rebelam contra o senso comum, algumas terão
que passar por cesarianas. Só que, ao duvidar do médico, elas podem
acabar decidindo não se submeter à cirurgia. E morrer. É urgente
mudar essa forma de agir dos médicos no país. A confiança precisa
reger a relação médico-paciente, mas não é isso que acontece.
6 – Direito do bebê
Juridicamente não existe
a figura do feto como detentor de direitos, apesar da tentativa de
aprovação de um
Estatuto do Nascituro no ano passado. Dito assim,
na lata, parece uma crueldade. E em alguns momentos vai ser. Mas
qualquer lei pode ser cruel quando há situações limite. Não
descarto a possibilidade de discutir eventuais alternativas para uma
situação em que o bebê estivesse realmente em risco (nesse caso
não estava). Só que não vejo saída que não respeitar a decisão da
mulher, que é o sujeito que já existe afinal. Mas também entendo
que haja sentimentos de preocupação com o bebê. Claro que há. Da
minha parte também.
Pior, diferente da maior
parte das mulheres que já escreveram textos defendendo Adelir,
consigo imaginar casos em que a mãe agiria contra os interesses do
ainda não nascido filho. Gravidez não desejada em situações
limite ou depressão, por exemplo, poderiam fazer que a mãe, ainda
que inconscientemente, desejasse perder o bebê, ainda que causando
risco a si própria. Seria esse um caso de intervenção? Como
identificar uma situação dessas? Como trazer para uma regra geral a
suposição de que a mãe queira um mal a seu próprio filho, quando
virtualmente todas as mulheres só querem a saúde e o bem estar de
seus rebentos? É só tentar responder essas questões que a
inviabilidade de decisões desse tipo fica aparente. É preciso
assumir que a intenção da mulher é sempre que todos saiam vivos.
Supor o contrário é insano.
Além disso, o saber
médico tradicional erra. Assim como erra o saber antigo, é
evidente. Qualquer base “técnica” para uma decisão desse tipo
no campo da medicina é falha, pois não há saber técnico absoluto.
No campo da disputa teórica já mencionada, há espaço para
argumentos para parto normal e para cesariana. Para colocação ou
não de ocitocina na veia para acelerar o parto. Para a realização
ou não da episiotomia. Para a raspagem ou não dos pelos pubianos (é
sério). Privilegiar um deles não é papel para a Justiça.
7 – Sujeito x sujeitado
As laudas usadas para
explicar o contexto obstétrico brasileiro e o caso Adelir em
detalhes estão aqui porque o debate foi quase que totalmente
centrado neles. As críticas foram a eles. Mas me recuso aceitar que
a questão pare por aqui. A discussão central é a possibilidade de
intervenção no corpo do outro. Essa discussão é de todos nós.
O corpo é nosso
santuário. Nunca entendi tão bem o sentido dessa frase quanto
com esse caso. O corpo deveria ser indevassável. Nesse caso não foi.
E agora? Abre-se o
precedente? Vamos impedir as cesarianas com 38 semanas com mandado judicial também? Ou forçar uma parturiente a aceitar, ou não se submeter, qualquer procedimento que queiram ou não queiram usar? Para parir em paz
mulheres terão que mentir sobre seu endereço? É esse o assunto que deve ser discutido.
Mulheres e homens deveriam
ser sujeitos de suas próprias vidas. As opções existentes a cada
tempo, em cada realidade, deveriam estar disponíveis para todos,
para que possam escolher que caminhos trilhar. O que acontece na
realidade é que todos os grupos minoritários (em relação à
representação social) têm menos opções do que aqueles
reconhecidos como majoritários. No Brasil, negros têm menos opções
de estudo, trabalho, lazer. Caminhos, enfim. O mesmo acontece com
mulheres, indígenas, gays, transexuais. Só que ser sujeito, ser
autônomo, é condição fundamental para a realização pessoal.
Não é diferente com o
movimento pela humanização do parto. Com um agravante: o grupo
majoritário (homens) não tem a menor ideia do que seja gestar, parir e
nutrir uma criança. Não sabe porque não pode saber, biologicamente
falando. Para que um homem entenda do que isso se trata, o único
caminho é o da empatia.
Isso significa que não
há, aqui, pedido de equiparação. Não se pode pedir um parto igual
ao dos homens, assim como se exige salários iguais. Então o parto
que as mulheres querem é decidido por elas mesmas. Não há um
padrão de comparação. Isso deveria ser uma vantagem. Os termos são
nossos. Só que não são. O saber médico moderno – notadamente
masculino – apropriou-se do parto. Isso poderia ser uma ótima
notícia. Juntos, tradição e medicina poderiam terminar por
derrubar ao mínimo as taxas de morte de mães e bebês no parto. O
que aconteceu, no entanto, foi que no século XX as mulheres deixaram de conduzir
o parto e perderam saberes ancestrais. Em alguns lugares mais do que
em outros e no Brasil mais do que em qualquer outro lugar. O
movimento de humanização, presente em todo o mundo, conseguiu
resgatar o protagonismo da mulher em muitos países. São dignos de
nota o Reino Unido, a Holanda, a Nova Zelândia, entre outros. Não
por acaso as mortes de bebês e mães nesses países são
baixíssimas. Lá, o corpo feminino faz seu trabalho em paz. Nos casos que resultariam em complicações ou morte, e apenas
nesses, a medicina intervém e salva vidas.
É para isso que se luta
aqui no Brasil. Mas a resistência à mudança é tão forte que
parece que a proposta é voltar a parir sem atenção médica. Essas
mulheres, que só querem ter o poder de decidir sobre seus corpos,
nas melhores condições possíveis, são atacadas como se fossem
alienadas. São chamadas de xiitas, talibãs, loucas. Querem ser
sujeitos, mas quem as controla prefere que continuem sendo
sujeitadas. Mulher sem informação dá menos trabalho, afinal. Como
provou Adelir.