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Já faz mais de ano que completei a leitura de História dos nossos gestos, de Câmara Cascudo, editado pela Editora Global. E faz todo esse tempo que este post está na gaveta.
A obra é divertidíssima para ser lida de ponta a ponta, como tive o prazer de fazer. Mas pode também ser apreciada sob um método mais aleatório ou enciclopédico, já que enumera verbetes (ou gestos) e vai trazendo uma versão – mais ou menos documentada – sobre sua origem, seu passado e, vez ou outra, seu futuro. É bem verdade que o ordenamento dos itens há algum mistério caótico. Mesmo assim é divertido.
Foto: /Wikipedia
Na obra em questão, sobre gestos, a leitura me permitiu acumular duas dúzias de historietas divertidas para contar na mesa do bar. Há ainda informações sobre gestual característico do ébrio ou que envolve o universo etílico. É esse segundo grupo que merece nota aqui. Não há muitas menções, e algumas ainda são carregadas de críticas e condenação moral contra os bebedores. Mas vamos logo aos gestos manguaças.
Brinde
Quem nunca se perguntou sobre a tradição de brindar? "Todas as autoridades pronunciam ao findar o banquete oficial, dirigindo-se ao homenageado: Bebo à saúde de Vossa Excelência! Inclinam a taça na direção da entidade distinguida", narra Cascudo. A cena de um brinde, que envolve erguer o copo, representa oferecer o líquido aos deuses mais elevados. Ele não fala nada sobre bater os recipientes de vidro. Dizer "saúde" teria origem na ideia de pedir proteção à própria saúde. A tal proteção seria contrapartida dos seres supremos a uma oferenda tão adequada quanto o goró – por essa lógica, um deus bom gosta de tomar uma.
A coisa começou no Egito ou no Golfo Pérsico, onde há registros de figuras erguendo copos. Pode ser até que o gesto tenha surgido ainda antes de a humanidade domesticar leveduras e aprender a fermentar uva e qualquer outra coisa que produza vinho, cachaça, e outras bebidas. Na Grécia e em Roma também há registros. Nesta última, além das figuras divinas, bebia-se aos antepassados. "Africanos e ameríndios não a conheceram (prática do brinde) antes do contato europeu", garante o autor.
"É um ato religioso. O vinho ingerido será oblação sacrificial em benefício do saudado. Daí a fisionomia grave e circunspecta dos participantes." Então, no seu próximo brinde, embriagado leitor, nada de festa nem de sorrisos: apenas expressão absorta pela importância do ritual.
convertida em 50 cruzeiros reais em 1993. Homenagem?
Problema social? Não, problema bíblico
O problema dele eram os bêbados que vagam e param em alguma porta de rua comercial. "Esses desocupados, de pé ou sentados à porta das lojas, alguns de inspiração animada pelo álcool, constituem um coro de maldizentes, inventadores ou rancorosos, demolindo os que deixaram de mandar." O gesto de ficar parado depois de encher a cara já ocorria nos idos 717 antes de Cristo, porque é narrado no Salmo 68, versículo 12: "Murmuram contra mim os que se assentam à porta. E escarnecem-me os que bebem vinho".
Foto: Montagem Pinga e Cachaça

"Popularíssimo o gesto de atirar, antes ou depois de beber, um pouco do líquido ao solo", descreve. Quem pensou no genérico e habitual "pro santo" chegou perto. "Dar a prova! é a Libatio romana", exatamente homenagens ao deus Mercúrio, ao "Gênio de cada pessoa presente", a Baco e aos protetores da casa e família. Havia modalidades do gênero para funerais ("Libatio in Funere") e no cerimonial de sacrifícios. "Ninguém sabe mais a razão do gesto. É apenas o automatismo do hábito. Despotismo do Costume, como dizia John Stuart Mill. Já não recordam que a pequenina cerimônia é uma oferenda das primícias ad Patres, aos antepassados do bebedor."
Vinho na cabeça
Um procedimento aparentemente em desuso nas mesas de bar, virar o líquido sobre o "conviva que não esgotasse seu copo ao findar da reunião cordial". Era uma espécie de penalidade que, no entanto, desperdiçava o precioso fermentado de uvas. A "Lei da Casa" teria origem na Grécia, passaria por Roma, norte da África e por aí vai. Cascudo jura ter assistido à aplicação da pena por carrasco em Recife, em pleno século XX.
Fala-se demais
Cascudo aproveitou o livro para reclamar que o pessoal usava em demasia a palavra falada, diferente de outros tempos e outras searas que zelavam o silêncio. "A educação doméstica mandava usar a voz com muita parcimônia. Cantar era vadiação reprovável e falar constituía falta de modos no povo de menor idade", escreveu. Mas o elo alcoolico vem célere: "Mesmo nas humildes vendas à margem da estrada os bebedores engoliam a cachaça sem gastos de voz. Pediu. Bebeu. Cuspiu. Pagou. Saiu. A embriaguês oferecia o silêncio sonolento. Nas cidades é que vivia a fauna dos bêbados gritadores, fregueses da cadeia, hospedagem semanal dos bebos de fim de feira, briguentos inofensivos e palradores inconsequentes".
Só fiquei pensando que, se o conversé tiver entrado no lugar da escarradeira, isso apenas comprovaria que o bar tornou-se um lugar mais agradável para se estar.