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O texto abaixo originalmente diz respeito à realidade do futebol espanhol, mas é possível perceber que suas análises também podem ser estendidas para a modalidade de uma forma geral. Em muitos casos, a semelhança das mazelas de lá com as de cá são incríveis, e de modo algum são meras coincidências.
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(Miguel Ruiz-FCB) |
Por Ángel
Cappa, no La Marea
O futebol, que nasceu plebeu e pertencia à classe trabalhadora,
era uma festa que os povos davam a si mesmos até que o negócio se
apoderou dele e o transformou em um gigantesco objeto de consumo, que
gera lucros incalculáveis e também serve como
entretenimento
e distração das maiorias
oprimidas. Ao fim e ao
cabo, "o futebol é uma metáfora da vida", como dizia
Sartre, e o que acontece neste âmbito é mais ou menos o que se
sucede também na sociedade. O tsunami neoliberal levou à crise provocada
pelos especuladores financeiros para arrasar com quase todos os bens
e os direitos das pessoas. O lucro rápido, como valor máximo do
capitalismo, pode ser comparado ao "ganhar do jeito que for" de um
futebol que
deixou de lado o gosto pelo jogo para dar valor única
e exclusivamente ao resultado.
O vencedor sempre tem razão, do mesmo modo que os que têm
dinheiro fazem o que querem. Dois conceitos impostos pela ideologia
dominante para justificar as obscenas desigualdades que gerou. Até a
década de 60 do século passado, aproximadamente,
o futebol
tinha valores tão importantes
que até pensadores como Camus, que foi jogador também, se atreveu a
dizer que tudo o que sabia sobre a moral e as obrigações dos homens devia ao futebol, ou intelectuais comunistas como Antonio
Gramsci, que definiu o esporte como o "reino da lealdade ao ar
livre".
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Di Stéfano: sem comemorar gols de pênalti |
O resultado foi sempre o mais importante, mas não o único
objetivo, muito menos conseguido de qualquer maneira. Di Stéfano
contou muitas vezes que naquela época não se costumava comemorar
gols de pênalti; ou se comemorava de forma muito discreta pela
considerável vantagem que o batedor tem sobre o goleiro. Algo
semelhante aconteceu com Armando Galuchi, um jogador habilidoso do
Blancha Bahia (Argentina) dos anos quarenta que, apesar de sua
modéstia, em jogos oficiais cobrava pênaltis de letra para equiparar suas chances às do goleiro.
Hoje em dia,
em que se festeja efusivamente até gols contra
feitos pelos rivais, é muito raro encontrar
alguém do futebol que faça uma declaração como a de Iniesta:
"Ensinaram-me que é preciso ganhar, mas não de qualquer
maneira". Ou seja, não é comum encontrar jogadores,
treinadores ou mesmo jornalistas que valorizem o “jogar” pelo
menos tanto quanto o resultado.
Uma das primeiras coisas que fez o negócio quando interveio
decisivamente no futebol (e em outros esportes também) foi tirar do
jogador o prazer de jogar.
A palavra "trabalho"
substituiu "treinamento"
e "sacrifício" fez o mesmo
com " jogar". Tudo o que passou a importar desde
então foi o êxito, e o sucesso nesse contexto tem apenas um
significado: ganhar. O prazer foi identificado com a indiferença e à
diversão se deu o caráter de irresponsabilidade, ambos inaceitáveis
para os critérios comerciais que tudo mercantilizam.
A enxurrada de dinheiro foi tão grande que os jogadores também
perderam o sentido de pertencimento e já não sabem mais a quem
representam quando entram em campo, nem para quem jogam. Isso foi
fatal porque eles começaram a pensar como profissionais e se
esqueceram ou confundiram o amor ao jogo com os
privilégios
da fama e o aparente poder
que lhes dá a abundância econômica. Em outras palavras,
deixaram de se sentir como amadores. Claro que sempre há exceções,
como Xavi Hernández, que confessou que lhe dói mais um passe mal
feito do que um gol perdido, palavras que são incompreensíveis para
a maioria de seus colegas e fãs. Porque, como o filósofo polonês
Zygmunt Bauman diz, também "as pessoas tinham um sentido de
pertencimento e de solidariedade" que já não têm, atomizados
pela filosofia do capitalismo neoliberal ultra-individualista.
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Para a Fifa de Blatter, importa o tamanho dos lucros |
A Fifa é uma das organizações mais poderosas do mundo, pela
quantidade de dinheiro que maneja e pela influência que possui nas
esferas políticas e sociais. Seus
critérios e decisões são
muito mais próximos da lógica
comercial do que da
desportiva. As marcas
esportivas têm no futebol e em seus ídolos o que há de melhor para alavancar suas vendas multimilionárias.
E, como na sociedade
as desigualdades são cada vez mais
escandalosas, acontece o
mesmo entre os clubes mais poderosos e o resto. O preço de
um jogador do Real Madrid ou do Barcelona equivale ao orçamento
anual de vários equipes da primeira divisão espanhola. A
c
oncorrência está
praticamente desnaturada e as diferenças
são cada vez mais acentuadas. Apenas em direitos da televisão, Real
Madrid e Barcelona recebem anualmente 100 milhões de euros a mais do
que as outras equipes.
Os preços dos ingressos, sempre excessivos – ainda mais nessa
época dura para os trabalhadores – e os horários dos jogos que a
TV fixa de acordo com a sua conveniência, juntamente a outros
detalhes como o desconforto para os torcedores e o excessivo número
de partidas jogados quase que diariamente, muitas vezes
afasta
as pessoas dos estádios e as leva
para a televisão e para os
anunciantes, que, finalmente, têm seu objetivo alcançado.
O futebol era nosso e
agora é deles,
que não o respeitam nem o querem, mas apenas usam-no em seu
benefício e o esvaziam de sua identidade. Muitas vezes quiseram
matá-lo – e outras tantas ele ressuscitou – mas parece que desta
vez é sério. Contudo, sempre nos restará alguma jogada magnífica,
coletiva ou individual, que nos devolva a esperança. Sempre haverá
um Iniesta, um Xavi um Silva, um Valerón, que ameacem fazer um lance para executar outro, recuperando a essência do jogo. Sempre
haverá um Messi que deixe sentados os defensores, sem saberem por onde
passou. Ou um Ronaldo que sacuda as redes de qualquer meta e nos
deixe assombrados. Sempre haverá um Oliver ou um Jesé para seguirmos acreditando. E sempre haverá uma equipe modesta que
nos lembre a dignidade deste jogo trocando dez passes seguidos.
E nós sempre estaremos, como disse Eduardo Galeano, implorando
pelos estádios: "uma jogadinha bonita, pelo amor de Deus."