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Biggs, na época do crime famoso |
Morreu hoje na Inglaterra o ladrão confesso Ronald Biggs, que participou com 16 comparsas do célebre "assalto ao trem pagador", há 50 anos. Tratava-se de um trem postal que fazia o trajeto entre Glasgow, na Escócia, e Londres. Naquele 8 de agosto de 1963, exatamente o dia em que Biggs completou 34 anos, a quadrilha dividiu um butim de 2,6 milhões de libras, uma montanha de 120 sacolas com 2,5 toneladas de dinheiro em espécie. Dizem que o valor nunca foi recuperado, mas isso tem toda pinta de ser aquela conversinha clássica da polícia... Além do roubo, Biggs era acusado de ter ferido gravemente o maquinista Jack Mills, que morreria seis anos depois. Concluído o assalto, os bandidos se reuniram em seu esconderijo, uma fazenda, para dividir a grana e planejar o futuro.
Tabuleiro que está no museu |
Lá, eles comemoraram o sucesso e o aniversário de Biggs com charutos, bebidas e uma partida de Banco Imobiliário com as notas recém-roubadas. Mas os caras deixaram uma "brecha" comparável com a da Portuguesa no Brasileirão de 2013 (que escalou jogador irregular e, por isso, pode ir pra Série B): na manhã seguinte, deixaram o local após pagarem 28 mil libras a um cúmplice, para que limpasse qualquer vestígio, mas o manguaça fez um serviço beeeem porco. Assim, a polícia encontrou digitais de quase todos eles nas peças do jogo, em revistas e talheres utilizados no local (o tabuleiro do Banco Imobiliário usado por eles virou peça de arte no Museu Thames Valley Police). Preso rapidamente e condenado a 30 anos de reclusão, Biggs escapou do presídio de Wandsworth em 1965, ao pular o muro com uma corda de pano e fugir em uma caminhonete. Depois, fugiu para Paris, comprou um passaporte falso e fez uma cirurgia plástica - o que indica explicitamente que, para conseguir fazer tudo isso, ele ainda detinha (boa) parte do dinheiro roubado e meios para movimentá-lo.
Biggs e Mike, o filho brasileiro |
Dizem que, nesse meio tempo, passou ainda por Bélgica e Panamá. Em 1970, mudou-se para Adelaide, na Austrália, com a família que havia formado antes do assalto - mulher e três filhos. Tranquilamente, trabalhou na montagem de cenários no Channel 10, até que um repórter o reconheceu. Daí, fugiu para Melbourne, permanecendo ali por algum tempo antes de escapulir para o Brasil no mesmo ano - e deixando toda a família para trás (em 1971, seu filho Nicholas, de 10 anos, morreria em um acidente de carro). Em 1974, Biggs foi flagrado por um repórter do jornal Daily Express no Rio de Janeiro, a partir de informações da Scotland Yard. Porém, não havia compromissos ou tratados de extradição firmados entre Brasil e Inglaterra e a então namorada do assaltante, Raimunda de Castro, estava grávida, situação que impedia a expulsão, segundo nossa legislação. O filho brasileiro, Michael, ficaria famoso no início da década seguinte como Mike, um dos integrantes do grupo musical infantil Balão Mágico, junto com Simony, Tob e Jairzinho.
Compacto dos Pistols gravado no Brasil |
Até 2001, Biggs viveu incólume em terras brasileiras, até que, aos 72 anos, resolveu viajar voluntariamente à Inglaterra e se entregar à polícia (dizem que estava gravemente doente e não tinha recursos para se tratar). Porém, nos 30 anos de exílio em nosso país, o ex-assaltante se tornou uma "celebridade", temperando ainda mais sua biografia digna de enredo fictício. Proibido de trabalhar legalmente, ganhava a vida no Rio, nos anos 1970, vendendo xícaras e camisetas com sua foto e cobrando alguns dólares para almoçar e bater papo com turistas. Em 1978, foi visitado por dois dos Sex Pistols, Steve Jones e Paul Cook, que gravaram aqui uma música com letra e vocais de Biggs, a hilária "No one is innocent" - "Ninguém é inocente". O vídeo abaixo mostra os punks ingleses batendo na porta do famoso assaltante, no Rio, que sai da casa sem camisa e com uma garrafa na mão. Na sequência, sempre enchendo a cara, eles vão ao Cristo Redentor, a um bar, ao estúdio de gravação, à praia e a um baile repleto de mulatas seminuas sambando:
Bebendo, no clipe dos alemães |
Mas nem tudo foi farra: em 1981, Biggs foi sequestrado e levado até Barbados por um grupo que esperava alguma recompensa da polícia britânica. Porém, o assaltante fez uso de artifícios na lei para ser mandado de volta ao Brasil. Voltou à vida de "artista", formou uma banda e gravou o disco "Mailbag Blues" (novo sarcasmo: "Blues da Mala Postal") e participou ainda, em 1991, da gravação da faixa "Carnival In Rio (Punk Was)", da banda alemã Die Toten Hosen. No vídeo abaixo, também gravado no Rio de Janeiro, Biggs canta e, no final, aparece rapidamente tomando cerveja (o inglês era manguaça!). Além de aproveitar muito bem a boa vida tupiniquim, o inglês também defendeu uns trocos no livro que conta a história do assalto, autorizado mediante pagamento pelos criminosos, "The great train robbery", e com seu próprio livro, "Odd man out" - "Um estranho no ninho".
Drake: 'queridinho' da realeza |
OSSOS DO ORIFÍCIO - Apesar da vida fantástica e inacreditável, Ronnie Biggs foi um criminoso e, como tal, não deve ser louvado. Mas é engraçado que tenha sido uma das maiores e mais famosas pedras no sapato da polícia inglesa. Sua prisão era vista como "justiçamento moral". E é engraçado porque a própria Inglaterra, no século 16, adotou oficialmente uma política que incentivava a pirataria marítima (invasão, roubo e pilhagem) para engordar suas divisas, tendo como principais vítimas os espanhóis - que, aliás, saqueavam os índios e as terras latino-americanas. Naquele tempo, o roubo (o grifo é nosso) de navios, com incentivo oficial da rainha Elizabeth I, era prática corriqueira. Francis Drake, o pirata mais famoso, ganhou da realeza os títulos de capitão e vice-almirante, depois de saques espetaculares, violentos e muito lucrativos. Por essa ótica, visto como um inglês entre os ingleses, Ronald Biggs poderia até justificar o dito popular de que "ladrão que rouba ladrão tem 100 anos de perdão". Ou, no mínimo, como diz o título de sua música gravada com os Sex Pistols, "ninguém é inocente"...