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Faleceu ontem uma das figuras mais assíduas e emblemáticas do Bar do Vavá, meu amigo Cícero (foto). Outros colegas do blog também o conheceram. Nordestino calejado e quieto, de uns 66 anos, Cícero se orgulhava de ter criado cinco filhos na periferia braba e nenhum deles ter partido para o crime. Quando o conheci, me confidenciou a saga que o trouxe até São Paulo. Ele era um caixeiro-viajante de 18 ou 19 anos, no final dos anos 50, quando o rígido código de honra do sertão o obrigou a vingar uma irmã que havia sido ultrajada. Pode parecer conversa, mas eu morei em Sobral (CE), cidade natal de Cícero, e sei que lá essas histórias são comuns - e o código de honra continua o mesmo.
Pois parece que, na época, o cunhado de Cícero queria se separar e alegou publicamente que a esposa não era virgem quando se casou - um verdadeiro escândalo na sociedade local. A moça voltou para a casa dos pais e garantiu ao irmão que seu marido mentia. Cego de ódio, Cícero foi até a cidade onde o homem morava, no Piauí, entrou em sua bodega, pediu uma cerveja e disse que queria conversar. Quando o cunhado virou para buscar a bebida, ele descarregou o revólver em suas costas.
Como não contou nada para ninguém quando planejou o crime, sua família nunca soube qual foi o seu destino. Ele nunca mais entrou em contato com os pais e irmãos, para não ter a polícia em seus calcanhares. Na fuga para o Sudeste, a intenção era tentar a vida na capital federal, o Rio de Janeiro. Mas o motorista do ônibus o aconselhou a vir para São Paulo, onde as oportunidades de emprego eram maiores. Aqui, trabalhou por décadas no comércio e se aposentou. Ultimamente, mantinha uma lojinha de miudezas e apontava jogo-do-bicho no bairro de Pinheiros. Nunca mais voltou para o Nordeste - não porque tivesse medo da Justiça, pois o crime prescreveu há muito tempo, mas talvez por receio de vingança da família do cunhado.
Cícero me disse que foi alcoólatra e que se recuperou no A.A. Nunca o vi bêbado, mas, no início deste ano, ele me contou que tinha passado oito dias internado, em dezembro, por ter "exagerado". De lá para cá, emagreceu muito. Acho que sua deterioração e morte tiveram a ver com os excessos do passado. A última vez que o vi foi na quarta-feira passada, quando encontrei o Glauco, o Edu e a Carminha no Bar do Vavá. Ele estava na mesa ao lado do orelhão, com alguns conhecidos. Calado, sem fumar nem beber nada. Ontem, quando soube de sua morte, fiquei meio besta, sem reação. Hoje pela manhã a ficha caiu.
Nunca esquecerei suas histórias, sua risada e o carinho que tinha por mim, pela minha esposa e minha filha - as duas cearenses, como ele. Cícero era extremamente educado, reservado e atencioso, à moda antiga. Que esteja em paz.