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segunda-feira, fevereiro 02, 2009

Momento do mé - Resgatinho

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O produtor Afrânio Rezende e a Resgatinho envelhecida desde 1993

Em recente expedição à divisa de São Paulo com o Rio de Janeiro, no chamado "Vale Histórico", visitei com o amigo Marcelo a fazenda onde é produzida a cachaça Resgatinho. Lá, aprendi e descobri muito mais coisas do que sonha nossa vã sabedoria etílica. Uma delas, surpreendente, foi a participação, mesmo que indireta, do bom uísque e da boa cerveja no processo de maturação da cachaça. Outra foi a separação, durante a destilação da pinga, daquilo que é chamado de "coração" (desprezando-se a "cabeça" e a "cauda"). Mas vamos à história, que a sede aperta.

Desistindo do leite
Assim que chegamos ao rancho, na rodovia que liga Bananal (SP) a Barra Mansa (RJ), fomos atendidos pelo senhor Afrânio Teixeira Rezende, que começou a produzir a pinga Resgatinho em 1982 (e hoje continua o trabalho com seu filho). "Antes eu só produzia leite, mas não dava dinheiro. Daí resolvi aproveitar o conhecimento de familiares, que produziam pinga de forma artesanal para consumo próprio. Comprei um manual de instruções e adquiri os equipamentos", contou. Para nosso deleite, o sr. Afrânio puxou um litro da Resgatinho envelhecida 15 anos, que é vendida em vasilhames de 500 ml, por R$ 40, e de 1 litro, por R$ 80.

A cachaça é escura e forte, mas de gosto extremamente macio. Deixa um leve sabor de madeira, de carvalho, mas a impressão é de que tem algo a mais ali - um acento original dessa pinga. O mistério foi se desfazendo quando fomos até o depósito da cachaça: lá estão dois barris de 10 mil litros e 2,5 metros de altura (na horizontal), de 119 anos, mais dezenas de barris menores, de 180 litros, que ultrapassam três décadas de idade. Só a história desses barris já valeria o post, ou, numa investigação mais profunda, um livro fascinante.

Nove décadas de cerveja
Os tonéis gigantes foram produzidos em Portugal em 1890, sob encomenda da cervejaria carioca Brahma. Na época, não existiam as opções atuais de armazenar cerveja em recipientes de aço inox, aço carbono, fibra ou plástico. A solução da Brahma foi encomendar 360 desses barris, o suficiente para estocar 3,6 milhões de litros de cerveja (!). Eles foram transportados de navio e acondicionados na fábrica que existia na Marquês de Sapucaí, onde permaneceram em utilização até 1983, quando o Estado do Rio de Janeiro desapropriou o local para a construção do Sambódromo.

"Um empresário de Barra Mansa arrematou todos os 360 barris e, em 1987, consegui adquirir dois deles. Paguei em pinga, 5 mil litros, o que hoje calculo que daria uns R$ 25 mil", relembrou o sr. Afrânio. Ao ouvir isso, me aproximei dos barris como se fossem o Santo Graal, objetos sagrados e dignos de veneração. É indescritível sentir o aroma adocicado e tocar a madeira e as gigantescas argolas dos recipientes (foto acima) que, por 93 anos, estocaram milhões - quiçá bilhões - de litros de Brahma. Uma cerveja que, com a maturação no carvalho, devia ser muito superior à atual. "Hoje, esses barris não têm preço", observou o sr. Afrânio. Concordei, com uma ponta de inveja.

Barris de uísque escocês
Perguntei ao sr. Afrânio se as nove décadas de cerveja impregnando o interior dos barris não poderiam ter conferido à madeira um sabor que interferisse, mesmo que suavente, no gosto da cachaça Resgatinho. "Quando comprei, quase já não havia cheiro de cerveja no interior", ponderou o produtor. "Mas a madeira pode ter chupado muita cerveja em todos aqueles anos, e talvez a cachaça, em descanso, reaja com isso", admitiu. Depois, nos mostrou os barris de 180 litros, uma outra surpresa (na foto à direita, parte deles sendo observada pelo camarada Marcelo - ou DeMarcos...).

"Antigamente, havia em Vassouras, município do Rio, uma importadora de uísque escocês. A bebida vinha daquele país em barris de carvalho, para ser envasada aqui", revelou o sr. Afrânio. "Só que, não sei o motivo, esses barris só podiam ser utilizados por dez anos. Eu comprei quase 150 deles. Hoje, nem são mais produzidos". Ou seja: parte da cachaça Resgatinho também descansa em barris que passaram pelo menos uma década curtindo uísque escocês. Há, também, uma parte da produção estocada em um tonel da madeira chamada amendoim, que não altera a coloração e o sabor da bebida.

Fermentação e destilação
Na sequência, fomos levados ao galpão onde ocorrem os processos de fermentação e destilação da cachaça - tudo de forma artesanal. Em meia dúzia de tonéis, o mosto da bebida fermenta horas seguidas (foto à esquerda). O barulho é parecido com o de sal de frutas em contato com a água e várias erupções acontecem a cada minuto no líquido. A mistura esquenta bastante com a fermentação das leveduras, do bagaço de cana e de outros "aditivos", como farelo de milho e casca de arroz. Dali, o líquido vai para um alambique de bronze aquecido por caldeira, onde é destilado.

"Colocamos o termômetro e observamos a primeira quantidade que sai destilada, a chamada 'cabeça'. Ela é desprezada. Em seguida, começa a sair o 'coração', que é a cachaça a ser aproveitada. Por último, sai a 'cauda', que, assim como a 'cabeça', deve ser jogada fora. Essas duas partes contém metais pesados e outras substâncias impróprias para o consumo", explicou o sr. Afrânio. Na região do município de Bananal, onde está a fazenda Resgatinho, há quem aproveite esses líquidos perigosos para produzir cachaças extremamente fortes e letais, chamadas, muitas vezes, de "cabeçudas".

Garrafas da cachaça aromatizada e dos vários licores

Finda a "aula", voltamos ao rancho para mais um gole da Resgatinho. Lá, avistamos (mas não provamos) outros produtos, como a Resgatinho aromatizada com cravo, canela e catuaba ou os licores de diversas frutas, como tangerina e jaboticaba. Assinamos o livro de visitas, que reúne milhares de registros de pessoas de todos os cantos do país, e nos depedimos do Sr. Afrânio. Com a certeza de que, quando a garrafa que compramos acabar, voltaremos lá. Nem que seja só para visitar, de novo, os centenários, nobres e históricos barris produzidos em Portugal para a Brahma. Saúde!

O alambique e, à esquerda, no chão, o vidro que recebe o "coração"

Serviço
Fazenda Resgatinho - Rodovia SP 64, Km 323
Estância Histórica e Ecológica de Bananal (SP)
(24) 3322-6870 / resgatinhofaz@ig.com.br


(Com agradecimentos especiais ao Marcelo, Adriana e família, pelo transporte, hospedagem, amizade e hospitalidade, e ao casal Celso e Kátia, pela máquina fotográfica e envio das imagens)