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segunda-feira, fevereiro 09, 2009

Em busca do marafo perdido - Capítulo 1

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MARCÃO PALHARES

Mas como foi que isso aconteceu, meu Deus? O que eu estava fazendo naquele pagode? Ah, agora me lembro: era sábado e eu não tinha dinheiro pra comer. Fui procurar o Peixoto no pagode, pra ele me arrumar um trocado. Mas o maldito não deu as caras. E eu lá, desconsolado, observando as gringas que tentavam requebrar as cadeiras. Por que eu não fui embora depois de duas horas de campana? Por que raio de motivo eu fiquei? Sem comer nada, sem beber. Taí, o problema foi exatamente esse: eu não conseguiria ir embora sem beber nada. E foi aí que aquela senhora de óculos fundo de garrafa, cabelo tingido de violeta com raízes brancas e batom manchado pra fora dos lábios me convidou para sentar. Contou que era aposentada. Viúva. Dois netos. Gostava do Agepê. "Deixa eu te amar/ Faz de conta que sou o primeiro". A senhora me ofereceu cerveja. E mais cerveja. E muitas, muitas mais.

Acordei no domingo, meio-dia, pelado e estendido numa cama de casal, feito o Homem Vitruviano do Leonardo da Vinci. Náusea, tontura, dor de cabeça lancinante. Nunca tinha visto aquele quarto em toda a minha existência. Uma penteadeira cheia de talcos e cremes, com folhetos de santos presos no espelho. Olhei ao redor e lembrei da música do Roberto Carlos: "Travesseiros soltos/ Roupas pelo chão". Um barulho infernal de crianças gritando e cachorros latindo, televisões e rádios com o volume nas alturas. Vizinhas se xingando. Quem sou eu? Onde estou? Para onde vou? Sensação de torpor. Melhor dar no pé.

Ao catar a bermuda e a camiseta do chão, ouvi o toca-discos sendo ligado e a agulha descendo sobre o vinil. A estática das ranhuras. De repente, a voz da Alcione, a Marrom: "Garoto maroto/ Travesso/ No jeito de amar/ Faz de mim/ Seu pequeno brinquedo/ Querendo brincar". E aquela senhora que me pagou cerveja no pagode entrou no quarto, de penhoar, com uma cerveja preta Caracu e dois copos nas mãos. Os seios flácidos, quase saltando para fora. O penhoar tinha um desenho de duas araras vermelhas. "Já descansou, meu tesouro?", fez biquinho, com a boca murcha. Juro. É tudo verdade. Foi assim mesmo.

A mulher tava tão contente que tinha enchido a geladeira de cerveja e cozinhava um porco no quiabo só pra me agradar (detesto quiabo – e o cheiro da panela de pressão só aumentava meus engulhos). Tinha bobes no cabelo e a prótese dentária mal feita, com uma emenda amarelada. "Vem amor!/ Vem mostrar o caminho/ Da doce ilusão", cantava, junto com a Alcione. E me olhava como um náufrago olharia um frango assado. Inventei uma mentira daquelas bem esfarrapadas - que tinha que trabalhar, que meu avô estava no hospital, que deixei a torneira do banheiro aberta, que não pus a ração do peixe no aquário, que o dólar subiu, sei lá, um troço desses. Eu custava a acreditar que tivesse acontecido qualquer coisa de mais íntimo entre eu e aquela anciã. Ainda hoje tenho dúvidas, mas devo ter tomado muita cerveja, pois não lembro de nada (por sorte!). Bom, de algum jeito, me preparei para a fuga desesperada.

A senhora compreendeu, me passou as mãos no cabelo e estalou um beijo que deixou nos meus lábios uma mistura de espuma de cerveja preta com batom melado da Avon. Tive algum tipo de vertigem e pedi uma lata de cerveja. Ela atendeu e ainda me descolou três passes de ônibus, explicando didaticamente o tortuoso caminho que eu faria no retorno à civilização. Aquele conjunto habitacional dos demônios ficava depois do fim do mundo, em algum lugar desconhecido pela cartografia moderna. Foram três ônibus e duas horas e meia até a cidade. Mas antes, na saída, peguei outra lata de cerveja, dei um beijo nos bobes da velha e tropecei num cachorro manco que se esfregava no corredor. A senhora me escreveu seu telefone no verso de um bilhete de loteria, que joguei fora assim que cheguei na rua de terra, cheia de mato e lixo. Um caminhão passou vendendo pamonha. Duas crianças remelentas me atiraram um bagaço de milho nas costas. Corri. Alcancei o ponto de ônibus com mais vontade de beber.

Pensei em voltar lá na casa da velha, mas refleti um pouco e o bom senso falou mais alto. Me aboletei no ônibus desconjuntado e jurei: essa foi a última vez. Ah, como os bêbados são otimistas...

(Continua quando o autor estiver sóbrio o suficiente para escrever...)