Destaques

domingo, dezembro 23, 2007

Na tarde em que concordei com um fascista

Compartilhe no Twitter
Compartilhe no Facebook

Festa de um ano do filho de alguém que as tramas familiares complicam a localização. A irmã mais velha do aniversariante, de três anos, está contente, recebe quem chega, explica o que é a festa, e introduz os convidados. Uma figurinha. Pela pouca idade e porque o trabalho de hostess é só uma brincadeira, a menina não faz bem as apresentações. Bom, ela faz as apresentações, diz quem é o avô, a avó, os tios e só avisa sobre quem é o bisavô. Porque com a terceira primavera recém-completada não se entende bem as trajetórias de vida, nem visões políticas. Ainda bem. Apenas horas depois, descobri que se tratave de um delegado de polícia aposentado que ultrapassou todos os esteriótipos.

A relações públicas mirim só serviu aqui para chegar ao centro da narrativa, assim como aconteceu na festinha, que terminaria com brigadeiros e até bala de coco. Até lá, salgadinhos, amendoins e... cerveja.

O tal bisavô é o único que tem a gelada no copo. É o único servido recorrentemente por quem passa perto do sofá onde, não sei se por magnetismo alcoólico ou acaso, também me instalo. Como manguaça, tento acompanhar, mas sem dispor da mesma entrega de latinhas. Discriminação compreensível a alguém que ninguém conhece, mas que me obriga a intervalos maiores entre uma e outra, por causa do deslocamento por todo salão de festas até a cozinha, onde sempre tem alguém com olhar atencioso na frente da geladeira. Nunca deixam a geladeira sozinha. Toda a boa vontade vira, assim, constrangimento para o único dos convidados que faz essa trajetória.

Ao sucesso da quase clandestina terceira viagem até esse intermediário, a convicção: seria a última. De volta a meu lugar, ao lado do colega de copo, não estava preparado para o rompimento desse elo tão frágil e, ao mesmo tempo, capaz de se refazer ainda mais de surpresa. Diz lá o bisavô:

– E você viu? O Serra disse que era preferível o cara ter conforto na prisão do que estar solto nas ruas. Me decepcionou – atirou, em referência a alguma declaração do governador paulista que não tentei identificar. Um silêncio se seguiu, porque ninguém se dispôs a interlocutor.

Não me atrevi. Mas tampouco a falta de réplica impediu a continuação:

– Um sujeitinho daqueles tinha é que estar preso com goteira pingando na cabeça. Já imaginou a mãe daquela moça que esse monstro matou, o que ela sentiu quando o Serra falou isso?

– Ah, nem vale a pena pensar... – apaziguou um, com a vã esperança de que seria suficiente para demovê-lo.

– Não, não vale mesmo. Por mim, era um do lado do outro, e punha uma bala pra cada, assim, execução sumária. Eu achava que esse Serra fosse firrrrme, mas é um frouxo. Anda muito com esse pessoal dos direitos humanos. Ai, que raiva!

O silêncio é geral diante a ira da declaração fascista, não se sabe se por concordância dos outros ou imobilidade, pelo menos minha. Talvez, se eu tivesse tomado bem mais e tivesse a disposição dos ébrios para o "debate" mal saberia por onde começar a refutar a manifestação de fascismo exacerbado. Mas esse duradouro segundo seria a última pausa:

– No Serra eu não voto.

Foi um choque. Mas aí, eu não discordei. Os outros convidados, depois de um momento de hesitação e talvez com medo de que as críticas se estenderiam a todo o resto do espectro político, resolveram que era hora de cantar o parabéns.

5 comentários:

Glauco disse...

Uma lição de como transformar um momento constrangedor - que, na maioria das vezes, parece se eternizar na hora - em um ótimo texto.

Unknown disse...

Não sabia que exigir e desejar justiça é facismo!

Então, sou um.

Guilherme disse...

Davi,

Exigir e desejar justiça NÃO é fascismo (assim mesmo com SC). Sobre você também o ser, não posso comentar pois não o conheço.

O que esse senhor demonstrou não foi a busca pela justiça, mas sim esse sentimento "tropa de elite" que está se alastrando. Essa idéia de que tudo deve ser respondido à bala não é justiça é VINGANÇA. Quem recorre a isso não é nem um pouco melhor que o criminoso "punido".

Poderia ficar aqui discorrendo mais sobre o assunto, mas seria perda do meu tempo. Ou você é realmente fascista (e não conseguirei demovê-lo disso) ou você já entendeu o que o Anselmo disse no seu interessantíssimo artigo.

DÁ-LHE GRÊMIO!!!

p.s.: Boas Festas!!!

Anônimo disse...

Amigos do Futepoca,

Essas festas que reúnem família sempre trazem esses momentos.

Vejam meu natal na casa de um tio com um primo soltando uma das suas por estar nervoso com um garoto na rua que jogou uma bombinha perto dele:

"Ah pretinho do c... tem que matar esses moleques antes que cresçam..." (e olha que ele tem um filho de poucos meses)

Pra não partir pra briga em família, tive que me contentar em dizer pra ele deixar de falar MERDA.

Antes de ir embora (o que não demorou) ainda ouvi frases de outros do tipo "por isso que eu não gosto de cachorro preto..." referindo-se ao cachorro da casa que não obedeceu a uma ordem (e o carinha tem um cachorro branco - tipo albino).

Tô de saco cheio de ir em casa de parente que representa essa porcaria de sociedade fascista, racista e de direita.

Abraços a todos vocês do Futepoca

Marcão disse...

Mas afinal, Anselmo, você conseguiu outra cerveja?