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sexta-feira, março 06, 2009

Em busca do marafo perdido – Capítulo 5

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MARCÃO PALHARES*

Julieta e Marco Antônio nem desconfiavam, naquele sábado, que seriam assassinados no tanque de lavar roupa. Jovens, saudáveis e simpáticos, brincavam felizes pelo quintal de lajotas alaranjadas. Ou melhor, quase alaranjadas, pois os dois haviam colorido toda a extensão com fezes brancas e esverdeadas. E foi assim que assinaram suas sentenças de morte. Comprados ainda como pintinhos em uma cidade próxima, Julieta e Marco Antônio viveram, de início, numa caixa de papelão. Pertenciam a uma garotinha de dois anos e não davam trabalho. Só piavam, comiam, cagavam e dormiam. Pouco depois, já “adolescentes”, passaram a pular para fora da caixa e a “enfeitar” a casa com suas fezes. Foram banidos. O novo endereço da dupla seria uma casa velha, república de estudantes, onde vivia o pai da menininha.

Ele se encarregou dos jovens frangos, que passaram a morar no quintal, emporcalhando o piso. Um dia, pressionado pelos companheiros (que não suportavam mais o cheiro e a sujeira), consentiu, muito a contragosto, o abate. Que aconteceu naquele sábado, no tanque. Julieta capitulou sem um “có” sequer. Marco Antônio não: decapitado, bateu asas e mergulhou em uma bacia com roupas de molho em cândida. Cena macabra. Tal gesto, póstumo, o poupou dos “canibais”: por causa da contaminação química, sua carne foi para o lixo. A companheira, porém, não teve o mesmo destino. Cinco minutos depois, Julieta já estava na panela de pressão, enquanto os estudantes tomavam pinga e jogavam baralho no chão da sala. O cheiro da carne nova, recém abatida, prometia um belo ensopado. Mas a maioria dos manguaças não teve paciência e se mandou para o bar antes da comida. Que era muita.

Com dor no coração, o que havia sido responsável pelos frangos comeu sua parte, tampou a panela e a deixou sobre o fogão, crente que os bêbados voltariam esfomeados para limpá-la. Saiu, foi para a casa da namorada e voltou três dias depois. Surpresa desagradável: a panela, cheia, jazia no mesmo lugar, com a carne deteriorada de Julieta. Os pinguços haviam emendado três dias na rua, bebendo, e ninguém tinha voltado para apreciar a carne de frango, que ficou fora da geladeira. Revoltado, o antigo dono dos bichos aguardou que os manguaças voltassem e vociferou: “Não bastasse a judiação de matá-los, ainda deixam estragar mais de um quilo de carne! Vocês é quem vão lavar a panela!”.

Houve discussão, ninguém queria saber da (desagradável) tarefa. Uns diziam que não comeram, outros que não pediram pra fazer o frango, outros ainda que o último a sair deveria ter posto a panela na geladeira. Nesse desacordo total, a comida, tampada, permaneceu por quase um mês sobre o fogão, sem que ninguém tomasse alguma atitude. Com o tempo, como tudo em uma república de estudantes (e de bêbados), virou piada. A panela tornou-se um bibelô, um enfeite, um talismã. Desaparecia e reaparecia nos lugares mais insólitos, como a estante da sala, embaixo da pia ou das camas, pendurada na varanda, abraçada com alguém que dançava etc. Sempre que um incauto se aproximava, todos advertiam seriamente que a tampa da panela nunca deveria ser aberta.

E assim foi, por longos seis meses. Durante as – frequentes – bebedeiras, os estudantes e asseclas elocubravam sobre o que haveria dentro da panela de pressão. Carne? Ossos? Um líquido nauseabundo? Energia nuclear? Um alien? Todos davam palpites e, na embriaguez, muitos ensaiaram abrir o recipiente. Mas ninguém foi tão irresponsável a esse ponto. Assim, a panela continuou perambulando pela casa inteira, por mais dúzias e dúzias de festas, churrascos e celebrações etílicas. Mais tarde, quando já haviam alentado a hipótese de enviar o negócio para uma feira de ciências, a dona do imóvel, cansada de tantas reclamações dos vizinhos, intimou os estudantes a procurar outro lugar para morar. E agora? O que fazer com a panela?

No teto de madeira da cozinha havia um alçapão. Um dos manguaças subiu na geladeira, abriu essa entrada e empurrou a panela para o forro - local empoeirado, cheio de fios elétricos e abafado pelo calor das telhas. Nos dois anos seguintes, o assunto rondou os encontros daqueles bêbados: “O que terá acontecido com aquilo? Será que alguém encontrou? Terá explodido?”. Coube ao que havia sido responsável pelos frangos a última notícia sobre o recinto onde repousam os despojos de Julieta. Certa vez, uma menina o abordou, em um buteco sujo, de uma forma bizarra: “Conheço você de um desenho”. “Como assim?!??”, reagiu, com o assombro peculiar de quem se depara fequentemente com mulheres loucas. “Meu namorado mudou para uma casa e, no quarto dos pais dele, tem a sua cara desenhada”, explicou a mocinha. “Meu Deus!”, pensou o ex-proprietário dos frangos, lembrando-se do antigo hábito de desenhar uma caricatura de seu rosto na parede de muitos quartos que habitou.

Perguntou o endereço e confirmou: era a casa onde jaziam os restos de Julieta. Porém, mesmo mordido por uma curiosidade lacerante, não teve coragem de perguntar sobre a panela. Teve medo que, a partir de sua indicação, alguém subisse no forro e encontrasse o negócio. Que poderia explodir - ou contaminar mortalmente - toda aquela família. Ficou quieto. E louco para saber, 14 anos depois, o que aconteceu...