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sábado, março 19, 2011

A cachaça na prosa de Voltaire de Souza

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Imagine-se abrindo um jornal e encontrando o seguinte texto:

O FRIO CASTIGA
Faz frio em São Paulo. Osvaldo tinha uma solução. "-A caninha. A cachaça". Ele tomava todas. A mulher reclamava. "-Pára, Osvaldo". "-A pinga. É meu cobertor". Ele caía na cama. Na maior inconsciência. Foi quando Osvaldo teve um pesadelo. Ele estava no pólo Norte. Um urso branco dava urros. Osvaldo viu um disco voador. Saiu do disco o falecido presidente Castelo Branco. "-Pára de beber, Osvaldo". "-Sim, senhor presidente. Sim, marechal". Osvaldo nunca mais bebeu cachaça. Mas faz frio em São Paulo. Osvaldo foi encontrado na rua. Morto. Caído no chão. De frio. Durinho. Foi levado para o IML. Onde faz mais frio ainda.


Esse é apenas um entre centenas de textos que foram publicados diariamente, entre os anos 1980 e 1990, pelos jornais Notícias Populares e Folha de S.Paulo, e assinados por um fictício Voltaire de Souza. O livro "Nada mais que a verdade - A extraordinária história do jornal Notícias Populares", de Celso de Campos Jr., Denis Moreira, Giancarlo Lepiani e Maik Rene Lima (Summus Editorial, 2ª edição, 2011), conta que, quando o jornalista Leão Serva (foto) assumiu como novo diretor de redação do Notícias Populares, teve a ideia de publicar uma coluna com sexo e sangue em forma de ficção, na linha de Nelson Rodrigues. Foi aí que "um famoso colaborador" da Folha topou a empreitada, desde que assinasse com pseudônimo. Serva criou a alcunha Voltaire de Souza. "Definido como 'um imbecil' por seu próprio criador, Voltaire destilaria uma preciosa mistura entre as sandices do universo rodriguiano (sic) e as sinédoques de Dalton Trevisan, sempre coroada com uma desconcertante moral no fim da história". Como no texto a seguir:

A CULPA DE UM ÉBRIO
Osvaldo bebia bastante. E tinha o mau hábito de dirigir o carro quando estava embriagado. Uma noite, ele estava com seu Monza na 23 de maio. Completamente alcoolizado. Sentiu um baque no carro. Uma coisa voou na avenida. Osvaldo levou o maior susto. "-Atropelei alguém. Puta merda". Acelerou o Monza. E foi-se embora do local. No dia seguinte, Osvaldo acordou de ressaca. Lembrou-se da noite anterior. "-Puxa, atropelei um cara". Osvaldo ficou muito assustado. "-E agora? Matei um homem". A culpa de Osvaldo era grande. "-Sou um assassino. Sou um bêbado. Sou um canalha". Osvaldo abriu uma garrafa de uísque. Na terceira dose, ele estava chorando. "Não mereço viver. Sou um assassino". Pegou uma faca de cozinha e enterrou-a no peito. Morte instantânea. Só que ele não tinha atropelado ninguém. O Monza só tinha batido num saco de lixo. Deviam manter as ruas de São Paulo limpas.


O livro sobre o Notícias Populares conta ainda que, para manter o anonimato do autor, a coluna recebeu a foto de um cúmplice, o repórter Manoel Victal, que usou óculos escuros. Mais tarde, outra foto de Victal seria usada, mostrando o "dublê" diante de um computador. "O sucesso foi tão grande que o escrachado Voltaire de Souza ganharia, no final da década de 1990, um lugar no caderno Ilustrada da Folha de S.Paulo (...). Ainda que seus textos acabassem saindo de lá algum tempo depois, em virtude de um corte de gastos da empresa, aquela promoção só alimentaria a já inflamada discussão a respeito da verdadeira identidade do literato", conta o livro "Nada mais que a verdade". As suspeitas recaem sobre o colunista Marcelo Coelho (foto), integrante do Conselho Editorial da Folha: "Publicamente (...), o respeitado jornalista prefere não confirmar nem desmentir a informação. Em conversas reservadas, entretanto, Coelho assume com orgulho a paternidade do escriba". Se é ele ou não, pouco importa. Fiquemos com mais um texto sobre cachaça, publicado no livro "Vida bandida - Voltaire de Souza" (Editora Escuta, 1995):

CACHAÇA E CASAMENTO
Estava começando a chover. Um friozinho de abril. Túlio esfregou as mãos. "-Tempo bom para uma cachaça". A mulher suspirou. "-Quando faz calor, você diz que é sede. No frio, é para esquentar". Túlio não ligou. Foi ao bar da esquina. Duas horas depois, estava completamente bêbado. A mulher foi procurá-lo. "-Túlio. Que é isso". O homem já não dizia coisa com coisa. "-Bruff... arrh... muorm...". Elizete começou a chorar. "-Você não era assim, Túlio. Você mudou". "-Wai a merza. À budza gui o bariu". Elizete gritava. Tremia toda. Estava tendo um treco. Alguém teve a idéia. "-Dá um cinzano para ela se acalmar". Elizete tomou o primeiro. E outro logo em seguida. Ficou bêbada como o marido. Deitados na sarjeta, os dois se deram um longo abraço de amor.