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segunda-feira, janeiro 04, 2010

As pequenas tragédias da Ilha Grande

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Duas cenas: a chegada e os passeios numa Ilha Grande paradisíaca e o Morro da Carioca, em Angra, depois da tragédia.

Fotos: Simone Polli e Frédi Vasconcelos


















Das grandes tragédias nem é necessário falar. A TV, a todo momento, mostra imagens da pousada que caiu, das casas, dos velórios. Na falta de assunto, explora-se ao máximo a dor alheia em busca de audiência...

Mas eu e a companheira Simone estávamos num grupo que foi para a Ilha passar o Ano-novo, na casa dos amigos Helô e Gerardo, na Praia Grande de Araçatiba, bem perto do Bananal, onde despencou o morro.

A chegada no dia 27 e os dias 28 e 29, apesar de um pouco de chuva, foi dentro do previsto. Praia, caminhadas, passeios de barco, boas comidas, ótimas conversas com os amigos etc.

A mudança começou no dia 30. Desde as primeiras horas, chuva torrencial. Impedia de fazer qualquer coisa, mas nada indicava o que viria.

Manhã do dia 31, não havia boas notícias. A chuva continuava muito forte. O morro atrás da casas que estávamos começou a cuspir terra. A primeira operação, apesar do susto, foi até simples, tirar aquela pouca terra e fazer um caminho para a água descer.

Operação que teve de ser repetida durante algumas vezes, mas nada ainda que assustasse. À tarde a chuva diminui e traz alívio a todos. Engano, ledo engano. Volta com mais força ainda à noite, o que não impede a ceia e as comemorações da meia-noite. Com direito a ir pular as 7 ondas mesmo debaixo da chuva.

Na volta à casa, as notícias não são boas. Mais terra caíra. É necessário trocar de roupa de festa e fazer um novo caminho para que a água não invada os quartos. E lá vai o grupo para a tarefa nas primeiras horas de 2010.

Não adianta. Refeito o primeiro caminho, vem mais terra ainda, a situação começa a ficar crítica. Não é possível mais mexer atrás da casa porque fica perigoso, a toda hora acontece novo pequeno desmoronamento.

É necessário tirar as roupas, os colchões, tudo que puder ser salvo, porque a invasão de terra e água é iminente. Cada um faz uma pequena mochila para levar o que é essencial. Mais terra caindo e água vertendo do morro, formando novas cachoeiras.

Perto das 3h da manhã a decisão de abandonar a casa e ir para lugar mais seguro oferecido por amigos. A caminhada parece que nunca acaba, atravessando partes inundadas, pequena trilha que pode a qualquer momento desmoronar. No grupo, os bravos León e Thomás, de 9 e 14 anos, que enfrentam tudo sem reclamar.

A chegada à outra casa foi um alívio. Parte do grupo não cabe e ainda tem de caminhar mais para chegar a outro local. Ficamos nesse primeiro e tentamos dormir...

No outro dia, caímos da cama às 8h da manhã com medo do que poderia ter acontecido à casa de Helô e Gerardo. Chegamos e eles já estavam lá. Apesar de ter entrado água e terra nos quartos, que tivemos de limpar, a situação era melhor do que esperávamos. Não havia acontecido nada de mais grave. Embora um dos quartos estivesse com cerca de 1,5 metro de terra na parede externa. Além de pedras ameaçadoramente soltas. Limpamos tudo e almoçamos o resto da paella maravilhosa preparada por Gerardo para a noite anterior.

Daí fomos para outra pousada, numa área de menos risco.

Soubemos da tragédia no Bananal e em Angra, mas com informações cada vez mais confusas. Chegavam a falar em 100 mortes, inclusive de gente famosa...

O espírito das férias já tinha ido embora. Na nossa última noite na Ilha, algo simbólico. Um jantar feito com restos da ceia e mais o peixe e o camarão que sobraram fritos por Helô, com vinhos trazidos da Argentina por Daniel e Mónica, à luz de velas, na mesa de um bar fechado. A prova de que enquanto resta solidariedade e vida, tudo ainda pode ser feito.

Decidimos retornar no dia seguinte, mas boa parte do grupo ficou em locais mais seguros.

Agora, o verdadeiro problema é para a população local. Está sem água e luz até hoje, várias casas estão interditadas, os mantimentos que ficam nas geladeiras estão todos estragando, os turistas vão saindo em bandos, lotando os barcos que vão para a Angra.

A época em que todos que vivem lá do turismo ganham algo para passar o ano está irremediavelmente soterrada.

Nada se compara às vidas perdidas, mas as pequenas tragédias continuarão ainda por muito tempo.

8 comentários:

Simone disse...

pois é isso mesmo, chuva torrencial e muita lama... a baía no outro dia tinha a cor amarelada, coisa nunca vista. Seus moradores assustados, lamentando principalmente as perdas de vida, de conhecidos de infância. Também, sem o trabalho advindo do turismo, a principal fonte de renda da ilha, parece comprometer a própria sobrevivência daquela gente, desde o vendedor de cerveja, mergulhador, barqueiro, pesqueiro, enfim toda a cadeia de serviços relacionadas ao turismo. De fato, as perdas materiais, de vida e simbólicas são muitas.

Olavo Soares disse...

Caramba... há pouco o que falar.

Belo relato, Frédi.

E boa sorte ao povo de Angra, e que as autoridades (seja lá quais forem) façam sua parte.

Marcão disse...

Ainda não botaram a culpa no Lula?!??

Anônimo disse...

Puxa, fiquei com os olhos marejados. Difícil encontrar um texto com tamanha sensibilidade, ainda mais num site de futebol.

Marília disse...

Marcão, a culpa (ou parte dela) já foi para o lula.

Foi noticiado que a verba federal para desastres naturais teve corte de 55%...

Mónica "la argentina" disse...

Gracias, Fredi, por incluirnos a mi marido Daniel y a mis hijos León y Tomás en tu relato... Aún la tragedia puede ser relatada bellamente, qué curioso es esto, verdad? Así fueron las horas del primer dia del año, tal como las describís. Quiero agregar algo también bello: la noche del 31, durante la cena de despedida del año, alguien propuso en la mesa hacer juntos una oración de bendición y rezar el Padrenuestro. Soy creyente, y esa escena íntima y espiritual de plegaria en dos idiomas me confortó, y de alguna manera siento que nos preparó para salir sin daños de la próxima travesía de horas después... Un gran abrazo desde Quilmes, Argentina!

Simone disse...

oi Mónica

Concordo contigo quando falas do "Padrenuestro", com méritos a super Flavia! Espero que possamos nos encontrar e comemorar a amizade outras vezes!

Maria Consuelo disse...

Una se vuelve egoista cuando "los suyos" se salvaron de la tragedis.Agradece el que estén bien;pero pensando en todos los que murieron creo que este grupo empezó el año de manera "privilegiada" a pesar de lo ocurrido.
Leon y Tomi lo vivieron sin demasiado sobresalto seguramente porque sentian la seguridad y contencion de sus padres.-Seguramente todos sacaran provecho de esto....