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sábado, dezembro 04, 2010

O Guarani, a mala branca e o desprezo pelo esporte

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Em 1995, o Santos enfrentava o Guarani em um Pacaembu lotado e uma vitória simples o colocaria nas semifinais do Brasileiro daquele ano. Disputando vaga com o time da Vila estava o Atlético-MG, que enfrentava o Vitória mas precisava de um revés santista diante do Bugre para conseguir ficar entre os quatro. Durante todo o período pré-jogo, o assunto mala branca foi recorrente, sendo que um dono de uma loja de eletro-eletrônicos chegou a anunciar, para quem quisesse ouvir, que daria uma TV 29 polegadas (à época, artigo bem mais valioso do que é hoje) para cada jogador campineiro caso arrancassem um empatezinho que fosse com a equipe de Giovanni e cia.

Provavelmente o aparelho de televisão não foi o único incentivo prometido ao Guarani. Depois do apito inicial, os verdes pareciam disputar uma final de campeonato. Corriam, marcavam, planejavam o bote em contra-ataques, exploravam toda a ansiedade do Peixe que penava enquanto seu rival à vaga já virava o primeiro tempo vencendo por 2 a 0 o desinteressado Vitória, que não havia sido agraciado com promessas financeiras.

O martírio alvinegro durou até os 37 minutos do segundo tempo, quando Marcelo Passos acertou um dos belos chutes que costumava arriscar sempre no lado direito da grande área. Giovanni ainda faria o segundo e tudo o que cercou aquele jogo acabou um pouco obscurecido pela vitória santista e pelo que o Brasileirão reservava nas semifinais e finais daquele ano. Mas, para mim, torcedor, o Guarani ficou como um time malquisto. Havia visto outras pelejas do Bugre naquela competição e em momento algum tinha visto tanta entrega como naquele jogo contra o Santos, ficando a nítida impressão de que a única motivação da maioria dos jogadores naquele torneio eram as 30 moedas que seriam pagas em caso de sucesso. Pensei como um torcedor bugrino deveria se sentir desprezado vendo a diferença de atuação do seu time quando bem “incentivado” por um “co-irmão”.


Não sou daqueles que acha que um jogador é “mercenário” porque negocia um salário melhor ou um prêmio por conquista com a direção de um clube. Idem para aquele atleta que sai de um time para ir a outro que lhe oferece condições econômicas melhores ou perspectivas de ganhos futuros. O atleta em geral é um proletário que vende seu pé-de-obra e que tem uma carreira mais curta que as demais profissões, natural que ele precise pensar no seu bolso. Mas um dos pontos que faz parte da avaliação de qualquer profissional da bola é o quanto ele se entrega a uma partida e como interage e respeita sua própria torcida., seja ela de um time pequeno ou de um grande. E correr mais por causa de uma mala branca é um evidente sinal de desrespeito.

Além de muitos entenderam ser ilegal de acordo com o Código Brasileiro de Justiça Desportiva e de estimular um sistema de extorsão e chantagem – afinal, um time que acha que deveria receber o tal incentivo financeiro pode falar para um possível interessado: “e aí, não vem nada pra gente, não? Olha que entregamos o jogo, hein...” – a mala branca é a síntese de um sistema em que o mais forte economicamente aproveita da fragilidade do pequeno para tratá-lo... como pequeno. Pela lógica, seria mais fácil o Corinthians, por exemplo, “incentivar” o Palmeiras para que ganhasse do Fluminense, já que o Guarani é muito inferior tecnicamente que o Palestra. Mas os jogadores palmeirenses não aceitariam tal “ajuda” por ser algo obviamente desonroso em função da rivalidade que ainda dá alguma proteção moral à competição. A mala branca é feita prioritariamente para o time dito pequeno, que aceita se apequenar ainda mais. Como o Guarani fez em 1995 e como deve fazer amanhã.

O dinheiro oferecido pelo grande ao menor só serve para legitimar o sistema de castas estabelecido no futebol brasileiro atual. Se antes era mais fácil um pequeno se sobressair e se manter em alta por um período, como aconteceu com o próprio Bugre em parte dos anos 1970 e 1980, hoje isso é impossível. Os recursos advindos da venda de direitos de televisão, por exemplo, que constituem boa parte das receitas dos grandes, são distribuídos em cotas fixas que não levam em conta, como em outros países, o mérito esportivo. Um clube grande pode ter um ano desastroso, meter os pés pelas mãos, ter gestões tenebrosas, cair para a segunda divisão que o dinheiro dele da TV estará lá no ano que vem, intacto. Premia-se a incompetência e muitas vezes a corrupção enquanto o pequeno que faz uma boa gestão e se destaca não vai ganhar mais por conta disso, um contrassenso levando-se em conta o espetáculo.

A mala branca nada mais é que as migalhas que o grande oferece ao pequeno para legitimar esse sistema de perpetuação de diferenças, que tendem a ficar maiores. Paga-se para que ele continue pequeno. Azar do Guarani, azar do torcedor e do futebol, que cada vez mais parece deixar claro que o gol é, de fato, um mero detalhe.

7 comentários:

olavo disse...

Discordo. O futebol hoje, por mais organizado do que o do passado (entenda-se que estou fazendo uma comparação entre passado e presente, não dizendo que o atual é ideal), assegura mais mecanismos de sobrevivência aos pequenos que conseguiram se destacar dentro de campo.

Exemplos? O minúsculo Salgueiro, de Pernambuco, classificou-se para a Série B (onde estão também os igualmente pequenos ASA, Icasa e, a partir de 2011, o Grêmio Prudente) e terá seus direitos respeitados.

Em anos anteriores - e aí falo das décadas de 80 e 90, que lembramos com precisão - um bom desempenho poderia ser apagado de uma hora para outra com uma simples canetada, uma aceitável (à época) virada de mesa.

Em 85, o Brasil de Pelotas chegou à semifinal do Brasileirão. Foi "recompensado" jogando, no ano seguinte, um torneio paralelo que até daria acesso aos duelos com os grandes, mas só após inúmeras fases - os gaúchos fizeram apenas oito partidas e enfrentaram adversários como os extintos Pinheiro e Cascavel e os portentosos Novo Hamburgo e Marcílio Dias.

Outras distorções podem ser achadas aos montes, nada que uma buscazinha rápida (como a que eu fiz) não resolva.

O futebol brasileiro de hoje é, sim, desorganizado e corrupto. Mas se o prisma é uma comparação com o passado, hoje estamos em níveis europeus. Negar isso é saudosismo, idealismo.

olavo disse...

E sobre o jogo de 1995: eu estava no Pacaembu e a agonia era gigante. Realmente, os bugrinos mostraram um ímpeto assustador.

(Mas vale dizer que houve uma mutretinha pró-Santos na ocasião: a transferência do jogo de Campinas para São Paulo foi algo sem nenhuma explicação lógica, que até rendeu inúmeros protestos do Galo à época.)

Glauco disse...

Estamos falando de coisas diferentes, Olavo. Que o futebol está mais organizado em termos de viradas de mesa, não tenho dúvidas, mas vou lembrar de novo aqui que isso não é mérito dos dirigentes, e sim do estatuto do Torcedor que evita essas mudanças abruptas de acordo com a vontade dos cartolas.

A lembrança que vocês faz a respeito do Salgueiro e outros, na verdade, vai ao encontro do que estou falando: hoje o Salgueiro é igual ao Guarani, estarão na mesma série em 2011. E em 2013 podem estar ambos na Série C ou D. A questão é que, antigamente (e isso não é saudosismo, é constatação) muitos times do interior fizeram história e firmaram tradição com administrações interessantes e interação com a torcida, o Guarani foi um deles. Nessa época, não havia direitos televisisvos ou eles valiam muito pouco nas receitas dos clubes, ou seja, todos estavam mais nivelados nesse aspecto.

Com a valorização dos direitos televisivos os clubes pequenos dançaram e hoje a diferença de receitas é enorme. Na Inglaterra, existe uma parte que é dividida igualmente entre os clubes, uma outra por conta da classificação na competição anterior. Isso aplicado aqui teria feito, por exemplo, times que caíram pra segunda divisão passarem aperto no Brasil, o que seria justo, dado que foram incompetentes, e abriria espaço para talvez algum pequeno se firmar por um período maior de tempo entre os grandes. É isso que digo, Olavo, hoje os times pequenos surgem e desaparecem tão rapidamente como surgiram, vide o Ipatinga que caiu pra Série C agora. Ou o Santo André, vice-campeão paulista que se desfez de seus valores (a maioria tinha direitos federativos presos a empresários mesmo) e caiu para a Série C do Brasileiro na sequência de uma bela campanha no estadual mais difícil do país.

Por conta disso, um pequeno se sobressair por um tempo maior vai ser difícil na estrutura do futebol atual. Antes dessa diferença abissal de receitas era mais fácil.

Quanto ao jogo do Pacaembu, o Guarani quis ganhar duas vezes: com a mala branca e com a transferência do jogo pro Pacaembu, onde a renda seria maior.

olavo disse...

Mas Glauco, você acha mesmo que os times pequenos se sustentavam mais antigamente? Houve, no passado, um exemplo como o do São Caetano, que entre 2000 e 2006 fez feitos dignos de time grande? Ou do Ipatinga, que saiu do anonimato em meados dos anos 1990 para ser uma vez campeão mineiro, vice estadual duas vezes, e isso num período que durou uns seis anos, se não me falha a memória?

Juro que não estou sendo irônico, mas se você souber um exemplo de um time pequeno cuja relevância tenha se mantido por muito tempo, por favor, apresente.

Um dia em que estava no ócio resolvi dar uma olhada nas tabelas dos Paulistas nos anos 60 e 70. E o que constatei foi que em raríssimas exceções os torneios não foram dominados por Santos, São Paulo, Corinthians e Palmeiras. Vale a pena ver, é só ir ao www.rsssf.com.

A organização do futebol anual respeita regulamentos e garantirá que, em 2011, Salgueiro, ASA e Icasa joguem um torneio nacional, com TV, que durará de abril a dezembro e cuja tabela será respeitada.

Não consigo, mesmo, ver como isso pode ser pior para um time pequeno do que o modelo do passado.

Mas concordo com você quanto à distorção das cotas da TV, isso realmente é incorreto.

Glauco disse...

Os times pequenos eram mais respeitados porque o abismo entre as receitas dos grandes e dos pequenos era maior, o que refletia na formação dos times. Mesmo que não ganhassem títulos, eram respeitados e chegavam em fases decisivas com força.

O próprio Guarani foi citado no post como um time que foi bem nos anos 1970 e 1980, vamos a uma listinha com a ajuda do Wikipedia:

1978 - Campeão Brasileiro - CBD
1979 - Terceiro lugar na Taça Libertadores da América (muito time grande não chegou perto disso)
1981 - Campeão Brasileiro da Taça de Prata (outros grandes disputaram o torneio também, o sistema de disputa e de classificação ao Brasileiro era diferente do que se tornou depois)
1982 - Vice-campeão do Torneio dos Campeões do Brasil
1982 - Terceiro lugar no Campeonato Brasileiro Série A
1986 - Vice-campeão Brasileiro
1987 - Vice-Campeão Brasileiro do Módulo Amarelo
1988 - Vice-campeão Paulista - FPF

Quanto à organização do futebol, vou repetir sempre porque é um dado: é preciso agradecer ao Estatuto do Torcedor, que "forçou" a "organização" do futebol brasileiro.

Leandro disse...

Rivalidade que ainda dá alguma proteção moral à competição?!?!?!
Não acredito que eu li isso...
Quer dizer que as posturas de SPFC e Palmeiras diante de Fluminense, motivadas pela rivalidade, não tiraram um milímetro de proteção moral da competição e do probabilíssimo título do Fluminense?
Eu nem acreditava nas possibilidades de entrega neste ano, como não acreditava (e ainda não acredito) na tão falada entrega do Corinthians em 2009, imputada a uma penalidade cobrada aos 48 do segundo tempo num jogo em que o Flamengo já vencia, mas quem viu cinco minutos dois dois jogos(?) do Fluminense em Barueri percebeu que os cariocas tiveram sombra e água fresca de dois times que já são menos qualificados que eles.
Concordo com os argumentos a respeito da dopagem financeira, mas rompantes de indignação quanto a entregas de jogos por rivais também seriam esperados de quem defende a legalidade e a moralidade esportivas.

Marcão disse...

E no final dessa polêmica toda nem conseguiram vencer o Goiás...