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terça-feira, dezembro 17, 2013

'No céu não tem jogo nem bebida'

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Na TV, Tarcísio Meira atuou como o Capitão
Hoje, 17 de dezembro, o escritor gaúcho Érico Veríssimo estaria completando 108 anos. Em outros posts (como aqui e também aqui), já destaquei trechos de seus livros, mas gostaria de homenageá-lo com uma das passagens mais brilhantes de sua literatura - uma aula sobre política, religião, hipocrisia e falso moralismo em forma de diálogos esparsos entre os personagens Capitão Rodrigo e Padre Lara, na saga "O Tempo e o Vento". Li isso quando tinha uns 14 anos e, pelos anos seguintes, reli muitas vezes. 'Buenas e me espalho', vamos direto ao que interessa:

"- Capitão...
Rodrigo voltou os olhos para o padre.
- Vosmecê é um soldado, não é?
- E vosmecê é um padre...
- Espere, estou falando sério. Como militar vosmecê sabe que num batalhão tem de haver disciplina, o soldado tem de obedecer ao seu superior.
- Naturalmente.
- Desde que o mundo é mundo sempre houve os que mandam e os que obedecem, um servo e um senhor. O mais moço obedece ao mais velho...
- Isso depende...
- Deixe-me terminar. O filho obedece ao pai, a mulher obedece ao marido. Se as coisas não fossem assim o mundo seria uma desordem...
- Mas quem foi que lhe disse que o mundo  não é uma desordem?
(...)
- Capitão, vosmecê não é religioso?
- Não. Religião nunca me fez falta.
- Há pessoas que só se lembram da Virgem quando troveja.
- Quando troveja me lembro do meu poncho.
(...)
- Vosmecê já pensou no que lhe pode acontecer depois da morte?
- Não.
- Não tem medo de ir para o inferno?
Rodrigo cruzou as pernas, atirou o busto para trás e recostou-se contra a porta da capela.
- Padre, ouvi dizer que no céu não tem jogo nem bebida nem carreiras nem baile nem mulher. Se é assim, prefiro ir pro inferno. Além disso, as tais pessoas que todo mundo diz que vão pro céu por serem direitas e sem pecado são a gente mais aborrecida que tenho encontrado em toda a minha vida. Tenho conhecido muito patife simpático, muito pecador bom companheiro. Se eles vão para o inferno, é para lá mesmo que eu quero ir.
(...)
- Mas vosmecê nunca pensa em Deus?
- Uma vez que outra.
- Não reconhece que Ele fez o mundo e todas as pessoas que há no mundo?
- Se Deus fez o mundo e as pessoas, Ele já nos largou, arrependido.
- Não diga tamanho absurdo! Se Ele tivesse largado, tudo andava de pernas para o ar.
- E não anda?
(...)
- Nunca aprendi nenhuma reza nem me habituei a ir à igreja.
- Mas ainda tem tempo. Nunca é tarde, meu filho.
- Qual! Há certas coisas que a gente ou aprende quando é menino ou nunca mais. Mas, pra lê ser franco, não tenho sentido falta de igreja nem de reza nem de santo.
- Nem na hora do perigo?
- Pois na hora do perigo mesmo é que não penso nessas coisas.
- Paciência. Pode ser que um dia vosmecê mude. Deus é grande.
- E o mato é maior, padre. É o que esses caboclos aprendem na luta dura desde pequeninos. Não podem confiar em Deus e ficar parados. Quem fizer isso acaba degolado ou furado de bala. Às vezes o melhor recurso é ganhar o mato. A gente não pode estranhar que essa gente pense assim. Foi a vida que ensinou...
- Deus escreve direito por linhas tortas.
Rodrigo abriu a boca num bocejo cantado e depois disse:
- Mas o diabo é que ninguém sabe ler o que Ele escreve.
(...)
Rodrigo apanhou um seixo, fez pontaria numa árvore e arremessou-o, errando o alvo.
- Se eu fosse dono do mundo, fazia algumas mudanças...
- Por exemplo... - pediu o padre.
- Acabava com essa história de trabalhar...
- Sim, e depois?
- Fazia os filhos virem ao mundo de outro jeito. Eu vi o que a Bibiana sofreu. É medonho.
O vigário sorria. Aquelas palavras, partidas dum egoísta, não deixavam de ter seu valor.
- E depois?
- Dividia essas grandes sesmarias de homens como o coronel Amaral.
- Dividia? Como? Pra quê?
- Dividia e dava um pedaço pra cada peão, pra cada índio, pra cada negro.
- Não vá me dizer que ia libertar os escravos...
- E por que não? Acabava com a escravatura imediatamente.
(...)
- Ah! Eu ia m'esquecendo. Pra principiar, fazia o mundo mais pequeno, pra gente poder atravessar todo ele a cavalo, sem levar muito tempo.
- E como é que vosmecê ia se arranjar, indo dum país pra outro sem conhecer outra língua senão a sua?
- Eu acabava com esse negócio de línguas diferentes... Rodrigo fez uma pausa e ficou pensativo.
- Que mais?
- Acabava também com a velhice.
- Acabava?
- Quero dizer, ninguém envelhecia mais...
- Nem morria?
- Morrer... morria. Mas se morria era de desastre, nos duelos, nas guerras.
(...)
Rodrigo desabotoou a camisa e puxou-a para fora das bombachas. Sentia calor. Não havia a menor viração na noite cálida.
- Conheci muitos padres por esse mundo velho que tenho corrido. Eles nunca estão contra o governo.
- A Igreja não é revolucionária - exclamou o vigário. - A Igreja não é lugar de conspirações. Ela representa o poder espiritual, que está acima, muito acima do temporal.
- Não me venha com essas palavras difíceis, padre, que eu não entendo. Fale claro. Temporal pra mim é mau tempo. Mas, falando sério, amigo Lara, cá pra nós, no maior segredo, vosmecês nunca se arriscam a ir contra o governo, não é mesmo?
O padre rosnou alguma coisa ininteligível. Depois sua voz se fez clara e ele murmurou:
- Não é a Igreja que está com o governo. É o governo que está com a Igreja.
- Aha! - e a gargalhada de Rodrigo encheu aquele pedaço da noite que parecia envolver a casa. - Quando nós brigamos com os castelhanos, nossas bandeiras e nossas espadas eram benzidas aqui pelos padres católicos. E os padres católicos lá da Banda Oriental faziam o mesmo com as bandeiras e as espadas dos castelhanos. Como é que se explica isso?
- Isso prova que a Igreja Católica é universal. Está acima das paixões e dos interesses dos homens, que são todos iguais perante Deus.
- Iguais? Até os negros?
O padre teve um levíssimo instante de hesitação - não porque considerasse os negros animais, mas porque lhe passou pela cabeça uma dúvida quanto à maneira como o outro podia usar sua resposta.
- Até os negros, claro.
- Então por que é que vosmecê nunca protestou contra a escravatura?
O padre mexeu-se, tomado de mal-estar. Nessas ocasiões ele sentia mais agudamente que nunca aquele fogo no peito.
- Os escravos nesta província são muito mais bem tratados que em qualquer outra parte do Brasil! Eu queria que vosmecê visse como os senhores de engenho tratam os negros lá no Norte.
- Eu sei, mas vosmecê não respondeu à minha pergunta... Será que Deus não fez os homens iguais?
- Mas tem de haver categorias para haver ordem e respeito. - Usou uma palavra grande para esmagar o outro. - Tem de haver hierarquia. No fim de contas esse foi o mundo que nós encontramos ao nascer, capitão. Não podemos mudar tudo de repente.
Ia acrescentar: 'Um dia essas mudanças hão de fazer-se'. Mas achou melhor calar-se. As paredes tinham ouvidos."

domingo, dezembro 26, 2010

Na cachaça, a amizade e o amor incondicionais

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Na ficção "Incidente em Antares" (Editora Glôbo, 1971), do gaúcho Érico Veríssimo, sete defuntos que são impedidos de serem sepultados por uma greve geral que abrange também os coveiros se levantam dos caixões e, em protesto contra os "maus tratos", retornam para assombrar e empestear a cidade com seus aspectos hediondos e o odor insuportável. Cada um deles tem suas contas a ajustar: o advogado flagra a esposa com outro na cama e vai ao cartório para fazer uma mutreta; a matriarca milionária surpreende as filhas e os genros discutindo com violência sobre a partilha de jóias que ela pedira para ser enterrada com elas; o maestro fracassado que cortou os pulsos volta à casa de solteirão para finalmente executar a sonata que não conseguira décadas antes, em público; o militante que morreu torturado pela polícia vai conversar com um padre progressista para tratar da emigração de sua esposa grávida; a anciã e ex-prostituta retorna à sua moradia miserável para consolar a amiga e colega de profissão; o sapateiro anarquista vai à delegacia atazanar o truculento torturador do município. O único que não tem rancor ou assuntos urgentes é Pudim de Cachaça, o bêbado que, mesmo tendo sido envenenado pela esposa, que não aguentava mais seus porres e agressões, vai procurar apenas seu melhor amigo e companheiro de copo, um tal de Alambique.

"Alambique espanta as môscas que voejam também em tôrno da sua cabeça, pega o violão e começa a tocar uns ponteios. O morto pergunta:

- Escuta aqui... é verdade mesmo que a Natalina botou veneno na minha comida?

- É. Confessou.

- Não teria sido invenção da polícia?

- Não. Falei com ela. Não nega que te matou de propósito.

- Coitada! Não está arrependida?

- Não sei. Mas não me pareceu.

- E agora? Será que vai pegar muitos anos de cadeia?

- Ora, menino, isso depende de muita coisa. Do discurso do promotor. Do advogado dela. Dos jurados. Toma alguma coisa!

Alambique ergue-se e, meio cambaleante, vai até a prateleira do botequim, por trás do balcão, segura uma garrafa de cachaça e volta com ela para a mesa.

- Estamos de donos desta joça. Quando te viu, o Quincas ficou branco como papel e botou o pé no mundo. Hoje podemos beber de graça. Quem sabe aceitas um vinho... ou um licorzinho?

Pudim belisca, distraído, as cordas do violão do amigo.

- Onde está a Natalina?

- Na cadeia municipal. Onde mais?

Pudim de Cachaça passa a mão pelo estômago, quase numa carícia.

- Escuta aqui, Alambique... E se a gente hoje de noite fôsse fazer uma serenata pra ela?"

sexta-feira, dezembro 03, 2010

'Dinheiro, mulheres, política e futebol'

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Na última parte de sua saga "O tempo e o vento", chamada "O arquipélago", o escritor gaúcho Érico Veríssimo (foto) descreve um fictício Café Poncho Verde, ponto de encontro dos homens na imaginária cidade de Santa Fé - uma síntese daqueles estabelecimentos rústicos e acolhedores da passagem entre os séculos 19 e 20, onde todos os fatos marcantes da sociedade local, do Brasil e do mundo eram informados e discutidos, ou aconteciam ali mesmo. "Contava-se que em 1910, numa de suas raras visitas a Santa Fé, o Senador Pinheiro Machado entrara no Poncho Verde para comprar um maço de palha de cigarro e uma caixa de fósforos, causando sensação entre os que lá se encontravam", narra Verríssimo. "Em 1913 (e quando agora se contava isto a gente nova exclamava: 'Essa eu não como!') Theodore Roosevelt, ex-presidente dos Estados Unidos, entrara em carne e osso no café em companhia do intendente municipal e de autoridades militares - imaginem para quê? - para tomar um cálice de cachaça, o que fizeram com gosto, estralando a língua e lambendo os bigodes".

Como se vê, política e cachaça movimentavam o local. Mas o tempo adicionaria também o futebol e a cobiça financeira e sexual entre os assuntos dos frequentadores. "Em torno daquelas mesas, várias gerações de santa-fezenses e forasteiros haviam, vezes sem conta, 'matado o bicho' e tomado os seus cafés, trocando pedaços de fumo em rama ou cigarros feitos, contando anedotas, falando mal da vida alheia, discutindo seus problemas e os dos outros. E os assuntos mais capazes de provocar dissensões e paixões eram, como sempre, dinheiro, mulheres, política e futebol. A rivalidade entre os clubes esportivos Avante e Charrua continuava encarniçada, separando famílias; e aos sábados, em véspera de partida, e aos domingos, depois desta, o café se enchia de gente, e não se falava noutra coisa. Discutiam-se os lances do jogo, insultava-se o juiz, armavam-se brigas".

E o escritor ainda reserva um trecho para enaltecer a coragem e a resistência dos manguaças: "Em 1910, na noite em que apareceu o cometa de Halley, o café esteve quase deserto, pois pelas dúvidas as pessoas ficaram em casa, mesmo as que não acreditavam naquelas histórias de fim de mundo. Apenas dois ou três paus-d'água inveterados foram vistos no salão, diante de seus cálices de caninha e de seus copos de cerveja". Como o Futepoca se propõe a ampliar o "o alcance do balcão" do bar, como espaço de debate, é interessante a analogia do tal Poncho Verde com os três temas que inspiram sua sigla. O café fictício da saga "O tempo e o vento" representa simbolicamente, portanto, os balcões mais ancestrais que um dia viriam a nos atrair e nos inspirar. E como Veríssimo nasceu em dezembro, há 105 anos, fica aqui esse post como homenagem. Saúde!

quinta-feira, novembro 04, 2010

A saudação dos canalhas

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Relendo a saga "O tempo e o vento", de Érico Veríssimo (uma edição do Círculo do Livro, de 1982), atentei para uma fala do personagem Rodrigo Terra Cambará, bisneto de "um certo capitão Rodrigo" e que torna-se um político corrupto da "côrte gaúcha" no primeiro governo de Getúlio Vargas, entre 1930 e 1945. Quando o presidente é deposto, ele volta às pressas para a imaginária cidade de Santa Fé, onde convalesce de um ataque cardíaco. Uma de suas amantes, Sônia, está hospedada num hotel e o político canalha pede ao amigo e alcoviteiro Neco que leve um bilhete dele para ela (o grifo é nosso):

Dobrou o papel, meteu-o num envelope e, sorrindo, entregou-o ao barbeiro:
- Capitão Neco, aqui está a mensagem. Veja se consegue passar as linhas inimigas... Se for preso, engula a carta. Viva o Brasil!


E eis que, para minha surpresa, o discurso do candidato José Serra, do PSDB (foto), após a confirmação de sua derrota nas eleições de 31 de outubro, terminou da seguinte forma (com novo grifo nosso):

- Por isso a minha mensagem de despedida nesse momento não é um adeus, mas um até logo. A luta continua. Viva o Brasil!

Coincidência?