Destaques

Mostrando postagens com marcador loucura social. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador loucura social. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, abril 22, 2015

'Até que era bom!'

Compartilhe no Twitter
Compartilhe no Facebook

Voltando de táxi para casa, comentei no celular alguma coisa sobre Taquaritinga, cidade paulista onde nasci. O taxista reagiu de imediato, para meu espanto:

- Taquaritinga?!? Eu conheço. Peguei um trem pra lá quando eu era mendigo.

Reparem na informação adicional (o grifo é meu): "quando eu era mendigo". O que me levou, inevitavelmente, a dar corda na conversa:

- Perdão, como é o nome do senhor?

- Juraci. Mas todo mundo me conhece como Pai Velho.

- O senhor foi mendigo?

- Ah, eu morava na fazenda do meu pai, em Mato Grosso, e me juntei com uma mulher, tive filhos. Daí eu larguei ela e meu pai ficou bravo, me xingou, me esculhambou, disse um monte de coisa na minha cabeça. Fiquei doido com isso e fugi de lá, me mandei aqui pra São Paulo, sem dinheiro nenhum. Procurei trabalho, mas não arranjei. Daí, fui morar na rua.

- E o trem que o senhor pegou para Taquaritinga?

- Naquela época, isso tem uns 20 anos ou bem mais, o governo deixava os mendigos pegar um trem pro interior do Estado, sem pagar. Eu peguei o trem na Estação da Luz e desci lá em Taquaritinga. Botaram a gente numa cocheira. Era Natal, daí, à noite, levaram pra gente um monte de carne assada, um monte de comida. Foi aquela fartura!

- O senhor passou muito tempo lá?

- Tentei arrumar trabalho, mas também não consegui. Daí, fui a pé pra Jaboticabal, a cidade ao lado. Cheguei lá com uma fome lascada. Quando tava subindo uma ladeira, uma mulher me parou e perguntou se eu tava com fome. Respondi que sim e ela falou que a prefeitura dava comida para os bóias-frias, numa praça. Fui correndo. E tinha aqueles tarmborzões, cheios de comida. Deram leite, um monte de coisa. Depois fui a pé pra Araraquara.

- Nossa! É muito mais estrada do que de Taquaritinga pra Jaboticabal.

- É, sim. Fui me embrenhando por uma estrada de terra, no meio das fazendas. Lembro que tava com uma sede danada, de madrugada, e pulei uma cerca pra ir beber água numa lagoa. Veio um cachorro bravo e saiu correndo atrás de mim. Eu pulei a cerca de volta e quase fui atropelado por um carro. O cachorro fugiu e o motorista me deu carona só por um pedacinho, depois voltei a andar até Araraquara. Mas lá, de novo, não arrumei emprego. Tentei pegar o trem de passageiro de volta pra São Paulo e não deixaram. Porque o governo dava passagem de graça pros mendigos irem pro interior, mas pra voltar não dava, não! Aí, tentei subir escondido num trem de carga, mas me pegaram. Só quando consegui arrumar dinheiro, pedindo, paguei e consegui voltar pra São Paulo. E voltei a morar na rua.

- Que história... E aqui na capital, morava onde?

- Era maloqueiro, muito doido (risos). Morava lá no centrão, no Parque Dom Pedro II, debaixo das passarelas, viadutos. Fiquei oito anos nessa vida.

- Não era muito perigoso?

- Às vezes, sim. Uma vez eu tava meio dormindo e notei que um outro vinha chegando devagar pro meu lado, pra tentar roubar meu garrafão de pinga. Dei uma carreira nele e voltei a cochilar. Dali a pouco, acho que foi por Jesus, abri um pouco o olho e vi o cara voltando, com uma baita de uma pedra pra jogar na minha cabeça. Só tive tempo de virar a cabeça e a pedra afundou no chão. Corri atrás do infeliz e quebrei ele no cacete. Mas tive que ir dormir em outro lugar. Só que, na maior parte do tempo, é tranquilo. Você fica lá, dormindo e bebendo. De vez em quando vem médico perguntar como é que você tá. E todo mundo dá comida. São Paulo tem esse monte de maloqueiro porque aqui dão muita comida.

- E como o senhor saiu daquela vida?

- Um dia contei minha história pra um policial e ele me ajudou. Conseguir tirar meus documentos de novo e fui procurar emprego. Entrei em contato com a família, meu pai me deu uma bronca. 'Tu é muito doido, meu filho! Pra quê fazer isso?' Eu sou muito doido, mesmo (risos). Meu pai morreu e deixou um dinheiro, que a família dividiu. Com minha parte comprei esse carro pra trabalhar de taxista e um apartamentozinho. Moro lá com uma mulher que conheci na rua, era mendiga também. Meus irmãos ainda tocam a fazenda que era do meu pai, lá no Mato Grosso, e uma vez por ano me mandam um dinheirinho. Daí eu paro de trabalhar e passo uns dois meses só tomando cachaça! (risos) Minha mulher fica louca da vida! Bebo o dia inteiro, uns dois meses, e depois volto a trabalhar no táxi.

- É, sua vida progrediu. Nem eu tenho casa própria ou automóvel (risos). Hoje o senhor está bem melhor do que quando morava na rua, não?

- Olha, até que era bom! (o grifo, mais uma vez, é meu)

- Viver na rua? Era bom?!? Como assim?

- Eu não tinha preocupação com nada, não tava nem aí. Só dormia e bebia minha cachaça. Não gastava pra comer. Não tinha conta pra pagar, não tinha IPTU, não tinha televisão, não tinha internet, não tinha documento, não tinha telefone, não tinha nada dessas porcarias. Não tinha perturbação, azucrinação, de lado nenhum. Era só paz e sossego. De vez em quando me dá até uma saudade (risos). Mas eu também não tô nem aí pra nada, não. Quando quero, paro de trabalhar e bebo muita cachaça. Eu sou doido! Quem já morou na rua não liga pra mais nada, não dá importância pra nada nesse mundo.

- É justo.

Foi a última coisa que eu disse, antes de pagar, descer e me despedir. E ainda está ecoando nos meus ouvidos: "Até que era bom!" Realmente, nada funciona e tudo está fora de controle. E o sentido da vida é mesmo arrumar encrenca... pra tentar fugir dela!


domingo, março 24, 2013

A atualidade do The Dark Side of The Moon, 40 anos depois

Compartilhe no Twitter
Compartilhe no Facebook

Por camila souza ramos*

O oitavo disco do Pink Floyd foi lançado em 24 de março de 1973 e chega hoje ao seu 40º aniversário, mas o álbum de meia-idade ainda reverbera nas gerações posteriores de 80’, 90’ e 2000’. Reverbera porque foi o primeiro e um dos únicos álbuns da história do rock que ousaram tocar uma epopeia da modernidade num estilo psicodélico, da loucura como uma produção social do nosso tempo, e conseguiu fazer isso quase numa ópera rock, formato então inovador mesmo para o próprio Pink Floyd.
Naquela época, o antigo protagonista da banda, Syd Barrett, já havia saído do grupo, após se viciar em LSD e desenvolver um comportamento esquizofrênico. O problema mental de Barret – guitarrista que já inspirava muitos contemporâneos seus – afetou o grupo todo, e levaram-se uns anos para que Roger Waters tomasse a liderança do Floyd e decidisse tratar desse problema diretamente em suas próprias composições. Mas a decisão não poderia ter sido mais acertada: as músicas serviram como uma catarse da banda para o sofrimento que presenciavam, aliando o testemunho da loucura com reflexões filosóficas sobre a resistência ao tempo, a ganância e outras loucuras sociais, além de alcançar uma produção musical fora do padrão de rock comportado, com longos solos de guitarra e baixo, com pouca simetria, mas com uma harmonia que em algumas vezes se aproxima da música clássica – o grupo já havia usado e abusado das extensões de guitarra em Ummagumma (1969), mas naquele álbum as letras ainda não estavam à altura das melodias.
Syd Barrett e Roger Waters
Quando falam do lado escuro da lua, eles falam de todos os lados escuros de nossa alma, de nossa humanidade. Aquilo que deixamos oculto, que tememos mostrar, e que, quando nos é revelado, assusta, como a loucura, ainda que saibamos que temos em nós os seus germes. As músicas jogam luzes sobre os bichos-papões que estão sob as nossas camas e para os quais preferimos não olhar, mas que, quando encaradas, podem nos revelar um mundo que merece ser olhado – e deve ser. Relações possíveis com a capa do álbum não são mera coincidência: um feixe de luz branca (a reflexão, a música), atravessa o prisma (nosso inconsciente) e se revela multicolorido (a consciência). Observação: o significado dessa capa é discutido até hoje, e fala-se em referência às pirâmides do Egito, sobre a revelação do lado oculto do universo, entre outros. A interpretação que coloco é uma entre várias possíveis.
Nas letras do disco, Waters aproxima da obsessão comportamentos tidos como normais ou inquestionáveis: “The paper holds their folded faces to the floor/And every day the paper boy brings more” (Brain Damage); “I'm in the high-fidelity first class travelling set/And I think I need a Lear jet” (Money). Ou ainda, inverte o diagnóstico, questionando a loucura como patologia: “Very hard to explain why you're mad/even if you're not mad” (Speak To Me).
Em quase todas as músicas do disco, o grupo abusa de recursos sonoros para além dos instrumentos, como gravações de voz e locuções em um aeroporto. Dois pontos altos são o badalar simultâneo de diversos relógios em Time, e o som do cair de moedas e de caixas registradoras em Money. Esses recursos aproximam o álbum de uma narrativa, ainda que não linear, como se a forma chamasse a atenção do ouvinte para o conteúdo.
Parênteses: Money foi o sucesso inegável e mais do que justificado do disco, com uma mensagem direta às contradições do dinheiro no capitalismo. Contradição essa presente dentro da própria banda, que foi duramente criticada por alguns por terem ganhado muito dinheiro justamente fazendo crítica ao sistema, ainda que nunca tenham se advogado como revolucionários (Roger Waters fala um pouco disso nessa entrevista à Rolling Stone, disponível em http://migre.me/dPdFR). Apesar do peso musical de Money, creio que Time não esteja atrás. Ao falar sobre a fugacidade do tempo, nos faz pensar sobre o tempo que perdemos e se não é uma loucura querer controlar esse tempo transcorrido (coincidência histórica ou não, as músicas Money e Time foram compostas na época de expansão global do sistema de produção Just-in-time, cuja máxima é “tempo é dinheiro”).
Mesmo ao tratar dos problemas mentais de Syd, Waters mostra as pressões que o dinheiro, o tempo, as guerras (em Us and Them, por exemplo) e a possibilidade da morte exercem sobre o indivíduo. Com isso, ele consegue tratar de angústias também de todo o corpo social – e, dessa forma, compõe praticamente uma epopeia da modernidade, cujos problemas não apenas ainda não foram resolvidos como até agravados.
The Dark Side of The Moon fala de angústias, mas não busca saídas. Neste sentido, pode ser considerada uma produção mais juvenil de Pink Floyd, que seis anos, em 1979, lançou sua segunda maior obra-prima, The Wall – um disco mais duro, mas também mais direto, arriscando inclusive algumas palavras de ordem.
É tentador dizer que o rock atual não busca mais compor narrativas históricas, não se engaja mais nos problemas de seu tempo nem questiona mais a realidade, mas uma hipótese para essa ausência de referência é que as questões levantadas pelo rock dos anos 60’ e 70’ permanecem as mesmas, e as soluções, ainda distantes tanto da música como da realidade. Ou ainda, que as soluções esperadas por aquelas gerações não venceram nem corresponderam aos seus anseios. Diante disso, o rock apenas espelha hoje a falta de grandes alternativas, preferindo se recolher ao dia-a-dia, buscando escapar do conflito.
Aos 40 anos, The Dark Side of The Moon pode ter suas crises de meia-idade, mas também é como um pai que tem muita história e ensinamento a passar para seus filhos.


*Camila Souza Ramos é jornalista, sãopaulina não-praticante e acredita na socialização dos meios de produção, do rock progressivo e da cachaça. Presenciou os últimos anos das fitas K7 e, quando bebê, o pai tocava fitas do Pink Floyd para ninar a criança.