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Voltando de táxi para casa, comentei no celular alguma coisa sobre Taquaritinga, cidade paulista onde nasci. O taxista reagiu de imediato, para meu espanto:
- Taquaritinga?!? Eu conheço. Peguei um trem pra lá quando eu era mendigo.
Reparem na informação adicional (o grifo é meu): "quando eu era mendigo". O que me levou, inevitavelmente, a dar corda na conversa:
- Perdão, como é o nome do senhor?
- Juraci. Mas todo mundo me conhece como Pai Velho.
- O senhor foi mendigo?
- Ah, eu morava na fazenda do meu pai, em Mato Grosso, e me juntei com uma mulher, tive filhos. Daí eu larguei ela e meu pai ficou bravo, me xingou, me esculhambou, disse um monte de coisa na minha cabeça. Fiquei doido com isso e fugi de lá, me mandei aqui pra São Paulo, sem dinheiro nenhum. Procurei trabalho, mas não arranjei. Daí, fui morar na rua.
- E o trem que o senhor pegou para Taquaritinga?
- Naquela época, isso tem uns 20 anos ou bem mais, o governo deixava os mendigos pegar um trem pro interior do Estado, sem pagar. Eu peguei o trem na Estação da Luz e desci lá em Taquaritinga. Botaram a gente numa cocheira. Era Natal, daí, à noite, levaram pra gente um monte de carne assada, um monte de comida. Foi aquela fartura!
- O senhor passou muito tempo lá?
- Tentei arrumar trabalho, mas também não consegui. Daí, fui a pé pra Jaboticabal, a cidade ao lado. Cheguei lá com uma fome lascada. Quando tava subindo uma ladeira, uma mulher me parou e perguntou se eu tava com fome. Respondi que sim e ela falou que a prefeitura dava comida para os bóias-frias, numa praça. Fui correndo. E tinha aqueles tarmborzões, cheios de comida. Deram leite, um monte de coisa. Depois fui a pé pra Araraquara.
- Nossa! É muito mais estrada do que de Taquaritinga pra Jaboticabal.
- É, sim. Fui me embrenhando por uma estrada de terra, no meio das fazendas. Lembro que tava com uma sede danada, de madrugada, e pulei uma cerca pra ir beber água numa lagoa. Veio um cachorro bravo e saiu correndo atrás de mim. Eu pulei a cerca de volta e quase fui atropelado por um carro. O cachorro fugiu e o motorista me deu carona só por um pedacinho, depois voltei a andar até Araraquara. Mas lá, de novo, não arrumei emprego. Tentei pegar o trem de passageiro de volta pra São Paulo e não deixaram. Porque o governo dava passagem de graça pros mendigos irem pro interior, mas pra voltar não dava, não! Aí, tentei subir escondido num trem de carga, mas me pegaram. Só quando consegui arrumar dinheiro, pedindo, paguei e consegui voltar pra São Paulo. E voltei a morar na rua.
- Que história... E aqui na capital, morava onde?
- Era maloqueiro, muito doido (risos). Morava lá no centrão, no Parque Dom Pedro II, debaixo das passarelas, viadutos. Fiquei oito anos nessa vida.
- Não era muito perigoso?
- Às vezes, sim. Uma vez eu tava meio dormindo e notei que um outro vinha chegando devagar pro meu lado, pra tentar roubar meu garrafão de pinga. Dei uma carreira nele e voltei a cochilar. Dali a pouco, acho que foi por Jesus, abri um pouco o olho e vi o cara voltando, com uma baita de uma pedra pra jogar na minha cabeça. Só tive tempo de virar a cabeça e a pedra afundou no chão. Corri atrás do infeliz e quebrei ele no cacete. Mas tive que ir dormir em outro lugar. Só que, na maior parte do tempo, é tranquilo. Você fica lá, dormindo e bebendo. De vez em quando vem médico perguntar como é que você tá. E todo mundo dá comida. São Paulo tem esse monte de maloqueiro porque aqui dão muita comida.
- E como o senhor saiu daquela vida?
- Um dia contei minha história pra um policial e ele me ajudou. Conseguir tirar meus documentos de novo e fui procurar emprego. Entrei em contato com a família, meu pai me deu uma bronca. 'Tu é muito doido, meu filho! Pra quê fazer isso?' Eu sou muito doido, mesmo (risos). Meu pai morreu e deixou um dinheiro, que a família dividiu. Com minha parte comprei esse carro pra trabalhar de taxista e um apartamentozinho. Moro lá com uma mulher que conheci na rua, era mendiga também. Meus irmãos ainda tocam a fazenda que era do meu pai, lá no Mato Grosso, e uma vez por ano me mandam um dinheirinho. Daí eu paro de trabalhar e passo uns dois meses só tomando cachaça! (risos) Minha mulher fica louca da vida! Bebo o dia inteiro, uns dois meses, e depois volto a trabalhar no táxi.
- É, sua vida progrediu. Nem eu tenho casa própria ou automóvel (risos). Hoje o senhor está bem melhor do que quando morava na rua, não?
- Olha, até que era bom! (o grifo, mais uma vez, é meu)
- Viver na rua? Era bom?!? Como assim?
- Eu não tinha preocupação com nada, não tava nem aí. Só dormia e bebia minha cachaça. Não gastava pra comer. Não tinha conta pra pagar, não tinha IPTU, não tinha televisão, não tinha internet, não tinha documento, não tinha telefone, não tinha nada dessas porcarias. Não tinha perturbação, azucrinação, de lado nenhum. Era só paz e sossego. De vez em quando me dá até uma saudade (risos). Mas eu também não tô nem aí pra nada, não. Quando quero, paro de trabalhar e bebo muita cachaça. Eu sou doido! Quem já morou na rua não liga pra mais nada, não dá importância pra nada nesse mundo.
- É justo.
Foi a última coisa que eu disse, antes de pagar, descer e me despedir. E ainda está ecoando nos meus ouvidos: "Até que era bom!" Realmente, nada funciona e tudo está fora de controle. E o sentido da vida é mesmo arrumar encrenca... pra tentar fugir dela!