Que autor brasileiro superaria Joyce na manguaça?
Entretanto, para que não me acusem de levantador de lebre barato, uso essa anedota como mote para iniciar aqui uma pesquisa aberta – um work in progress (já que citei Joyce...) – da literatura manguaça universal. Não só brasileiros e irlandeses – a polêmica não vale a pena –, mas em geral. Faço também o convite a quem quiser contribuir com comentários, sugestões, opiniões, preferências etc. etc.
Rabelais, príncipe dos poetas ébrios
Aí, revirando minha memória literária – que infelizmente é curta, talvez pelo álcool –, não me lembro de nenhum escritor que supere Rabelais no quesito manguaça. E não é um cara deprezão, tipo Bukowsky (que, diga-se, nunca me convenceu). Rabelais, um ícone da cultura renascentista, é do tipo sangue-bão, um bom bêbado, companheiro de mesa, imensamente culto e ao mesmo tempo irônico (e autoirônico). Ri o bom e livre riso dos justos beberrões, que curtem a comida farta, motivo de mais beber e mais celebrar.
Aliás, já foi dito que ele e o James Joyce são praticamente da mesma família de escritores... quer dizer, o Joyce é como um Rabelais moderno: o mesmo amor pela cana e pela vida de boteco, o mesmo gosto pelos jogos de palavras (sim, ambos elevaram ao mais alto posto literário a prática do trocadilho-arte) e a mesma capacidade de realizar o que eu considero o ideal do bar: mesclar a dita “alta” com a dita “baixa” cultura, ter total liberdade pra juntar assuntos tão afins quanto os dramas da existência e a qualidade do torresmo.
Basta ler as linhas iniciais do primeiro (publicado em 1534) da série de cinco livros das histórias dos gigantes Gargântua e Pantagruel. O prólogo abre interpelando os leitores: “Bêbados muito ilustres (...) (pois aos senhores, e não a outros, são dedicados meus escritos)”. E aí começa a citar Platão, a passagem do Banquete em que Alcibíades compara Sócrates a uma silene. Silene, na mitologia grega, é um semi-deus, segundo versões seria o preceptor de Dionísio, notoriamente o deus da manguaça. Mas as silenes são também umas caixinhas, como as de um boticário, adornadas por fora com ilustrações representando o semi-deus embriagado, sendo carregado pelos sátiros seus discípulos; dentro são guardadas as mais finas drogas.
Esse seria o Sócrates:
“simples nos modos, rústico nas roupas, pobre em fortunas, infortunado com as mulheres, inepto a todos os ofícios da República; sempre rindo, sempre bebendo (...), sempre se fartando, sempre dissimulando seu divino saber. Mas abrindo essa caixa, se encontraria lá dentro uma celeste e inapreciável droga: entendimento mais que humano, virtude maravilhosa, coragem invencível, sobriedade sem igual, contentamento certo, segurança perfeita, desprezo inacreditável por tudo aquilo por que os humanos tanto velam, correm, trabalham, navegam e batalham”.
É muito sério isso: esse mesmo Sócrates descrito como “sem controvérsia o príncipe dos filósofos” tem dons que eu não encontro outro modo de definir senão como qualidades essenciais da própria canjibrina. O que mais proporciona o “entendimento mais que humano”? Virtude, coragem, segurança? E mais, o “desprezo inacreditável” pela vaidade que move homens em tantas batalhas e tanto trabalho para chegar sabe-se lá onde? Na fundação da filosofia ocidental, um manifesto manguaça.
O nascimento de um bêbado
Só mais uma passagem, o parto de Gargântua:
“Grandgousier, bebendo e rindo com os outros, escutou o grito horrível que seu filho deu ao entrar na luz deste mundo, quando ele urrava pedindo Mé! Mé! Mé! Ao que disse, mas que grande e elástica essa boca. Ouvindo isso, os assistentes disseram que realmente ele devia por isso ter o nome de Gargântua...”
Detalhe, tomo aqui liberdade como tradutor, pois o que recém-nascido Gargântua grita é “A boire! A boire! A boire!”, o que soa como “buá” e quer dizer, literalmente, “’bora beber! ’bora beber! ’bora beber!”.