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Embora volta e meia alguns dos jornalistas desse blogue praguejem contra as agruras da profissão, é indubitável que ela proporciona experiências e encontros que nos fazem ampliar e muito nossos horizontes. Um deles, para mim, foi uma entrevista com o antropólogo da USP Kabengele Munanga, realizada junto com a amiga Camila. À época, havia uma polêmica entre ele e Demétrio Magnoli sobre o racismo no Brasil e era também recente uma brincadeira mais que infeliz do humorista (sic) Danilo Gentili, qua havia feito uma piada que ele negou ser de cunho racista. O professor deu, de fato, uma aula a respeito.
Abaixo, um trecho que fala da relação entre o futebol e o racismo e sobre como a questão racial é tratada em sala de aula (aproveitando hoje o gancho da "polêmica" sobre livro de Monteiro Lobato), além de um trecho em que comenta as posições ocupadas por negros na política. A íntegra da entrevista está aqui. 

 
O humorista Danilo Gentilli escreveu no Twitter  uma piada a respeito do King Kong, comparando com um jogador de futebol  que saía com loiras. Houve uma reação grande e a continuação dos  argumentos dele para se justificar vai ao encontro disso que o senhor  está falando. Ele dizia que racista era quem acusava ele, e citava a  questão do orgulho negro como algo de quem é racista. 
Kabengele Munanga  - Faz parte desse imaginário. O que está por trás que está fazendo uma  ilustração de King Kong, que ele compara a um jogador de futebol que vai  casar com uma loira, é a ideia de alguém que ascende na vida e vai  procurar sua loira. Mas qual é o problema desse jogador de futebol? São  pessoas vítimas do racismo que acham que agora ascenderam na vida e,  para mostrar isso, têm que ter uma loira que era proibida quando eram  pobres? Pode até ser uma explicação. Mas essa loira não é uma pessoa  humana que pode dizer não ou sim e foi obrigada a ir com o King Kong por  causa de dinheiro? Pode ser, quantos casamentos não são por dinheiro na  nossa sociedade? A velha burguesia só se casa dentro da velha  burguesia. Mas sempre tem pessoas que desobedecem as normas da  sociedade.
Essas jovens brancas, loiras, também pulam a cerca de  suas identidades pra casar com um negro jogador. Por que a corda só  arrebenta do lado do jogador de futebol? No fundo, essas pessoas não  querem que os negros casem com suas filhas. É uma forma de racismo.  Estão praticando um preconceito que não respeita a vontade dessas  mulheres nem essas pessoas que ascenderam na vida, numa sociedade onde o  amor é algo sem fronteiras, e não teria tantos mestiços nessa  sociedade. Com tudo o que aconteceu no campo de futebol com aquele  jogador da Argentina que chamou o Grafite de macaco, com tudo o que  acontece na Europa, esse humorista faz uma ilustração disso, ou é uma  provocação ou quer reafirmar os preconceitos na nossa sociedade. 
É que no caso, o Danilo Gentili ainda justificou sua piada com um  argumento muito simplório: "por que eu posso chamar um gordo de baleia e  um negro de macaco", como se fosse a mesma coisa. 
Kabengele  - É interessante isso, porque tenho a impressão de que é um cara que  não conhece a história, e o orgulho negro tem uma história. São seres  humanos que, pelo próprio processo de colonização, de escravidão, a  essas pessoas foi negada sua humanidade. Para poder se recuperar, ele  tem que assumir seu corpo como negro. Se olhar no espelho e se achar  bonito ou se achar feio. É isso o orgulho negro. E faz parte do processo  de se assumir como negro, assumir seu corpo que foi recusado. Se o  humorista conhecesse isso, entenderia a história do orgulho negro. O  branco não tem motivo para ter orgulho branco porque ele é vitorioso,  está lá em cima. O outro que está lá em baixo que deve ter orgulho, que  deve construir esse orgulho para poder se reerguer. 
O senhor tocou no caso do Grafite com o Desábato, e recentemente  tivemos, no jogo da Libertadores entre Cruzeiro e Grêmio, o caso de um  jogador que teria sido chamado de macaco por outro atleta. Em geral, as  pessoas – jornalistas que comentaram, a diretoria gremista –  argumentavam que no campo de futebol você pode falar qualquer coisa, e  que se as pessoas fossem se importar com isso, não teria como ter jogo  de futebol. Como você vê esse tipo de situação? 
Kabengele  - Isso é uma prova daquilo que falei, os brasileiros são educados para  não assumir seus hábitos, seu racismo. Em outros países, não teria essa  conversa de que no campo de futebol vale. O pessoal pune mesmo. Mas  aqui, quando se trata do negro... Já ouviu caso contrário, de negro que  chama branco de macaco? Quando aquele delegado prendeu o jogador  argentino no caso do Grafite, todo mundo caiu em cima. Os técnicos,  jornalistas, esportistas, todo mundo dizendo que é assim no futebol.  Então a gente não pode educar o jogador de futebol, tudo é permitido?  Quando há violência física, eles são punidos, mas isso aqui é uma  violência também, uma violência simbólica. Por que a violência simbólica  é aceita a violência física é punida? 
Como o  senhor vê hoje a aplicação da lei que determina a obrigatoriedade do  ensino de cultura africana nas escolas? Os professores, de um modo  geral, estão preparados para lidar com a questão racial? 
Kabengele  - Essa lei já foi objeto de crítica das pessoas que acham que isso  também seria uma racialização do Brasil. Pessoas que acham que, sendo a  população brasileira uma população mestiça, não é preciso ensinar a  cultura do negro, ensinar a história do negro ou da África. Temos uma  única história, uma única cultura, que é uma cultura mestiça. Tem  pessoas que vão nessa direção, pensam que isso é uma racialização da  educação no Brasil.
Mas essa questão do ensino da diversidade na  escola não é propriedade do Brasil. Todos os países do mundo lidam com a  questão da diversidade, do ensino da diversidade na escola, até os que  não foram colonizadores, os nórdicos, com a vinda dos imigrantes, estão  tratando da questão da diversidade na escola.
O Brasil deveria  tratar dessa questão com mais força, porque é um país que nasceu do  encontro das culturas, das civilizações. Os europeus chegaram, a  população indígena – dona da terra – os africanos, depois a última onda  imigratória é dos asiáticos. Então tudo isso faz parte das raízes  formadoras do Brasil que devem fazer parte da formação do cidadão. Ora,  se a gente olhar nosso sistema educativo, percebemos que a história do  negro, da África, das populações indígenas não fazia parte da educação  do brasileiro.
Nosso modelo de educação é eurocêntrico. Do ponto  de vista da historiografia oficial, os portugueses chegaram na África,  encontraram os africanos vendendo seus filhos, compraram e levaram para o  Brasil. Não foi isso que aconteceu. A história da escravidão é uma  história da violência. Quando se fala de contribuições, nunca se fala da  África. Se se introduzir a história do outro de uma maneira positiva,  isso ajuda.
É por isso que a educação, a introdução da história  dele no Brasil, faz parte desse processo de construção do orgulho negro.  Ele tem que saber que foi trazido e aqui contribuiu com o seu trabalho,  trabalho escravizado, para construir as bases da economia colonial  brasileira. Além do mais, houve a resistência, o negro não era um  João-Bobo que simplesmente aceitou, senão a gente não teria rebeliões  das senzalas, o Quilombo dos Palmares, que durou quase um século. São  provas de resistência e de defesa da dignidade humana. São essas coisas  que devem ser ensinadas. Isso faz parte do patrimônio histórico de todos  os brasileiros. O branco e o negro têm que conhecer essa história  porque é aí que vão poder respeitar os outros.
Voltando a sua  pergunta, as dificuldades são de duas ordens. Em primeiro lugar, os  educadores não têm formação para ensinar a diversidade. Estudaram em  escolas de educação eurocêntrica, onde não se ensinava a história do  negro, não estudaram história da África, como vão passar isso aos  alunos? Além do mais, a África é um continente, com centenas de culturas  e civilizações. São 54 países oficialmente. A primeira coisa é formar  os educadores, orientar por onde começou a cultura negra no Brasil, por  onde começa essa história. Depois dessa formação, com certo conteúdo,  material didático de boa qualidade, que nada tem a ver com a  historiografia oficial, o processo pode funcionar. 
Outra questão que se discute é sobre o negro nos espaços de poder.  Não se veem negros como prefeitos, governadores. Como trabalhar contra  isso? 
Kabengele - O que é um país democrático? Um país  democrático, no meu ponto de vista, é um país que reflete a sua  diversidade na estrutura de poder. Nela, você vê mulheres ocupando  cargos de responsabilidade, no Executivo, no Legislativo, no Judiciário,  assim como no setor privado. E ainda os índios, que são os grandes  discriminados pela sociedade. Isso seria um país democrático. O fato de  você olhar a estrutura de poder e ver poucos negros ou quase não ver  negros, não ver mulheres, não ver índios, isso significa que há alguma  coisa que não foi feita nesse país. Como construção da democracia, a  representatividade da diversidade não existe na estrutura de poder. Por  quê?
Se você fizer um levantamento no campo jurídico, quantos  desembargadores e juízes negros têm na sociedade brasileira? Se você for  pras universidades públicas, quantos professores negros tem, começando  por minha própria universidade? Esta universidade tem cerca de 5 mil  professores. Quantos professores negros tem na USP? Nessa grande  faculdade, que é a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas  (FFLCH), uma das maiores da USP junto com a Politécnica, tenho certeza  de que na minha faculdade fui o primeiro negro a entrar como professor.  Desde que entrei no Departamento de Antropologia, não entrou outro.  Daqui três anos vou me aposentar. O professor Milton Santos, que era um  grande professor, quase Nobel da Geografia, entrou no departamento, veio  do exterior e eu já estava aqui. Em toda a USP, não sou capaz de passar  de dez pessoas conhecidas. Pode ter mais, mas não chega a 50,  exagerando. Se você for para as grandes universidades americanas,  Harvard, Princeton, Standford, você vai encontrar mais negros  professores do que no Brasil. Lá eles são mais racistas, ou eram mais  racistas, mas como explicar tudo isso?
120 anos de abolição. Por  que não houve uma certa mobilidade social para os negros chegarem lá? Há  duas explicações: ou você diz que ele é geneticamente menos  inteligente, o que seria uma explicação racista, ou encontra explicação  na sociedade. Quer dizer que se bloqueou a sua mobilidade. E isso passa  por questão de preconceito, de discriminação racial. Não há como  explicar isso. Se você entender que os imigrantes japoneses chegaram,  nós comemoramos 100 anos recentemente da sua vinda, eles tiveram uma  certa mobilidade. Os coreanos também ocupam um lugar na sociedade. Mas  os negros já estão a 120 anos da abolição. Então tem uma explicação. Daí  a necessidade de se mudar o quadro. Ou nós mantemos o quadro, porque se  não mudamos estamos racializando o Brasil, ou a gente mantém a situação  para mostrar que não somos racistas. Porque a explicação é essa, se  mexer, somos racistas e estamos racializando. Então vamos deixar as  coisas do jeito que estão. Esse é o dilema da sociedade. 
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