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segunda-feira, novembro 30, 2015

Costelas, Adão e Eva, castigo, trabalho e o ócio sagrado

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Tom Zé: 'Estão comprando o Brasil de volta'
Há uns 15 anos, ao entrevistar por telefone o Tom Zé, para o jornal Diário do Nordeste, de Fortaleza, ele me perguntou sobre o que acontecia de mais relevante no Ceará, naquela época. Como eu era repórter do caderno de economia (e estava apenas fazendo um bico para o de cultura), comentei:

- Acho que uma coisa que o pessoal não tem ideia nas outras regiões do país é que grupos portugueses estão comprando várias extensões na costa cearense, construindo hotéis na beira do mar e cercando as praias, impedindo o acesso da população. É uma verdadeira privatização do espaço público.

Tom Zé soltou uma gargalhada no telefone e gritou para a esposa dele:

- Neusa! Vem aqui ouvir o que o repórter tá me contando: os portugueses venderam caro nossa independência e agora tão comprando o Brasil de novo, aos poucos!

Exatamente. O fino humor do músico, intérprete, compositor e performer baiano resumiu, em uma frase, o que dez comentaristas ou colunistas econômicos não conseguiriam (ou não ousariam) concluir. Mas me lembrei disso porque, hoje, ao ler uma notícia na inFernet, fiquei pensando o que o Tom Zé - que  há dez anos lançou o CD "Estudando o Pagode - Na opereta Segrega Mulher e Amor", sobre machismo, papel da mulher e suas relações com o homem (ouça aqui) - comentaria sobre isso:


Sim: uma modelo sueca arrancou seis costelas por questão estética (leia aqui). Imagino o que o Tom Zé observaria sobre isso, se as costelas dariam origem a um novo ser, como Eva, que Deus criou a partir de uma costela que retirou de Adão, segundo a Bíblia. Vai daí, uma ideia (de jerico) puxa outra e me lembrei de um texto que li recentemente, da filósofa Marilena Chauí, como introdução ao trabalho clássico "O direito à preguiça", de Paul Lafargue. Ela observa que "ao ócio feliz do Paraíso segue-se o sofrimento do trabalho como pena imposta pela justiça divina e por isso os filhos de Adão e Eva, isto é, a humanidade inteira, pecarão novamente se não se submeterem à obrigação de trabalhar".

Chauí: condenação da preguiça faz com que desempregado se sinta humilhado, um pária

A filósofa observa ainda que "o laço que ata preguiça e pecado é um nó invisível que prende imagens sociais de escárnio, condenação e medo" e que isso gerou "as figuras do índio preguiçoso e do negro indolente", do "nordestino preguiçoso, a criança de rua vadia (vadiagem, aliás, o termo empregado para referir-se às prostitutas), o mendigo - 'jovem, forte, saudável, que devia estar trabalhando em vez de vadiar'; é ela, enfim, que força o trabalhador desempregado a sentir-se humilhado, culpado e um pária social". O que me faz pensar no taxista Juraci, o Pai Velho, como um subversivo...

'Vai trabalhar, vagabundo!/ Vai trabalhar, Criatura! DEUS permite a todo mundo/ Uma loucura...'

Prova maior de que o trabalho é um castigo divino é a ira de Deus ao expulsar o casal do Jardim do Éden, descrita no Gênesis. Ele diz a Adão: "Com sofrimentos te nutrirás todos os dias de tua vida (...). Com o suor de teu rosto comerás teu pão, até que retornes ao solo, pois dele foste tirado". E é ainda mais cruel com Eva: "Multiplicarei as dores de tua gravidez, na dor darás à luz filhos. Teu desejo te levará ao homem e ele te dominará" (será que isso inclui arrancar seis costelas para atrair a atenção?). Sobre essa pesada pena para a mulher, Marilena Chauí comenta: "Não é significativo que em muitas línguas modernas recuperem a maldição divina contra Eva usando a expressão 'trabalho de parto'?". Aliás, falando em maternidade, vejamos esse cartum do argentino Quino:

 
Só que, após a reforma protestante e a revolução industrial, o ócio passou a ser condenado pelo ideal religioso, com a preguiça tornando-se um dos "sete pecados capitais", e econômico, com a valorização máxima do dito "tempo é dinheiro". Nisso aí, minha mente (preguiçosa) desanda a trabalhar (pela causa) e faz o link, agora, com um post que fiz, aqui no Futepoca, observando que a palavra trabalho vem do latim tripalium, um instrumento romano de tortura por empalamento, e que a palavra negócio vem de "negação do ócio". Marilena Chauí complementa: o latim labor, que origina a palavra trabalho em inglês e lavoura em português, significa "esforço penoso, dobrar-se sob o peso de uma carga, dor, sofrimento, pena e fadiga". Por outro lado, ócio, em grego, se diz scholé, de onde vem nossa palavra escola. Coisa que o Geraldo Alckmin (PSDB) costuma reorganizar, digo, fechar.

Tripalium (três paus): instrumento de tortura é origem da palavra trabalho

Então, num esforço para amarrar - ou não - tudo isso (costela, Adão e Eva, castigo, trabalho e valorização do ócio), puxo um samba do Adoniran Barbosa, "Conselho de mulher", em parceria com Oswaldo Moles e João Belarmino dos Santos, que eu citava no tal post:

Trecho falado:
"Quando Deus fez o homem, quis fazer um vagulino que nunca tinha fome
E que tinha no destino nunca pegar no batente e viver forgadamente
O homem era filiz enquanto Deus anssim quis
Mas depois pegou Adão, tirou uma costela e fez a mulé
Deis di intão, o homem trabalha p'rela

Vai daí, o homem reza todo dia uma oração:
'-Se quiser tirar de mim arguma coisa de bão, que me tire o trabaio; a muié não!'"

Pogréssio, pogréssio
Eu sempre iscuitei falar
Que o pogréssio vem do trabaio
Então amanhã cedo nóis vai trabaiá

Quanto tempo nóis perdeu na boemia
Sambando noite e dia, cortando uma rama sem parar
Agora iscuitando o conselho da muié
Amanhã vou trabaiá, se Deus quisé
(Mas Deus não qué!)



Taí: se a mulher agora também está arrancando costela, o homem podia entregá-la pra Deus como "quitação de débito", acabar com a obrigação do trabalho e voltar ao ócio sagrado - uma vez que, como lembra Adoniran, no Paraíso "Deus não quer" que peguemos no batente! Outra coisa: trabalho é opressão. Naquele mesmo post que fiz sobre a falaciosa "dignificação do homem", alguém lembrou muito apropriadamente, nos comentários, que - não por acaso - os nazistas punham placas nos portões de entrada dos campos de concentração com a frase "Arbeit macht frei" ("O trabalho liberta").

Frase nos campos de concentração 'ensinava': 'O trabalho liberta'
 
 Ou, como acrescentou o já citado Tom Zé, em "Esquerda, Grana e Direita" (ouça aqui):

"Quando o trabalhador cresce na sociedade
 E tem a oportunidade de ser protagonista da história
Ele pratica o método do opressor
Porque foi o único método que aprendeu
Então, ele só sabe agir como o opressor
Arrastão de Paulo Freire"

E, falando no "Elogio ao ócio" (outro texto clássico, dessa vez de Bertrand Russell - acesse clicando aqui), me cai na mão exatamente neste momento um exemplar da revista "Cidade", publicação do Shopping Center Cidade Jardim, com um texto de Adriana Nazarian intitulado "O que fazer? NADA", que afirma: "Ter horas livres - em uma época em que nada parece ser tão livre assim - pode ser mal visto. Para dar conta da demanda, que também exige vida pessoal bem equilibrada, eliminamos da rotina algo fundamental: o ócio".

Ilustração da matéria da revista 'Cidade' (feita por Catarina Bessell)

A revista ouve três especialistas que reforçam que "praticar o nada é essencial":

"É fácil achar que o mundo vai se afastar de nós caso a gente dê uma pausa na produção, mas se permitir esses momentos faz com que a parte inconsciente do cérebro organize todas as ideias às quais estivemos expostos. Aprender a desconectar é perceber que nós não podemos - nem devemos - participar de absolutamente tudo. Nossa cultura prega a ilusão de que podemos ter tudo, mas isso acaba colocando o foco apenas no que não temos." - David Baker, fundador e editor da revista "Wired', escritor e professor

"Praticar o fazer nada é crucial para equilibrar a fisiologia e a cognição. (...) O descanso e, sobretudo, o sono são essenciais para limpar o cérebro de toxinas, repor metabólitos despendidos na vigília e processar memórias. (...) Ao contrário do que muitos pensam, o sono não é um simples descanso, mas tem papel ativo na saúde mental e física. O ócio é parte fundamental da experiência humana e precisa ser preservado." - Sidarta Ribeiro, neurocientista da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

"Silêncio significa fazer perguntas, e nós  criamos barulho e bagunça justamente para evitar as grandes questões e propósitos da vida. Não abrir espaço para esses momentos é como viver sem dormir, sem deixar o motor esfriar antes de mais uma corrida. Hoje, a maioria das pessoas atribui a felicidade ao alcance de metas. Com isso, vivem infelizes (...)." - Yonatan Shani, diretora do Kabbalah Centre do Brasil

Ignácio de Loyola Brandão: 'A melhor coisa de não fazer nada é, em seguida, repousar'

Ah, tem outro texto que me vem à mente agora, uma crônica do Ignácio de Loyola Brandão publicada no jornal "O Estado de S.Paulo" no ano passado (leia aqui), que proclama:

"Não que eu não faça nada somente no sábado ou domingo de manhã, nos feriados ou nas férias convencionais. Não faço nada quando decido: agora, não vou fazer nada. Isto significa liberdade. Quantos de vocês tomam estas decisões? Não fazer nada, contudo, não significa que em seguida você vai se esfalfar para tirar o atraso. Nem pensar. A melhor coisa de não fazer nada é, em seguida, repousar do nada fazer. Perceber que está feliz por não ter feito nada. Não sentir culpa por não fazer nada."

Sobre isso, aproveito para citar uma frase de outro escritor, Charles Bukowski:

"Gosto de olhar os meus gatos, eles me acalmam (...). Você sabia que os gatos dormem 20 das 24 horas do dia? Não se admira que tenham melhor aparência do que eu."


E arremato com mais literatura, indo direto ao ponto com uma frase de Marguerite Duras:

“É preciso ser muito forte pra não fazer nada.”

 
Buenas, depois de tanto "trabalho" pra pular da modelo que tirou as costelas pro Tom Zé e a privatização de praias brasileiras pelos portugueses, de Adão e Eva e Marilena Chauí para um instrumento de tortura romano e um samba de Adoniran Barbosa, passando pelos campos de concentração nazistas e voltando ao Tom Zé para desembocar nos especialistas e escritores que corroboram a valorização do ócio, vou conceder à minha ociosa inteligência o direito à preguiça. E verei se amanhã "vou trabaiá, se Deus quisé"... "Mas Deus não qué!"


sexta-feira, julho 17, 2009

O cinema de Marguerite Duras, agora em São Paulo

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Depois do imenso sucesso no Rio de Janeiro, depois de passar por Porto Alegre, Salvador e Belo Horizonte, a mostra de cinema "Marguerite Duras: escrever imagens", com minha curadoria, chega finalmente a São Paulo. Começa hoje, 17 de julho, e vai até a quinta que vem, dia 23, no CineSesc, que fica na rua Augusta nº 2.075.

É um cinema raro, de uma mulher que soube transgredir todas as regras que a limitavam sua investigação dos sentidos e desrazões do estar no mundo. Aliás, Marguerite se aproveitou dessas transgressões para aguçar sua caneta e potencializar sua escrita. Mas isso vale não só para a sua obra, suas invenções provocadoras ultrapassam em muita as questões de linguagem e vão fundo na sua vida pessoal. Ela foi uma provocadora nos costumes (com sua vida sexual "numerosa", como ela diz), na política (com sua crítica feroz tanto ao stalinismo amordaçador do PCF quanto aos reacionários de todas as estirpes), e por onde mais passou.

Marguerite Duras, entretanto, sempre foi mais conhecida pela sua obra literária. Pouco se sabe sobre os 19 filmes que ela dirigiu. Nesta mostra, teremos nove destes filmes e mais o clássico Hiroxima meu amor, de Alain Resnais com roteiro de Marguerite Duras, que completa o seu cinquentenário neste ano. Não é um cinema fácil, pois rompe com todas as referências do que estamos habituados a chamar de cinema. Marguerite, aliás, nunca quis fazer carreira no cinema, quis sim investigar com os recursos audiovisuais regiões inexploradas de seu trabalho. E quem for, aberto à novidade que este cinema ainda é, poderá se maravilhar com a belíssima fotografia de seus filmes e com as narrativas veiculadas por vozes trabalhadas até nas mais ínfimas sutilezas sonoras.

Na próxima quarta-feira, dia 22, às 19h30, eu e o Jorge Lescano, grande especialista em Duras e em teatro, promoveremos um "colóquio" sobre os diálogos entre cinema e teatro na obra de Marguerite Duras.

Abaixo, segue a programação do CineSesc.


Marguerite Duras: escrever imagens




CINESESC
Rua Augusta, 2075 - Cerqueira César - São Paulo - SP
cep 01413-000 • telefone: 11 3087-0500 • fax: 11 3087-0501
e-mail: email@cinesesc.sescsp.org.br
www.sescsp.org.br • 0800 11 82 20


PROGRAMAÇÃO


Dia 17
19h20 Aurélia Steiner (Melbourne)
Aurélia Steiner (Vancouver)
Cesária
21h30 Índia Song

Dia 18
19h20 Destruir, disse ela
21h30 Hiroxima, meu amor

Dia 19
19h20 Agatha ou as leituras ilimitadas
21h30 O homem Atlântico
As mãos negativas

Dia 20
19h20 As crianças
21h30 Destruir, disse ela

Dia 21
19h20 Agatha ou as leituras ilimitadas
21h30 Aurélia Steiner (Melbourne)
Aurélia Steiner (Vancouver)
Cesária

Dia 22
19h20 O homem Atlântico
As mãos negativas
21h30 Hiroxima, meu amor

Dia 23
19h20 Índia Song
21h30 As crianças


Colóquio
Diálogos entre o cinema e o teatro em Marguerite Duras
Dia 22 de junho - 19h30
Hall do Café - Cinesesc

Maurício Ayer, pesquisador da obra cinematográfica de Duras e
curador da mostra, e o escritor e dramaturgo Jorge Lescano se
encontram com o público para discutir as duas faces menos
conhecidas da obra de Marguerite – o teatro e o cinema. Agatha
– obra que condensa o valor da palavra e da voz, e elementos do
Teatro No – será o fio condutor do debate.

quinta-feira, abril 23, 2009

Sequência carioca

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Saímos da sala de cinema vivamente ligados pela amizade. Os que estávamos ali sabíamos algo que outros não sabiam. Não havia nenhum orgulho poluindo de vaidade o que era apenas o sincero prazer de compartilhar algo que custou esforço e foi recompensado com uma experiência mágica. A experiência do cinema de Marguerite Duras, que não é fácil, mas que é gigantesca. A cópia em 35 milímetros do filme Aurélia Steiner (Vancouver) estava sendo estreada ali (para o contexto, leia aqui). A qualidade da imagem é brutal. E o filme é pura fotografia: a investigação do espaço, as texturas da praia, das pedras, as paisagens da Normandia, suas falésias, seu vento, suas árvores no inverno, o cemitério de troncos cortados no pátio de uma madeireira. E a voz da sereia Marguerite, sensual, com pausas tão densas quanto o chumbo.

Em meio a esse êxtase estético, pensei que havia uma coerência daquele sentimento com o lugar onde ele acontecia. A amizade soa carioca, principalmente essa amizade inconsequente, que se perde na primeira esquina. Perdemo-nos na sequência, de fato, e já só, na avenida Rio Branco, tomo o metrô no largo da Carioca até a estação Siqueira Campos, de onde caminho ao boteco Pierrot, na rua Domingos Ferreira, em Copacabana. Ali José Murillo, um filósofo chileno, deveria me encontrar. Uma cerveja e, na televisão, Palmeiras vs. LDU. Chegou meu amigo com mais dois chilenos, e outras três garrafas de cerveja agora se viam sobre a mesinha – na verdade um barril de chope com uma tábua redonda em cima.

Não íamos ficar ali. José tinha trazido três vinhos excelentes de Santiago, e uma garrafa de pisco Malpaso. Acontece um estranho evento na TV, em que a bola vence todos os esforços contrários (voluntários ou não) e cruza a linha. Gol da bola, abrindo o placar para o Palmeiras. Era a senha para irmos. Ao entrar edifício, deparamos com um distinto senhor em uniforme impecável, o porteiro:

– Olha só, subiu agora há pouco um cara, não liga não se ele começar a gritar. É que ele chegou doidão. Não pega mulher e fica enchendo a cara. Ele grita, mas não faz nada não, não precisa se preocupar. Mas se ele fizer alguma coisa você chama que a gente vai lá dar um jeito.

Ele me alertava pensando sem dúvida na minha mulher e meu filhinho que já estavam no apartamento, no mesmo oitavo andar que o manguaça. Foi certeiro, ao sair do elevador, um homem visivelmente alterado, meio elétrico, só de bermuda, num movimento frenético de lá pra cá, nos mirou, e seus olhos tremiam internamente. Estava mais pra cheirado que mamado.

– Vocês vão se mudar pra cá? Pô, bem-vindos, pô, certo, desculpa qualquer coisa, aí, sejam bem-vindos mesmo.

E desapareceu, sem que pudéssemos explicar que éramos apenas turistas. Entramos no apartamento, tocamos violão e degustamos vinhos excepcionais, como o Santa Rita (o único de que me lembro o nome). O problema da fartura de bebida boa é a euforia, tudo parece bom demais. Eu mesmo me sentia como um atacante em dia feliz, músicas que não tocava há anos vinham aos dedos como se as treinasse todo dia, lembrava das letras. Tocamos velhos clássicos latino-americanos, como canções de Silvio Rodrigues. A onda era tão boa que nem mesmo com a barulheira que fazíamos o bebê acordou. Brindamos com pisco, antes que os outros dois chilenos se fossem.



José e eu decidimos caminhar um pouco, até, ocasionalmente, aportar nalgum bar. Éramos dois bêbados andando pelo calçadão de Copacabana, desdobrando os mais improváveis assuntos, como fenomenologia política ou o cinema de Marguerite Duras, enquanto o olhar dançava pelas ondas de Burle Marx. Uma criança me pediu dinheiro, depois surgiu uma adolescente, como uma visão, tinha os olhos embaçados e uma voz distante pedindo algo para comer, um menino com alguma deformação facial puxava o canto da boca para baixo, rostos de zumbis que atravessavam meu percurso pelo calçadão. Um frio soprou, era como se estivesse dando os primeiros passos em um pesadelo. Noto que José não está ao meu lado, volto-me, estão todos sobre ele, uns oito, puxando a camisa, remexendo os bolsos, sacando-lhe o relógio...

– Corre, Compay – gritei em espanhol.

José se desvencilhou e os pequenos mortos vivos instantaneamente cruzaram a avenida Atlântica. Ainda atônitos, nos certificamos de que estávamos nós vivos. Vimos os meninos do outro lado, decidimos um caminho por onde voltar. Numa esquina, encontramos com uma viatura de polícia. Relatamos o ocorrido. O guarda, que na verdade queria continuar sua conversa com o senhor que passeava com seu chiuaua, deve ter se sentido constrangido, pois entrou no carro e saiu "em busca" daquelas crianças. Não tinha a menor cara de que ia fazer qualquer coisa, mas pediu para esperarmos no bar da esquina seguinte.

Pedimos duas doses, de Vale Verde e Magnífica. Estranho sabor o da madeira extraída ao tonel pela cachaça quando se mistura ao coquetel de adrenalina e outros alcoóis que circulava nas nossas veias. Não esperamos muito. Seguimos de volta ao apartamento, ainda filosofando, agora já não eufóricos, apenas um pouco mais bêbados. Não sei em que momento de meus descaminhos lógicos eu estava, mas era exatamente ali que se acabava a calçada, e eu pisei em falso no breu do asfalto. Torci o tornozelo esquerdo. Tenho larga experiência no assunto, e percebi imediatamente que era uma torção grave, tinha esgarçado os ligamentos. Era agora um amargo déjà-vu que me assolava. Uma vez, com 17 anos, torci o pé (direito) exatamente desse jeito, na porta de um bar em Santo Amaro, quando não percebi este pequeno abismo que há depois do meio-fio. Não tinha nenhuma saudade daquela dor.

José entrou no último bar da noite, para pedir gelo. Enquanto tentava conter o inchaço, fui me deprimindo nas minhas próprias histórias, contando os últimos 15 anos de minha vida, tão limitados por torções de ambos tornozelos, umas depois das outras, que acabaram me fazendo desistir do futebol, do basquete, do vôlei... Já fui um atleta que bebia, hoje do esporte só sobraram as torções.

Meu colega chamou um taxi, o que foi sensato. Eram três quadras, mas teria sido patético e, talvez, trágico tentar transpor aquele pedaço de chão confiando o agora imprescindível apoio ao equilíbrio de um bêbado. Chegamos, tomei meia garrafa de água (o que deprime também) e me joguei na cama onde dormiam minha mulher e meu filho. Entregue à dor e à momentânea mas intensa depressão, sinceramente chorei. Cris me perguntou o que acontecia, compartilhei minha dor moral, meu sentimento de recorrente derrota para um par de articulações. O bebê, que ainda não fez dois anos, acordou com o balanço do colchão. Limpou os olhinhos com as costas da mão. Me observava muito sério, enquanto sua mãe explicava “O papai está chorando, Chico, ele está muito triste”.

Ele me olha, apenas. Estou rendido, olho para ele também, sem poder interromper os soluços, que cedem agora um pouco à respiração. O Chico inclina um pouco a cabeça, e me olha mais de perto, compenetrado, sempre. Finalmente consigo uma única respiração mais longa e funda. É nessa hora que o Chico ergue as duas mãos e, sem desviar um segundo os olhos, coloca-as sobre a minha perna, como se adivinhasse que a dor nascia ali. E começa a fazer um carinho, movendo suas mãozinhas sem peso de um lado para o outro. Primeiro na perna, depois no ombro e finalmente na cabeça, com todo cuidado. Não tive como, devolvi-me ao choro e murmurei:

– Obrigado, Chico, obrigado.

terça-feira, abril 14, 2009

O cinema de Marguerite Duras chega ao Rio

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Um tempo atrás escrevi uma matéria para a revista Fórum sobre os 10 anos da morte da escritora francesa Marguerite Duras. Na verdade, nunca dediquei tanto tempo de vida a estudar alguma coisa como a ela. Rendeu um doutorado em literatura na USP, um ano em Paris... É para mim uma referência constante, não só intelectual como de vida.

Agora tive a oportunidade de fazer a curadoria de uma mostra com os filmes que ela dirigiu – sim, ela dirigiu filmes, foram 19, 16 dos quais trouxemos ao Brasil, além do clássico Hiroxima meu amor, dirigido por Alain Resnais com roteiro de Duras, que este ano completa o seu cinquentenário.

Aqui vão as informações principais:






















Mostra Marguerite Duras: escrever imagens


14 a 26 de abril

CAIXA Cultural
Av. Almirante Barroso, 25
Centro - Rio de Janeiro
(No edifício da agência da Av. Rio Branco)

Quem pensa que isso não tem nada a ver com futebol, política e cachaça engana-se. Não tenho notícias quanto ao futebol, mas Marguerite foi uma manguaça das fortes. Ela tinha a cara inchada do uísque cotidiano, mas, segundo ela, este aspecto lhe era natural: "Essa cara de alcoólatra eu tinha antes do álcool. O álcool só veio confirmá-la". Dizia também que é muito difícil passar uma noite sem uísque, e conviver com a vontade de se matar.

Mas não só de depressão vive uma manguaça. Ela era também famosa por promover em sua casa grandes noitadas com intelectuais e artistas franceses – ou de outras procedências, de passagem por Paris. Merleau-Ponty, Blanchot, Bataille, Godard e Italo Calvino eram seus habituês. Ela tinha aliás um senso de humor fantástico, uma língua ferina... e um incrível talento para a cozinha!

Duras teve também uma atividade política intensa. Mas a pressa (a abertura é daqui a pouquinho, às 18h30...) exige que eu deixe este assunto pra uma próxima (mas não distante) oportunidade.

Assim manguaças cariocas – ou de outras procedências, de passagem pelo Rio –, não deixem de conferir esta oportunidade singular de conhecer o cinema único de Marguerite Duras.