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MARCÃO PALHARES
Os quatro manguaças combinaram de fazer o esquenta na padaria, antes do jogo decisivo que todos assistiriam na república de um deles. Maria mole, rabo de galo, meia de seda, bombeirinho – cada qual com sua preferência etílica. Já turbinados, passaram no supermercado e compraram seis caixas de cerveja, cerca de 72 latinhas. Talvez fosse o suficiente para os 90 minutos de futebol. Mas levaram um litro de vodka, afinal, uma batida de maracujá com leite condensado nunca é demais. Para comer, amendoim.
No apartamento, ligaram a velha e surrada televisão e tentaram diminuir a interferência na imagem e a chiadeira com um bombril nas antenas. Em vão, mas ninguém se importou. A porta da geladeira só fechava com uma fita adesiva. Latas de cerveja eram consumidas em minutos, a vodka mal deu pro gasto. E ainda encontraram um resto de vinho vagabundo, que não durou dez minutos. Quando o jogo começou, os quatro estavam devidamente manguaçados até a tampa. Ninguém se importava mais com o futebol.
Aos brados, os bêbados aumentavam o tom de voz a cada gole sorvido. Num prédio de três andares, com apartamentos pequenos e acústica potente, uma reunião de pinguços, à noite, era uma temeridade. A vizinhança já ameaçava chamar a polícia quando, para piorar, saiu um gol. Sem se importar ou sequer notar qual time tinha aberto o placar, os quatro explodiram num grito uníssono. Cantaram, pularam, berraram e xingaram – nem eles sabiam o quê ou por quê. Para a síndica, que morava no andar de cima, foi a gota d’água.
- Parem com isso! Desliguem essa televisão! Vão beber no bar!, ordenou, pela janela.
Os quatro manguaças ouviram e, por um instante, fizeram silêncio. Depois, como se tivessem combinado, começaram a cantar:
- Ih, fodeu, Camanducaia aparaceu! Ih, fodeu, Camanducaia apareceu!
A mulher ficou possessa. Não fossem os seus 60 anos, desceria até a república com um pau de macarrão para tirar satisfações.
- Seus bebuns! Isso não vai ficar assim! Vou acionar a imobiliária!
Nisso, um dos quatro manguaças saiu na janela e vociferou, raivoso:
- Pode ir! Mas eu vou chamar meu adevogado! (e frisou a sílaba "de", de advogado)
A mulher bateu a janela, assustada, e os bêbados decidiram que era hora de desligar a televisão e rumar para a sinuca mais próxima. Afinal de contas, não restava nenhuma das 72 latas de cerveja e a vodka e o vinho também tinham ido para o espaço. Na rua, encontraram uma garrafa de plástico vazia que, imediatamente, foi convertida em bola de futebol. Trocaram passes por quadras e quadras, gritando, de forma insana, uma paródia da canção religiosa do Roberto Carlos:
- Jesus Carlos! Jesus Carlos! Jesus Carlos, não estou aqui!
Desembarcaram aos tropeções na sinuca e, depois de algumas partidas, cada um tomou o rumo de sua casa, para desmaiar de bebedeira. No dia seguinte, dois dos manguaças, que trabalhavam juntos, estavam discutindo qualquer besteira quando o telefone tocou. O pingaiada que habitava a fatídica república atendeu. O outro só escutou:
- Alô? Sim, é ele mesmo. Pois não.
- (...)
- O que? A síndica? Mas o que houve?
- (...)
- Advogado? Mas que história é essa de advogado?
- (...)
- Sim, eu recebi uns amigos para assistir futebol. Só isso...
- (...)
- Não, ninguém tava fazendo barulho. Deve ter sido a televisão.
- (...)
- Olha, quem abriu a janela pra gritar primeiro foi ela!
- (...)
- O que? Jesus Cristo? Hã?!? Jesus Carlos??? Mas que diabo é isso?
- (...)
- Ela disse que a gente ia chamar o advogado? E que gritamos Jesus Carlos?
- (...)
- Escuta, meu senhor, não aconteceu nada disso.
- (...)
- Não, não vou pagar nada! Essa mulher é biruta!
O manguaça bateu o telefone, revoltado, e ficou resmungando:
- Ah, o que é isso? Pô! Parece que bebe!
Ainda bêbado, o outro perguntou o que estava acontecendo. Ele tergiversou:
- Nada, nada. Vamos lá na esquina tomar mais uma, que tá na hora!
E saíram abraçados, entoando o côro nonsense:
- Jesus Carlos! Jesus Carlos! Jesus Carlos, não estou aqui!
(Continua quando o autor estiver sóbrio o suficiente para escrever...)