Destaques

quinta-feira, abril 30, 2009

El Huerequeque

Compartilhe no Twitter
Compartilhe no Facebook

JOSÉ ANDRÉS MURILLO*

Em janeiro de 2004, fui à Amazônia peruana com um grande amigo, José Manuel Simián (neto de um lendário goleiro dos anos 30 e 40: Eduardo “Pulpo” Simián [pulpo é polvo]). Depois de percorrer a selva durante alguns dias, chegamos a Iquitos. Nesta cidade foi filmada parte de um filme que ambos admiramos muito: Fitzcarraldo (1982), de Werner Herzog.

Perguntamos a um moto-taxista, que nos havia levado a vários pontos da cidade (como o mercado, onde vendiam jiboias vivas, óleo de bicho-preguiça, famoso por ser afrodisíaco, e cascos de tartaruga em extinção para fazer um prato típico da região: sopa de tartaruga), se seria possível, talvez, conhecer o barco de Fitzcarraldo. “Claro!” E partimos. No caminho, o motorista nos perguntou se queríamos conhecer Huerequeque, que havia atuado como cozinheiro do filme e que agora mantinha o bar El Huerequeque, próximo ao porto de Iquitos. Foi emocionante saber que poderíamos entrar em contato diretamente com o que havia sido a vida desse filme, registrada, aliás, em um caderno autobiográfico de Herzog e em pelo menos dois documentários, um do próprio Herzog, sobre sua relação com Klaus Kinski, que vive o protagonista (Meu inimigo íntimo), e outro sobre as filmagens (Burden of Dreams, de Michael Goodwin).

“Só temos que comprar algumas garrafas de cerveja e ir a sua casa”, nos disse o motorista, “é meu amigo”.

Huerequeque abre a porta e nos saúda como se já nos conhecesse. Nos levou ao salão, que mais parecia uma barraca de uma feira de antiguidades. Tinha, entre outros milhares de tesouros absurdos, um enorme aquário feito de cimento e um para-brisas de automóvel. Dentro, nadavam diferentes espécies de peixes amazônicos. O motorista nos deixou aí e se foi. Huerequeque em nenhum momento nos perguntou por que chegamos em sua casa, o que procurávamos, nem sequer se gostáramos do filme. Parecia evidente que tínhamos que chegar aí, sentarmo-nos à sua mesa e manguaçarmos os três, diante dos olhares dos peixes. José Manuel e eu brindamos por estar aí com Huerequeque, e escutamos o que ele queria nos contar.


Quando começou a falar, foi como se retomasse uma conversa conosco, como se fôssemos velhos amigos. Contou da filmagem de Fitzcarraldo, de como ele chegou ao filme. Nunca atuou, nos confessou, só chegava bêbado e fazia o que lhe diziam que tinha que fazer, sem conflitos. Não teve problemas nem mesmo com Kinski, que era intratável. Os próprios índios que participam, uma vez finalizada a filmagem, se ofereceram a Herzog para matar Kinski. Herzog disse que não. Depois, conta ele mesmo, se arrependeu, mas já era tarde.

Queriam alguém para fazer o cozinheiro do barco, alguém que parecesse bêbado. “Eu não sou cozinheiro nem pareço bêbado. Eu sou bêbado!” Depois do sucesso do filme, Huerequeque percorreu toda a Europa dando entrevistas, e a única coisa que aprendia de cada país era como dizer “saúde”, para poder brindar adequadamente. Contou que agora era poeta e escrevia contos. Narrou ali vários de seu contos, pois era o que mais gostava de fazer, sobre sua juventude, de quando era militar na selva. Nos hipnotizou durante várias horas com seus mágicos relatos, como aquele sobre o desejo irrefreável de um militar e uma índia, que em pleno furor do amor caem ao rio e são devorados pelas piranhas. E tantos outros.

“Há quatro coisas importantes na vida”, concluiu, solene: “a amizade, o esporte, o sexo e a cerveja. Se falta alguma dessas coisas, você apodrece por dentro”. Tivemos que ir, pois José Manuel tomava o avião de volta ao Chile. Fomos embora de moto-taxi, silenciosos, talvez pensando em cada um dos pilares da vida de Huerequeque, guardando bem na memória para que nunca nos faltem. Pensei naquele momento e penso agora novamente: preciso praticar esporte.

* José Andrés Murillo é chileno, vive em Paris, onde faz um doutorado em filosofia, e, por questão de sobrevivência, vem periodicamente ao Brasil buscar algumas garrafas de cachaça.

7 comentários:

Nicolau disse...

História excelente! E também estou precisando praticar esporte...

Olavo Soares disse...

As lições de Huerequeque me fizeram lembrar uma parecida, que recebi do tio que vende cachorros-quentes na frente da minha casa: "as três coisas que mais gosto na vida são cerveja, samba e vagina" - sim, ele falou "vagina", mencionou exatamente essa palavra.

Fabricio disse...

As lições tanto de Huerequeque quanto do tio de cachorro quente são ótimas.

E incluo mais uma de autor desconhecido: "as quatro melhores coisas da vida são comer e viajar".

Glauco disse...

Bela história, impressionante como a sabedoria está em qualquer lugar.

Anselmo disse...

quer dizer que a cabeça de um manguaça é qualquer lugar, Glauco? Absurdo. Trata-se de um local privilegiado, onde abunda, aliás, o álcool.

Tudo bem, é qualquer lugar.

E o que é o colar de dentes de sei-lá-que-bicho no colar do cabra?

Mas grande história de El Huerequeque. Só fiquei decepcionado ao saber que a atuação não foi uma atuação, mas o próprio comportamento. Estava me lembrando do Fitzcarraldo ontem mesmo, discutindo sobre a região amazônica e o desenvolvimento sustentável. Teria sido um papo melhor se fosse no fórum adequado.

Marcão disse...

Cerva, erva e pérva. A tríade dos malucos de minha cidade.

Maurício Ayer disse...

onde vamos parar com essas máximas...