Depois que instalaram uma TV que acessa o Youtube (sem merchan, por favor) lá em casa, desisti de vez de assistir os canais abertos ou pagos e mergulhei nos milhões de vídeos postados por internautas. Numa dessas, trombei com uma entrevista do Plínio, irmão único - e mais novo - do finado Raul Seixas. Ao ser questionado sobre o que teria levado o "Maluco Beleza" a tal ponto de alcoolismo, que o matou aos 44 anos, Plínio resume (o grifo é meu): "Raul tinha uma mágoa enorme com o ridículo, com a mesmice, com a idiotice que tá por aí - e que ainda tá, e que tá até pior. É bom que ele nem esteja mais [aqui]. Porque piorou bastante de lá pra cá, né. (...) Eu não quero falar muito, não, porque eu sou um pouco do lado dele nessas coisas. Mas Raul bebeu também porque... ele era meio tedioso, já, com isso. Isso aqui já não tava mais legal pra ele. Como ele disse: 'Enquanto vocês tão com as cercas do quintal, assento a sombra sonora de um disco voador'. Ele tava além disso tudo, das fronteiras, dos países, das cercas que separam quintais. [A música] 'Ouro de tolo' diz bastante a ideia da cabeça dele. Ele tá muito além disso tudo. Ele não era pra tá aqui. Ele bebia pra esquecer, pra não saber que tava aqui nessa merda toda."
Raul com o vaidoso conterrâneo Caetano
Em outro trecho da mesma entrevista, Plínio afirma que a música "Meu amigo Pedro", um dos maiores "hinos" do raulseixismo, foi feita pra ele - embora haja a especulação de que o "mago" Paulo Coelho, co-autor da canção, tenha direcionado a letra para seu pai, Pedro Queima Coelho. De qualquer forma, registrei acima a opinião de Plínio Seixas sobre o motivo do alcoolismo de Raul porque coincide com um depoimento do Chico Buarque ao jornal espanhol La Vanguardia, de 2005, que recuperei aqui no blog outro dia (o grifo é meu): "Eu nunca vi um movimento geral de idiotice como o de hoje. Já vivemos quase duas décadas de idiotice globalizada. A idiotice nos rodeia, eu mesmo tenho medo de ficar idiota". Pois é. Difícil imaginar Raul Seixas num mundo de Big Brother, Luciano Huck, carnaxé, funk ostentação, sertanejo universitário, coxinhas, anonymous, redes (anti)sociais etc etc etc. Nesse mundo em que todo mundo se leva muito a sério, que "se acha". Como vovó já dizia, em "As aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor", "Acredite que eu não tenho nada a ver/ Com a linha evolutiva da Música Popular Brasileira" - tirando um sarro do conterrâneo baiano Caetano Veloso, que sempre se levou MUITO a sério - tanto que deu o título de "VERDADE tropical" para sua autobiografia, quando mais parece uma "VAIDADE tropical"...
Enquanto Caetano olha para o próprio umbigo, Raul preferia fazer careta no espelho
E como "É fim do mês", termino esse post com os versos de outra obra-prima raulseixista que tem esse título, e que tem tudo a ver com a tal idiotice ressaltada pelo Plínio e pelo Chico (os grifos são meus): "Mas não achei!/ Eu procurei!/ Pra você ver que procurei/ Eu procurei fumar cigarro Hollywood/ Que a televisão me diz que é o cigarro do sucesso/ Eu sou sucesso!/ Eu sou sucesso!/ (...)/ Eu consultei e acreditei no velho papo do tal psiquiatra/ Que te ensina como é que você vive alegremente/ Acomodado e conformado de pagar tudo calado/ Ser bancário ou empregado sem jamais se aborrecer". Um brinde ao grande Raul. Porque eu também já não quero mais nem saber que tô aqui, nessa merda toda...
Não se perca de mim Não se esqueça de mim Não desapareça A chuva tá caindo E quando a chuva começa Eu acabo de perder a cabeça Não saia do meu lado Segure o meu pierrot molhado E vamos embolar Ladeira abaixo Acho que a chuva Ajuda a gente a se ver Venha, veja, deixa Beija, seja O que Deus quiser...
A gente se embala Se embora se embola Só pára na porta da igreja A gente se olha Se beija se molha De chuva, suor e cerveja...
Não se perca de mim Não se esqueça de mim Não desapareça A chuva tá caindo E quando a chuva começa Eu acabo de perder a cabeça Não saia do meu lado Segure o meu pierrot molhado E vamos embolar Ladeira abaixo Acho que a chuva Ajuda a gente a se ver Venha, veja, deixa Beija, seja O que Deus quiser...
A gente se embala Se embora, se embola Só pára na porta da igreja A gente se olha Se beija se molha De chuva, suor e cerveja...
A sacada foi do Rodrigo Vianna. Parece que, à medida que o tempo passa, um e outro se assemelham não apenas no gesto, na ideoologia, na capacidade de fazer murcharem as flores quando abrem a boca, mas também fisicamente.
Ando tão por fora do que se passa em termos de atualidades musicais, e as últimas coisas que ouvi do Caetano (escalado pelo Frédi na ponta direita da sua seleção) eram tão bregas, que perdi o interesse e nem estava sabendo da história de seu último disco, agora em lançamento. Chama-se Zii e Zie e parte de uma ideia que me pareceu genial: ir mostrando as canções ao público à medida que elas vão se fazendo. Segundo a revista Bravo! deste mês (que comprei porque saiu uma notinha sobre a mostra de cinema Marguerite Duras: escrever imagens, da qual fiz a curadoria e à qual retornarei em breve neste espaço), o Caetano teria dividido essa ideia com o Hermano Vianna, que por sua vez lhe sugeriu fazer um blog, oferecendo também o apoio técnico.
O músico topou e isso virou o blog Obra em Progresso, que tem textos interessantes. Um destaque é uma polêmica aberta com o Fidel Castro, que entrou no processo de composição da música "Base de Guantánamo". O projeto era culminar no disco, que agora está saindo.
E veja só, empolgado com o novo espaço aberto, Caetano passou a dedicar um tempo importante de sua vida a ele, e diversificou os temas, adentrando, claro, na política, mas também, inesperadamente, no futebol. Diz a revista que Caetano teria, por exemplo, elogiado "a humildade dos jogadores do time pelo qual torce, o Bahia, por eles terem 'se recusado' a golear o time do Poções numa partida válida pelo Campeonato Baiano".
Até aí, estamos em terreno comum. Mas a pulga começou a dar piruetas atrás de minha orelha quanto Caetano conta que futuro intenciona pra sua base internáutica: "O blog foi criado para acabar quando o disco saísse. E assim será. Pode virar outra coisa ou simplesmente sumir. Continuar sendo o boteco virtual onde a gente conversa e discute é que não vai."
Opa! "Boteco virtual onde a gente conversa e discute"??? Este é o Futepoca! Será que Caetano, como Vanderlei Luxemburgo e Soninha, é nosso leitor?
Caetano, mesmo que feche o seu boteco, você já conhece o endereço, o nosso tá sempre às ordens.
Mesmo sem concordar com a maior parte dos argumentos e/ou pontos de vista, tenho lido muita coisa interessante em "Tropicalismo, decadância bonita do samba", de Pedro Alexandre Sanches. Produzido inicialmente como trabalho de conclusão do curso de jornalismo na Escola de Comunicações e Artes da USP, em 1998, foi reescrito e publicado pela Boitempo no ano seguinte. Trata-se de uma análise do fenômeno estético/político/musical tropicalismo e de suas conseqüências na dita "pasmaceira" que teria se instaurado a partir de 1968 no cenário artístico brasileiro, tendo Gilberto Gil e - principalmente - Caetano Veloso como gurus e "orientadores". Como bom "crítico" cultural da (execrável) Folha de S.Paulo, Sanches desfere sarrafos para todos os lados. Mas, entre mortos e feridos, é possível captar algumas observações pertinentes sobre pós-modernismo, retropicalismo, fragmentação, neutralidade e presente-perpétuo. Caetano, o "guru-mor", é dissecado disco a disco, música a música, entre 1967 e 1999. Vejam, por exemplo, o que Sanches diz sobre "Vamo comer", faixa de Caetano, de 1987 (mais especificamente sobre o trecho "E quem vai equacionar as pressões/ Do PT, da UDR/ E fazer dessa vergonha uma nação?"): "Esta última (a faixa "Vamo comer") é a morada por excelência das preocupações burguesas. (...) Expressa ideologia centrista - por que jamais Caetano denunciou as pressões do PFL de Antônio Carlos Magalhães como partícipes da nação-vergonha? - que agora avança sobre radicalismos de ponta. O caminho do meio o atrai, e ele ataca as pontas para lançar fumaça sobre que o meio é o loco da indecisão." De fato, em 2001, Caetano meio que apontaria o "recomendável" para "equacionar as pressões do PT, da UDR", ao dizer o seguinte sobre Fernando Henrique Cardoso: "Acho-o um presidente respeitabilíssimo sob muitos aspectos. A chegada dele à Presidência é algo importante na nossa história". Ou seja, "o caminho do meio o atrai", mesmo.