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sexta-feira, agosto 29, 2008

Raul Seixas enfiou o AI-5 na Jovem Guarda

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Outro dia eu tava assistindo o programa "Letras brasileiras", comandado pelos músicos Roberto Menescal e Oswaldo Montenegro no Canal Brasil, e o tema era Jovem Guarda. Convidaram o Jerry Adriani (foto à direita) e, ao som de três violões, relembraram sucessos do iê-iê-iê brasileiro dos anos 1960. Lá pelas tantas, o papo entre eles enveredou pela mítica alienação das letras da Jovem Guarda, que nada falavam de política. Foi aí que Adriani contou um causo fantástico envolvendo ele e o Raul Seixas. Mas vamos começar do começo: na metade daquela década, a polêmica cantora Nara Leão, que já havia desagradado o pessoal da Bossa Nova ao abraçar o samba de morro, resolveu chatear mais ainda ao engatar um namoro com o galã suburbano Jerry Adriani.

Para completar a salada, ela fez uma viagem à Bahia e descobriu a anônima Maria Bethânia (e não hesitou em indicá-la como sua substituta no show "Opinião", dando o pontapé inicial na carreira da menina). Mas, ainda em Salvador, outro desconhecido interessante chamou a atenção de Nara: Raul Santos Seixas, 20 anos. Na volta ao Rio, ela falou tão bem do rapaz para o namorado Jerry que este, numa excursão à Bahia, contratou Raulzito e sua banda Os Panteras (foto acima) para ser seu conjunto de palco. Mais tarde, Raul começou a compor e oferecer músicas para Jerry, como "Tarde demais" e "Tudo que é bom dura pouco". Mas o grande sucesso dos dois seria "Doce, doce amor", parceria de Raul Seixas com Mauro Motta. É uma das musiquinhas melosas mais emblemáticas da Jovem Guarda, com o refrão "Doce, doce amor/ Onde tens andado?/ Diga, por favor/ Doce, doce amor".

Seria um exemplo perfeito do nível de alienação do iê-iê-iê do qual Menescal e Montenegro falavam, mas Adriani decidiu contestar. Segundo ele, Raul, já interessado em política, ficou prostrado com o AI-5 (Ato Instititucional nº 5), decretado em 13 de dezembro de 1968 (à direita), que extinguiu garantias dos brasileiros. Naquela semana, ele estava tentando botar letra numa melodia que havia feito - e que viria a ser "Doce, doce amor". E, sem entender muito bem o pretexto que os militares haviam usado para endurecer o jogo político, Raul lamentou a perda da nossa liberdade logo nos primeiros versos da canção: "Está fazendo uma semana/ Que sem mais nem menos eu perdi você/ Mas não sei determinar ao certo/ Qual foi a razão, meu bem vem me dizer". Pois é, o "doce amor" perdido era, na verdade, a democracia.

Ps.: O livro "Eu não sou cachorro, não", de Paulo César Araújo, fala exatamente dos protestos políticos escondidos nas músicas "bregas" da década de 1970 - supostamente, para os críticos, o nicho principal do som alienado (e alienante) nacional. Um exemplo é a canção "O divórcio", de Luiz Ayrão, lançada em 1977: "Treze anos eu te aturo e não agüento mais / Não há Cristo que suporte e eu não suporto mais". Não por acaso, naquele ano o golpe militar de 1964 completava exatamente treze anos...

13 comentários:

Nicolau disse...

O Raul poderia ter sido um pouquinho só mais explícito, pra ver se a gente entendia, rs.

Maurício Ayer disse...

Essa é a questão. O "protesto" ficou só no subtexto. Isso é absolutamente hermético. No máximo, participa do folclore dessas canções, mas não é capaz de mobilizar sentidos para os não conhecedores dos bastidores. Ou seja, a julgar por esse viés, essa canção comete o mesmo erro da arte conceitual mal feita: se eu não tiver as instruções eu não entendo, e depois que eu entendo perde toda a graça.
Não estou dizendo que não seja interessante conhecer esse folclore, mas não é isso que vai salvar o ieieiê.
Não tem nada a ver com o caso das canções do Chico, tipo "Apesar de você", que estabelecem um diálogo bastante intenso com a situação presente. Ou a clássica história do ieieiê que o Chico compôs pra filha do Médici em que diz "você não gosta de mim / mas sua filha gosta". É uma musiquinha pra lá de descartável, mas que teve o seu papel, pois todo mundo na época entendia a piada.

Marcão disse...

Claro, Maurício, se o Jerry Adriani não fala nada, ninguém jamais suspeitaria do link com o AI-5. É só folclore, mesmo. Mas mostra como os "bregas" até que tentavam dizer alguma coisa, mesmo que a versão final, liberada pela censura, acabasse não dando a menor pista disso.

Aliás, o livro "Eu não sou cachorro, não" observa que os "bregas" eram muito mais policiados que os "cults", pois seus discos vendiam milhões de cópias a mais e atingiam muito mais o povão do que a "MPB". Ou seja: muitas músicas de protesto do Chico ou do Caetano eram liberadas com poucos cortes porque os milicos sabiam que o público que os ouvia (e os compreendia) era restrito.

Já o Jerry Adriani, Benito di Paula, Luiz Ayrão, Ronnie Von, Odair José & companhia ilimitada não podiam dizer absolutamente nada que, sequer de longe, significasse contestação. O público deles era gigantesco.

E Raul Seixas, curiosamente, acabaria sendo o mais subversivo de todos, pois, além de não poder ser classificado nem como "brega" e nem como "MPB" (e fazer as duas coisas misturadas com rock, eventualmente), conseguiu atingir o público do "brega" com letras altamente políticas, como "Ouro de tolo", que denunciava com todas as letras o "milagre econômico" de Delfim Neto como engodo, mentira. Na época de "Doce doce amor", ele ainda não tinha bala na agulha para isso. Só experimentava...

Marcão disse...

Ps.: A música do Chico que contém o recado pra filha do Geisel é "Jorge Maravilha", uma das que o compositor fez em 1974 com o pseudônimo de Julinho da Adelaide, para burlar a censura (e conseguiu). Porém, pouquíssimas pessoas entenderam a brincadeira na época. Acho que só o círculo mais íntimo de Chico, porque, afinal de contas, ninguém suspeitava que ele fosse o tal Julinho da Adelaide - coisa que ele revelou muitos anos depois.

Outra história curiosa sobre Amália Luci, filha do Geisel, é que, segundo o próprio Pelé, a moça o procurou em 1974 para pedir que ele jogasse a Copa da Alemanha. Era um pedido (ou "recomendação") de seu pai. Pelé declinou do convite, que também foi feito a ele por figuras iminentes do circuito de Geisel, como o presidente da Arena (partido do governo), Jarbas Passarinho.

Glauco disse...

Cifrada demais não ajuda, depois Raul fez coisas bem mais incisivas. Mas o contrário é interessante, ou seja, conforme o autor, dá-se uma interpretação que ele orignalmente não quis dar à música.

É o caso da divertida "Jorge Maravilha". O Chico negou inúmeras vezes ter feito essa música pra filha do Geisel (não pra do Médici), mesmo assim até hoje se diz isso. Na verdade, ele conta que compôs a música por causa dos caras do Dops que levavam ele pra interrogatório e pediam autógrafo em discos para suas filhas. No entanto, como ele diz, "a versão é mais interessante que o fato".

Ele também nega ter feito "Apesar de Você" pro Médici e "Injuriado" pro FHC. Mas essas versões vão continuar rolando. De certa forma, é também um ônus ser gênio...

Marcão disse...

"Apesar de você" é muito clara, não adianta ele negar. Acho que fica fazendo beicinho pra valorizar ainda mais o fato ou, ainda, para tentar tirar o caráter "datado" da música.

Já "Injuriado", mesmo aceitando a versão incisiva de Chico de que não tem nada a ver com o FHC, deve ter sido uma puta de uma coincidência, daquelas raras de acontecer.

Em 1997, quando a canção foi lançada no disco "Cidades", FHC tinha sido questionado sobre a postura de Chico Buarque de subir nos palanques de Lula e de, volta e meia, criticar o governo tucano. FHC desdenhou e disse que o Chico "estava muito repetitivo". Por isso, quando "Injuriado" saiu, a letra foi associada imediatamente com o episódio. Afinal, vejamos:

"Se eu só lhe fizesse o bem

Talvez fosse um vício a mais

Você me teria desprezo por fim

Porém não fui tão imprudente

E agora não há francamente

Motivo pra você me injuriar assim

Dinheiro não lhe emprestei

Favores nunca lhe fiz

Não alimentei o seu gênio ruim

Você nada está me devendo

Por isso, meu bem, não entendo

Porque anda agora falando de mim"


Pode realmente não ter nada a ver, como diz o Chico. Mas é sensacional somente imaginar a possibilidade. Porque o FHC bem que merecia uma resposta dessas...

Glauco disse...

Entrevista do Chico ao Correio Braziliense, em 1999. Se é o autor que fala, eu que não vou contestar a versão dele:

Correio - Há quem diga que os versos do samba Injuriado ("Dinheiro não lhe emprestei/ Favores nunca lhe fiz/ Não alimentei o seu gênio ruim/ Você nada está me devendo/ Por isso meu bem não entendo/ Por que anda agora falando de mim") foram dedicados ao presidente Fernando Henrique, que o chamou de "repetitivo", em resposta a uma crítica ao governo dele...

Chico - Faço menos músicas dedicadas às pessoas do que as pessoas pensam. Falaram que Apesar de Você era endereçada ao Médici, quando dizia respeito à situação do país como um todo.

Correio - E aquele famoso verso "você não gosta de mim, mas sua filha gosta": há a versão de que você fez em homenagem à filha do Geisel, que comprava discos de Chico Buarque, enquanto o pai mandava censurar os discos de Chico Buarque...

Chico - O problema é que quando a versão é mais interessante do que o fato, não adianta você querer desmentir . Aquela música falava de uma situação que eu vivi muito: os caras do Dops (Departamento de Ordem Política e Social) iam me prender e, enquanto me levavam para depor, pediam para eu autografar discos para as filhas, que gostavam de mim.

Correio - Então Injuriado não foi feita para o presidente Fernando Henrique?

Chico - Claro que não.

Correio - Mas o que você achou do Fernando Henrique ter te chamado de "repetitivo"?

Chico - Não li essa declaração. Mas às vezes eu sou repetitivo mesmo...

Correio - Como assim?

Chico - No sentido de que as pessoas me fazem as mesmas perguntas e este país muda tão pouco que eu sou obrigado a me repetir.

Marcão disse...

"No sentido de que as pessoas me fazem as mesmas perguntas".

Putz, que senhora canelada no repórter! Não foi a toa que entrevista tenha terminado ali!

Salve, Chico! Sensacional.

Ps.: Se a música mirasse mesmo o FHC, é óbvio que ele nunca admitiria.

Maurício Ayer disse...

Mas será mesmo que ninguém sabia do Julinho de Adelaide? Não sei, não é o que muitos contam.
O que eu dizia é que o jogo pode ser compartilhado ou não. Se não é, vira esoterismo ou folclore. Que também é legal, é bom pro boteco, mas não torna a música melhor ou pior. A meu ver.

E claro que "Apesar de você" ser pro Médici ou "pra situação como um todo" dá no mesmo. Assim como tanto faz a filha ser do Geisel ou do capanga do Dops. Do ponto de vista das relações sociais e de poder que são postas em jogo dá no mesmo. Afinal, em literatura (e canção é literatura, por que não), não é a verdade dos fatos que conta, mas uma outra verdade, por assim dizer, que eu poderia chamar de a verdade do jogo. A riqueza do jogo simbólico, sua potência, a capacidade de abrir as leituras de uma determinada realidade vivida.
E é próprio da cultura oral mesclar figuras, projetar sobre as personalidades públicas os fatos que não necessariamente lhes ocorreu. Neste sentido, a filha do Geisel sintetiza todas as filhas dos putos do regime.
E Chico Buarque se torna um herói de cordel da cultura oral universitária, por assim dizer...

Dan Cruz disse...

Só pra completar.

Raul foi uma figura muito interessante dentro da jovem guarda, apesar de quase ninguém falar sobre essa fase dele, o próprio Raul Seixas, aliás, a ignorava.

Raul alguns anos mais tarde, fez um trabalho com Leno. Onde compôs músicas que eram de fato subversivas de verdade, sem metaforas.

Resultado: O albúm foi censurado.

O disco se chamava Vida e Obra de Jonhhy McCartney.

Glauco disse...

Comentário atrasado, só vi a sequência hoje.

Claro que simbolicamente "tanto faz" se a filha é do Médici ou do Geisel (embora haja diferenças de postura e de papel no regime de um e de outro). A correção foi só pra dizer que se atribui a música à filha do Geisel e não do Médici. Nada mais.

E, como diz o Dan, o Raul fez sim músicas bem mais incisivas contra a ditadura, e não só no âmbito político, como também no moral. Canções bem menos cifradas e mais explícitas.

Sandra Cristina de Carvalho disse...

A gente não ter percebido foi chato. Mas olhando por um ângulo positivo esses compositores conseguiram burlaR a censura. Não deixa de ser divertido saber que esses compositores fizeram escárnio da ditadura.

Sandra Cristina de Carvalho disse...

A gente não ter percebido foi chato. Mas olhando por um ângulo positivo esses compositores conseguiram burlaR a censura. Não deixa de ser divertido saber que esses compositores conseguiram fazer escárnio com a ditadura militar. rs