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Um pai divulgou, em sua conta no Facebook, a planilha de mesada dos filhos, de 6 e 8 anos. O cálculo para o recebimento do valor é feito da seguinte maneira: a mesada básica é de R$50, a cada “falta” da criança, um valor é descontado. As infrações computadas na planilha incluem atraso e reclamação para ir à escola, inglês e igreja, esquecimentos de várias ordens e desobediência. Ao fim de cada período, as faltas são computadas e o valor final é conhecido.
O pai afirmou que publicou a foto apenas para mostrar à família, que mora longe, a maneira que encontrou para passar valores (com ou sem trocadilho, essa fica à escolha do leitor) para os filhos. Como pouca gente sabe que o melhor mesmo é fechar as publicações no Facebook, o post viralizou e já ultrapassa os 100 mil compartilhamentos. Depois da fama instantânea, o pai em questão preferiu fechar o perfil na rede social.
Prefiro não citar nomes nem lincar a notícia aqui pois meu objetivo não é julgar uma atitude individual. É, sim, tentar desconstruir o pensamento geral de que o que esse pai está fazendo é educar. Pelo menos dentro do meu conceito de educar, não é.
O que está acontecendo nesta família, na minha opinião, é o contrário de educar. É a criação de pessoas que aprendem desde cedo que o dinheiro é o mais importante e que, para merecê-lo, devem seguir todas as regras. Quaisquer que sejam elas. Aprendem que suas opiniões não importam. Aprendem que existe sobre elas uma vigilância eterna. Aprendem que não existe flexibilidade e negociação no mundo.
Ok, eu entendo. Existe um apelo forte nesse tipo de estratégia de educação. Numa primeira olhada, a impressão é que há pais zelosos cuidando para que as crianças aprendam que as regras devem ser respeitadas. Há ainda a vantagem de não haver castigos físicos, o que, dada a propensão da sociedade em aceitar violência contra crianças, é sempre um avanço. Mas pra mim, continua sendo errado.
Uma das razões citadas pela família para explicar o método foi a intenção de educar as crianças a serem responsáveis com o dinheiro. Bom, essa alguém vai ter que me explicar. Não vejo qualquer relação entre educação financeira e cortes na mesada por motivos comportamentais. Na minha cabeça, quando os pais decidem dar a mesada, ela serve para que a criança tome decisões sobre o próprio dinheiro. Não é o caso. Nem entendo, aliás, por que crianças dessa idade já entraram no mundo do dinheiro. Parece-me que elas deveriam aprender conceitos de responsabilidade por meio de brincadeiras e de faz-de-conta. Algum educador pode me corrigir se eu estiver sendo muito conservadora.
Em segundo lugar, a impressão que esse método passa é que que não há acolhida dentro da família aos sofrimentos das crianças. Guardo viva a sensação física de desespero que era ser acordada pela minha mãe para ir para a escola (que continua acontecendo a cada vez que meu filho me acorda de madrugada). Não tinha nada contra a escola, mas acordar cedo sempre foi um suplício. Se uma criança sequer pode reclamar de que não gosta de acordar cedo, poderá reclamar do quê? Além disso, atrasos, nessa idade, são de responsabilidade dos pais. Que criança de 6 anos tem noção exata de quanto tempo pode levar em cada atividade matinal para que não se atrase? Perder a noção do tempo acontece com adultos com frequência. O que está sendo exigido dessas crianças é mais do que podem oferecer. Elas devem ter a oportunidade de errar e de entender as consequências desse erro (as consequências reais, não aquelas inventadas pelos pais). Como aprender de outra forma?
Lidar com dinheiro? (flickr.com/photos/criminalintent/) |
Um parêntese. Não tenho capacidade técnica para discorrer sobre psicologia, mas essa abordagem é behaviorista (não é não, esclarecimentos nos comentários). Assume que temos que buscar o comportamento ideal por meio dos estímulos certos. Bom, é inegável que essa abordagem dá resultados, crianças são facilmente treinadas para reagir da forma esperada a determinados estímulos. Isso está na base dessas ideias cruéis de que bebês devem ser deixados chorando no berço para aprenderem a dormir sozinhos. Depois de muito sofrimento eles aprenderão mesmo, mas quais as consequências psicológicas de abandonar uma criança em seu berço? Ou de punir cada erro com a retirada de dinheiro da mesada?
A outra crítica a esse processo é a da monetarização da educação. Embora sutil, acho que existe uma diferença entre tirar atividades prazerosas da criança e tirar dinheiro. Não que eu defenda castigos do tipo deixar a criança sem brincar com os amigos ou coisas semelhantes. Só estou pontuando uma distinção. Ao envolver o dinheiro, os pais estão dando um valor monetário para as atitudes dos filhos. Além dos problemas práticos dessa ideia – quanto vale cada falta? - há a questão conceitual. A colaboração dos filhos não deveria ser comprada, e sim ensinada. Ao pagar pela obediência, os pais livram-se dos problemas cotidianos, mas não educam com profundidade. O que acontecerá quando não houver o castigo ou a recompensa financeira? Acredito que a ênfase no dinheiro tire de foco o principal, que é ensinar como o mundo funciona.
Sei que choverão comentários do tipo “quero ver quando chegar a sua vez”. E é verdade, também quero ver quando chegar a minha vez. Ainda faltam alguns anos para isso acontecer, mas juro que estou curiosa para saber quais serão as minhas reações. Em relação aos acordos conjuntos com a criança, não tenho dúvidas: eles acontecerão. Já acontecem hoje, com um bebê de pouco mais de 20 meses.
Em relação à desobediência desses acordos, não sei. Sei, sim, que haverá muitos momentos em que vou querer tomar a alternativa mais fácil, que é exigir obediência “por bem ou por mal”. Quem sabe do futuro? Entretanto, tenho certeza de que não me gabarei de comprar a obediência do meu filho, ainda que isso aconteça. Terei vergonha. Tentarei explicar a ele que perdi a paciência, que agi errado, mas que estou buscando melhorar.
Tampouco quero dizer que essas crianças se tornarão monstros que só respondem ao estímulo do dinheiro. Crianças são muito mais complexas do que a maior parte de nós imagina. Aliás, cada vez mais acredito que os pais não têm o poder de moldar a personalidade dos filhos. Essa personalidade já existe desde o útero. O que acontece são estímulos positivos ou negativos, que atingirão cada criança de uma maneira diferente. É possível, inclusive, que essas crianças estejam sendo educadas pelo exemplo negativo, ou seja, que sintam-se tão compradas pelos pais que, apesar de se submeterem ao esquema (que remédio?), sabem que isso é errado. Não há como prever os resultados do exemplo dos pais. Não tem grupo de controle na educação dos filhos. Essa é, na verdade, a minha esperança.
Por fim, uma pequena justificativa. Este post sobre criação de filhos está num blogue que não tem muita relação com maternidade ou paternidade. Mas na verdade tem sim. Apesar de ser encarada como uma questão privada apenas, a criação dos filhos é uma atividade política. Afinal, as crianças crescerão e participarão da sociedade. Acredito que, ao mesmo tempo que não devemos impor nossos pontos de vista a famílias que pensem diferente, é importante debater as maneiras de criar e educar. Elas refletem o que somos e o que seremos como sociedade.
*título involuntariamente dado pelo camarada Maurício, que comentou essa notícia no meu Facebook