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Por Glauco Faria
Futepoca – Como
surgiu a ideia de fundar a São Paulo Livre?
Aline
– Pra começar, o nome da página não é São Paulo
Livre e sim Bambi Tricolor. A escolha do nome, aliás, é o que tem
gerado mais críticas e, ao mesmo tempo, apoio. Até agora,
publicamos três posts para falar quase exclusivamente sobre a
escolha do nome e suas implicações, uma delas, inclusive, responde
diretamente a pergunta "Por que Bambi Tricolor e não SPFC
Livre?"
A ideia de fundar a
página Bambi Tricolor veio por inspiração da Galo Queer, que
realmente foi corajosa e pioneira nesse sentido. E a página também
foi uma espécie de desdobramento de conversas que nós tínhamos
sobre a homofobia no futebol. Somos um grupo de amigos que, desde
antes desse movimento de torcidas anti-homofobia, dizíamos que os
são-paulinos deveriam adotar o apelido Bambi por todos os motivos já
explicitados na página.
Futepoca – Existe
uma articulação com torcidas de outros times que também têm como
objetivo o combate à homofobia?
Aline – Não. Pelo
menos nada além do que se vê publicamente. Nós apoiamos todas as
manifestações das outras torcidas, assim como recebemos apoio de
várias delas. São torcidas que atuam em confluência, mas não
necessariamente articuladas.
Futepoca – Os
torcedores são-paulinos não raro são estigmatizados com ofensas
homofóbicas por rivais. Nesse caso, é mais difícil trazer a
discussão sobre homofobia pelo fato de boa parte dos torcedores do
São Paulo rejeitar a associação feita por adversários?
Aline
– Sim. Há uma forte resistência entre os
torcedores, agravada, inclusive, pela escolha do nome Bambi Tricolor.
E embora a maioria que se manifesta tenha consciência de que as
provocações e ofensas contra os são-paulinos tem um forte caráter
homofóbico, não é muito clara a ideia de que a reação da
torcida, de modo geral, tende a reforçar a homofobia. Parece mais
fácil dirigir-se à torcida e dizer que certos apelidos e certas
ofensas são homofóbicas. No máximo, você será acusado de ser
chato ou defensor do politicamente correto. Mas quando nós dizemos
"vamos assumir o Bambi" pensando em mudar os termos dessa
discussão, quando dizemos que o estigma da homossexualidade não
pode, em si, ser recebido como ofensa por mais que seja formulado e
proferido como tal, somos acusados de todo o tipo de coisa, que vai
de ingenuidade, a estupidez, a sermos rivais humilhando e
desrespeitando o clube. Uma das coisas que nos foram ditas é que se
tivéssemos escolhido o nome SPFC Livre, nós receberíamos mais
apoio e adesões. O que, para nós, aponta a ambiguidade da situação
dos são-paulinos diante da homofobia. Como defender a causa LGBT sem
"piorar" o estigma de sermos uma torcida gay, ou torcedores
de um time gay? A própria configuração desse "impasse"
já expõe o quanto nós, como sociedade, não temos clareza sobre o
problema, e quão naturalizada é a homofobia.
Mas é preciso ponderar
uma coisa: se, por um lado, os torcedores contrários à página são
refratários aos nossos argumentos, os favoráveis já chegam com uma
elaboração própria e muito interessante sobre a homofobia no
futebol e, mais especificamente, da homofobia de que os são-paulinos
são vítimas e compactuantes. Isto é, há mais resistência, por um
lado, mas há também uma recepção muito estimulante, de outro.
Sinais de que essa é uma boa conversa.
Futepoca – Como
foi/está sendo a reação de organizadas do São Paulo que, a
exemplo de inúmeras de diversos clubes brasileiros, em muitas
ocasiões se mostram homofóbicas?
Aline
– Nós não recebemos nenhum contato, seja positivo
ou negativo, oficialmente, das organizadas. Muitas pessoas, homens em
sua extrema maioria, chegam e dão pistas de que pertencem a alguma
das organizadas, mas nada além disso. Estes são os que com mais
agressividade se manifestaram. Recebemos muitas ofensas, mensagens
cheias de irritação, perplexidade, muitos pedidos ou exigências
para deletarmos a página ou mudarmos o nome. E recebemos umas poucas
ameaças.
Futepoca – A Bambi
Tricolor é uma iniciativa relacionada mais às redes sociais ou
pretende também pretende marcar presença nos estádios?
Aline – A Bambi
Tricolor, como "organização", por assim dizer, é uma
tentativa de debate. Ele se dá, hoje, mais eficientemente, nas redes
sociais.
Nós, pessoas que
idealizamos e administramos a página, frequentamos o estádio como
torcedores comuns, nós estamos lá sempre que possível. Por
enquanto, não é possível fazer nenhuma manifestação física que
se aproprie do apelido Bambi, ainda mais no estádio. Se, pela
internet, as reações contrárias foram tão intensas, imagine na
arquibancada, quando o sangue está ainda mais quente. Qualquer coisa
que pareça ofensiva ou provocativa pode despertar reações
violentas, então é preciso ter cautela aqui.
Futepoca – Quais
são os próximos passos planejados pela Bambi Tricolor?
Aline
– Não sabemos ainda. A página Bambi Tricolor não é
resultado de um planejamento, ela foi uma manifestação imediata,
espontânea, inspirada pela ocasião. A Galo Queer foi um
acontecimento e veio ao encontro de demandas nossas, expectativas
nossas em relação ao futebol, à política, ao mundo. Nós sabemos
que o hype sobre as páginas de torcidas anti-homofobia vai, mais
cedo ou mais tarde, diminuir e minguar. Nossa ideia, contudo, é pelo
menos manter a página como mais uma referência, um lugar de debate
sobre homofobia e/no futebol. Se algo maior advier daí, beleza.
Estaremos dispostos.
Futepoca – Na sua
opinião, os clubes brasileiros, a CBF e as federações não tratam
da forma devida o combate à homofobia no futebol?
Aline
– Claro que não. Nem os clubes nem a CBF se posicionam
publicamente, ou seja, eles não tratam de forma nenhuma. Em questões
que envolvem violência, todo silêncio é, na verdade, uma omissão.
Na melhor das hipóteses, os clubes e a entidade responsável pelo
esporte são omissos diante de uma causa que só cresce e reivindica
direitos, conscientização, transformações sociais. Na melhor das
hipóteses. Pois é virtualmente impossível que a homofobia seja tão
naturalizada no meio sem que as instituições, em suas estruturas de
poder e formação, contribuam diretamente para isso.
Às vezes, sinais mais
claros dessa homofobia emergem, como aconteceu quando o cartola do
Palmeiras, José Cyrillo Jr, mencionou o Richarlyson num programa de
televisão quando questionado sobre um suposto jogador que assumiria
sua homossexualidade. Ou o vídeo comemorativo do Corinthians que
exibia um veado como símbolo do São Paulo. Infelizmente, esses
casos são tratados como gafes, deslizes pontuais que ocorreram por
falta de cuidado ou avaliação correta. E, até certo ponto, essa
descrição leviana não deixa de ser reveladora. Numa cultura
machista como a nossa, pode soar natural que num ambiente tão
masculino a homossexualidade seja um tabu e uma piada. Mas sabe-se
também que não é apenas isso (uma piada). Quando o assunto é
seriamente abordado, os relatos que chegam até o público indicam
uma força repressiva que torna a homossexualidade um obstáculo,
talvez até um impedimento para as carreiras dos jogadores. Não por
acaso, não há jogadores homossexuais assumidos. Não se pode
creditar esse "grande armário" apenas à rejeição da
torcida e à cultura machista, as instituições são uma parte
importante dessa equação aí.