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sexta-feira, junho 13, 2008

A sociedade dos distintivos

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Estava ontem no ônibus, umas cinco e meia da tarde, voltando com meu filho da escolinha pela avenida Franscisco Morato, zona Oeste de São Paulo. Eu tinha acabado de passar a catraca e ia descer no ponto seguinte, quando deparei com um rapaz de uniforme esportivo, tipo agasalho "adidas", bem diante da porta. Num primeiro relance, achei que era um torcedor do Fluminense, pois o uniforme era branco, com três listras no ombro, duas verdes e uma rosada no meio. Mas não, era um torcedor da Mancha Verde, paramentado do tênis ao boné.

Meu filho também se interessou pelo palmeirense e ficou olhando, até que abriu o seu sorriso de quatro dentes. O rapaz retribuiu com um sorriso simpático, deu uma risadinha e falou comigo "Tô vendo que não é corintiano". Havia uma cumplicidade boa na sua fala, ele realmente achou que uma criança que sorrisse para ele daquele jeito tinha que ser palmeirense, ou no mínimo não ser corintiano. Ao que respondi, amigavelmente, "Claro que é".

O moço fechou a cara, apertou um pouco os beiços e fixou os olhos no chão. "Embaçado", disse. "Ele é respeitador", acrescentei, pra quebrar o clima. Mas não teve jeito, o até então simpático palmeirense não tirou os olhos do piso do ônibus até que a porta abrisse e ele descesse, no mesmo ponto que nós, sem um gesto.

Duas reflexões me sobrevieram. A primeira foi a constatação de que um torcedor fanático lê o mundo apenas pela lente de sua identidade de torcedor. Quer dizer, ele mesmo se reduz ao distintivo que leva no peito, como um soldado, um membro de seita. Aquele palmeirense não podia entender que eu pudesse ser simpático com ele, sendo ao mesmo tempo seu adversário de torcida - "seu inimigo", devia pensar. Sua farda é o que ele é, ele acredita que quem o vê não o enxerga como uma pessoa complexa, com uma história própria, com qualidades e defeitos, o vê simplesmente como um palmeirense. E a um sorriso de um desconhecido reagiu simplesmente como torcedor.

A segunda coisa, um ponto a frente, é que nesse contexto até mesmo meu filho Chico tinha algo de ameaçador. Registre-se, é um bebê de um ano de idade, mas sendo ele corintiano o palmeirense não podia se render ao apelo de seu sorriso fofo, e continuar com os gracejos que todo mundo faz. Já era um pequeno inimigo. É terrível isso. A adesão a uma torcida, algo que legitimamente faz parte da mitologia individual-social de pessoas e grupos, pode se tornar mandamento moral, regra de conduta para se saber quem são as boas e as más companhias. É a violência das verdades morais se manifestando de forma crua e próxima, do mesmo tipo que se usa para fundamentar as "cruzadas" pelo "bem", ou outro tipo de cegueira violenta. Toda a necessidade de compartimentação - i.e., de discriminação - em nossa sociedade se mostrava naquele gesto de mirar o chão e evitar o encontro com o olhar daquele bebê maligno.

Que não me interpretem mal. Uso o exemplo do palmeirense porque eu e Chicão somos corintianos, e conosco essa cena obviamente não poderia ter acontecido com um membro da Gaviões. Mas meu assunto não são os palmeirenses, e sim essa simplificação do homem, essa redução de natureza fascista, que pode muito bem servir de modelo para entendermos outros tantos tipos de discriminação com os quais convivemos.

14 comentários:

Anselmo disse...

Maurício,

não precisa se justificar pra fazer reflexões de cunho jocoso. Parafraseando a máxima de Olavo Soares, "faz a piada e pronto!"

Agora, você pode interpretar essa história por um viés diferente. Você é que levou em conta apenas a vestimenta do cidadão. O cara poderia estar contente por, de fato, não ser corintiano, ter torcido pro Sport etc. Então, ao ver frustrada sua sensação de que toda a humanidade estava feliz com a derrota do corinthians, caiu em si, em um momento de epifania trágica. Percebeu que tinha gente que não partilhava dessa satisfação, ficou sem palavras, quiçá desnorteado. O mundo dele ruiu!

Ok. Forcei a mão.

Mas gostaria de ouvir a exposição sociológica no fórum adequado.

Marcão disse...

Você tem toda razão, Maurício. E a capital de São Paulo, infelizmente, se tornou uma das "piores" arenas de combatentes dessas "seitas". Antes de morar aqui, não tinha noção do ódio selvagem que move milhões de "torcedores" dos chamados quatro "grandes": Corinthians, Palmeiras, Santos e São Paulo. Creio que 90% não estão nem um pouco preocupados com o futebol, mas apenas em odiar, provocar e partir para a agessão.

Nessa derrota do Corinthians, anteontem, fiquei sabendo de gente que soltou rojões dentro do apartamento dos vizinhos, aqui na região do ABC. É assustador - e parece que ninguém fica tão perplexo como eu. Já virou rotina, é uma coisa "banal". Em São Paulo, deixei de sair na rua com a camisa do meu time há muito tempo e, nas poucas vezes que fiz isso, me arrependi muito. Você vira um alvo, dá pra perceber que tem gente te fuzilando com os olhos.

Daí, um esbarrão, um olhar enviesado, uma palavra e você pode ser arrebentado ou simplesmente morto. Por "torcedores" de qualquer uma das quatro "seitas", como você disse, sem distinção (ressalvando que o território, na capital paulista, é mais dominado pelas "organizações" de Corinthians, Palmeiras e São Paulo). Eu não sei o que leva alguém a priorizar um clube de futebol sobre um semelhante. Compreendo que existe "paixão", "dedicação", "amor", "entrega". Mas canalizar todo o ódio, toda a frustração, toda a agressividade para isso é tão insano quanto um marmanjo fechando a cara para uma graça de criança como o sorridente Chicão. Triste - e amedrontador.

Thalita disse...

o pior é que isso acontece até na caixa de comentários do futepoca...

Nicolau disse...

Eu Eu cinvivi por uns dias, por conta de um trampo que não tinha nada a ver com futebol, com um pessoal que era de organizadas do do Botafogo. Eu conversei bastante com os caras, todos gente boa pra caramba. Falando de futebol disse que não entendia esse negócio do cara ter ódio pelo outro só porque ele torce pro Flamengo. O cara respondeu que o problema não eram os flamenguistas, mas os caras de uma das organizadas do rubro-begro, acho que a Jovem. "Aqueles lá dá vontade de dar porrada". Achei ainda mais espantoso, pq a questão do cara não tinha nada a ver mesmo com futebol, mas com as torcidas. Na real, é uma briga de gangues. O ser humano tem umas coisas esquisitas...

Glauco disse...

Não vou me atrever a fazer análises sociológicas, mas muito bom o post do Maurício e sensacional a interpretação do Anselmo. Agora, não dá pra deixar de provocar quando se fala de torcidas como "seitas" e o autor diz que o filho dele de só um ano de idade já é corintiano, rs.

Anselmo disse...

defendo o maurício. é dever de um bom pai querer o melhor para o seu filho. ainda que o que ele acha que é o melhor para o filha seja... o corinthians. que, na minha opinião, não faz bem pra ninguém.

Bom, talvez tenha feito bem pra MSI.

(defedi um corintiano. to preocupado.)

Maurício Ayer disse...

Por enquanto o Chicão é corintiano, sem dúvida nenhuma.
Depois, por mais que um pai cuide e se dedique, não pode impedir que um filho se perca no mundo, hehe.
Agora, Glauco, marquemos bem a distância entre valores éticos (fundados na diferença e no diálogo) e morais (fundados na unidade e na doutrina). Desejar que meu filho seja corintiano é querer compartilhar com ele isso que chamo de mitologia pessoal, uma identificação com a imagem que tenho do que seja ser corintiano. Mas ele é ele, e vai escolher com o quê quer se identificar.
Na minha conversa com o palmeirense, a questão era o time que o Chicão torcia, no caso, evidentemente, o time que eu torcia, já que o Chicão não pode falar por si (mas tenho certeza que não o traí, ele dorme sorrindo sempre que nino ele cantando o hino do Timão).

Glauco disse...

Acho que o Fredi e seu pai vão fazer um lobby pro Chicão torcer pra outro Alvinegro, rs.

Anônimo disse...

Por tudo isso que comprei uma camisa do Juventus da Mooca. Além de ser o único time de SP que honra minha ancestralidade italiana, é um território onde torcedores vivem em harmonia e se divertem com o futebol independetemente do resultado.

Anônimo disse...

Mauricio,
vou contar uma história que vai deixá-lo animado; minha irmã tem gêmeos (hoje adultos), mas assim que os dois meninos nasceram o pai colocou duas chuteirinhas do corinthians na porta da maternidade e depois, dá-lhe camiseta do coringão, partidas de futebol e tudo aquilo que faz um pai corintiano fanático. Os dois são corintianos doentes. Aliás eles vão fazer aniversário na segunda feira; deixa eu correr prá ROXOS E DOENTES porque o que eles mais gostam de ganhar é material do timão!

Anônimo disse...

Tenho amigos palmeirenses, outros corinthianos, saopaulinos, santistas. ´Também lamento o alto grau de ignorância do torcedor médio, que tem sua vida pautada exclusivamente por um fanatismo a um clube de futebol. Alguns fazem o mesmo por religião. E se agridem e se matam por causa disso. Fala sério, o resultado de um jogo ou de um campeonato, a paixão por um clube de futebol, é motivo suficiente para tanta ira ? Esse é um dos motivos que tira as famílias do estádio. Mais seguro ver futebol pela TV.

Unknown disse...

Triste isso!

Anônimo disse...

Em 1976, participei da invasão corintiana no Maracanã. Para quem não sabe, o Corinthians atraiu 70 mil torcedores para a semifinal do Brasileiro daquele ano em jogo contra o Fluminense. Na saída do Maracanã, me perdi dos meus amigos paulistas. Eu não fui com torcida organizada, fui por conta própria e tinha no bolso uma passagem de ônibus para voltar pra São Paulo. Era minha primeira vez no Rio. Não tinha apenas me perdido dos amigos, como também estava numa cidade desconhecida. Na saída do estádio, vestindo a camisa do Timão, perguntei a três torcedores do Fluminense como eu poderia fazer pra ir à rodoviária. Eles me falaram que dava pra ir à pé e que era o caminho deles. Fomos juntos. Os três com uma bandeira do Flu e eu com a camisa corintiana. Conversamos sobre o jogo, analisamos a partida e, quando a rodoviária estava próxima, eles me apontaram o caminho a seguir. Bons tempos aqueles.

r_evangelista disse...

maurício, acho q quando o cara reagiu desse jeito não foi ao seu filho, foi a você. ao dizer que a criança era corintiana acabou cortando a ligação entre vocês (na real, foi vc que se declarou corintiano). aí (conjecturo, pq nao vi) ele pode ter é se intimidado com vc, pq não sabe se a boa relação ia continuar.

mas de fato, sp é o lugar onde a rivalidade é mais violenta. no NE camelô vende camisa do sport em frente ao estádio do nautico.