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domingo, agosto 24, 2008

Sangue falso não pode OU resquícios da ditadura

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Na tarde deste domingo fui à delegacia do bairro Paraíso, em São Paulo, onde ocorreu um ato (foto) em memória das vítimas do extinto Doi-Codi (Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna), órgão de repressão e violência da ditadura militar brasileira (1964-1985). Uma das sedes do serviço funcionou no prédio da delegacia, na Rua Tutóia nº 1.000, e foi o local de suplício e morte de centenas de pessoas. A manifestação (foto) também aproveitou para reforçar o pedido de punição para os torturadores e mandantes, debate que repercute no país.

"A punição é fundamental, faz parte dos novos passos para a retomada da democracia no Brasil, que ainda não é completa", observou o jornalista e escritor Alípio Freire (à esquerda), um dos torturados pela ditadura que compareceu à manifestação. "A Lei de Anistia, de 1979, diz que não haverá punição para os crimes políticos e conexos, ou seja, que tenham conexão com eles, cometidos nos tempos da ditadura tanto pelos militares quanto pelas suas vítimas. Só que tortura e assassinato não são crimes políticos e nem conexos. São crimes de lesa-humanidade, imprescritíveis", acrescenta Freire, que foi preso em agosto de 1969 e torturado na Oban (Operação Bandeirante) e no Dops (Departamento de Ordem Política e Social) até dezembro daquele ano, ficando preso, depois, até outubro de 1974.

E ele tem razão ao dizer que a retomada da democracia ainda não se consolidou. Quando a manifestação pacífica em frente à delegacia já ia terminando, uma lata de tinta vermelha foi despejada no local (à direita) para marcar as violências e os assassinatos praticados ali. Ato contínuo, um policial (delegado ou investigador, não ficou claro) saiu aos berros da delegacia e mandou que limpassem o chão. Vaiado, o homem voltou para o prédio, mas ameaçava gritando que alguém ficaria detido pelo derramamento da tinta. Depois, saiu com uma máquina digital e fez fotos dos manifestantes, que se dirigiram para um espaço a um quarteirão dali. Mas, óbvio, não deu nem cinco minutos e baixou polícia no local.

Por sorte, todos conseguiram ir embora bem rápido, sem confusões. Mas a truculência serviu para deixar claro que o comportamento da polícia brasileira é mais uma herança maldita daqueles anos de chumbo.

13 comentários:

Olavo Soares disse...

Pô, mas ia melecar a calçada inteira... e quem ia limpar depois?

Unknown disse...

Pois é, Olavo, a questão é refletir sobre isso (era o objetivo da "meleca"): eles melecaram a calçada e o país, inclusive com o sangue de um Olavo que morreu alí mesmo em 72: Olavo Hansen. Esse sangue não foi lavado e ninguém quer enxergar. A gente só quer que vire visível.

Olavo Soares disse...

Concordo, Silvia. Mas o protesto transcorreu normalmente, segundo está no texto do Marcão, e a mensagem foi passada. Precisava mesmo manchar a calçada?

Anselmo disse...

Acho quase uma conquista o policial não ter atirado pro alto pra dispersar os manifestantes. nem tentado de fato prender ninguém.

mas talvez eu esteja me contentando com pouco.

a tinta é uma forma de protesto questionável, e a reação do policial soa mais como alguém que será cobrado pela zeladoria do local do que como truculência. Mas como eu não estava lá, só posso ficar com meu palpite.

No fundo, tem amostras de truculência da polícia mais fortes e graves a alguns quilômetros da Tutóia, seguindo pela Sena Madureira, Jabaquara, sentido zona sul.

O que não torna a causa dos manifestantes menos justa.

Anônimo disse...

A causa dos manifestantes é mais que justa! Só questiono a real necessidade de derramar tinta na calçada.

Nicolau disse...

Concordo com a Silvia. Sou a favor de manifestações das mais variadas. Se não pode derramar tinta na calçada, o que é um "vandalismo" bem pequenininho, daqui a pouco também não pode invadir fazendas inmprodutivas, ocupar prédios públicos, fazer passeatas na Paulista ou mesmo fazer greve, já que prejudica muito mais gente. Luta política se dá na rua e com atos que chamem a atenção. Pelo menos é assim que eu entendo democracia.

Glauco disse...

Acho a questão do sangue falso um pouco marginal, diante da importância da manifestação e do que era pedido. Mas já que ela é o tema central do post e dos comentários, vamos lá. Entendo a posição do Olavo e acho que, de fato, quem provavelmente limpou a rua foi algum funcionário de empresa terceirizada contratada pela prefeitura e que ganha salário mínimo. Ele poderia ter sido poupado disso. Ademais, imaginem uma pessoa que foi roubada chegando a uma delegacia onde, à frente, tem uma poça dessas (que ele talvez não saiba ser falsa). Constrangimento desnecessário pelo qual a pessoa, provavelmente já traumatizada pelo ocorrido, vai passar.

Discordo que a truculência policial seja um "resquício da ditadura". O regime militar contribuiu e muito para aumentar o grau de violência da polícia e da sociedade já autoritária. Mas a corporação, desde 1808, quando D. João VI instituiu a primeira guarda do país, serve fundamentalmente para proteger patrimônio e, por conseguinte, a elite.

Como atribuir a um "resquício" o fato da Polícia Militar de São Paulo matar 492 pessoas em nove semanas após os ataques do PCC em São Paulo? O que devemos também questionar é porque os governos democráticos não conseguiram lidar com essa violência e porque parte da sociedade aceita e até incentiva esse tipo de comportamento.

Aliás, alguns até tentaram trabalhar esse problema, mas não tiveram apoio. Recupero trecho de matéria que fiz pra Revista dos Bancários, quando Alckmin ainda era governador, em setembro de 2005:

"Se parte da polícia é historicamente violenta, algumas medidas adotadas pelo governador e por seu secretário de Segurança Pública, Saulo Abreu de Castro Filho, contribuíram para que a situação se agravasse. 'A Polícia Militar age rigorosamente de acordo com o comando. Dados da PM no fim da década de 90 mostram que, a partir do momento em que se adotou o acompanhamento psicológico para policiais que participassem de ações com vítimas, o número de mortes causadas pela famigerada ‘resistência seguida de morte’ caiu vertiginosamente', explica o deputado estadual Ítalo Cardoso (PT), presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa.

O atendimento psicológico a que Cardoso se refere era feito pelo Programa de Acompanhamento de Policiais Militares Envolvidos em Ocorrência de Alto Risco (Proar), criado em 1995 pelo governador Mario Covas. O programa previa seis meses de reciclagem dos policiais que se envolvessem em confronto. A finalidade era combater o estresse causado por esse tipo de situação e diminuir o uso de armas de fogo nas ações. O programa conseguiu avanços em seu primeiro ano, os homicídios praticados por policiais diminuíram de 592 em 1995 para 368 em 1996. No entanto, a forte resistência de diversos setores da corporação e a 'linha dura' adotada pelo governo Alckmin levaram à desativação do programa.

Outro ponto negativo que pode ter contribuído para o aumento nos números da violência policial foi a desestruturação da Comissão de Controle do Índice de Letalidade por Armas de Fogo, um grupo multidisciplinar que, junto com a PM, estabelecia parâmetros para o treinamento e acompanhamento de crimes cometidos com armas de fogo. 'A idéia era combater a concepção de que se atira para matar, mas o governo retirou o apoio oficial a essa iniciativa', lamenta Renato Simões."

Olavo Soares disse...

Nicolau, mas a atenção já não estava chamada com a manifestação em si? Havia mesmo a necessidade de se derramar tinta no chão e causar uma mancha "permanente" num espaço público?

O protesto - justo - transcorreu com sucesso, cumpriu sua função.

Unknown disse...

Forma e conteúdo:

Qual é a forma mais adequada para dizer que a tortura é uma mancha "permanente", que não prescreve?

Como contar de todos esses anos escondendo essa mancha embaixo do tapete? Ou, pior, fazendo de conta que o chão tá limpo? Desviando a vista a cada nova mancha?

Lembram daquele final do filme "Carandiru"? Aquela cena, após o massacre, de muita agua com sabão sendo jogada escadas abaixo... Nem sei se gosto do filme todo. Mas essa cena vale por 4 filmes. Não queremos que as manchas permaneçam. Talvez aqueles jovens do domingo podiam ter usado tinta guache, que sai com água e sabão. Eles fizeram uma escolha. Fizeram questão de dizer, com essa escolha: "meu, isto vocês não vão lavar com água e sabão, é preciso ir fundo".

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

Então, se é pra chamar a atenção, não seria mais eficaz tacar um coquetel molotov na parede pra incendiar a delegacia?

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Vocês pensaram "aí também não, pô", certo? Então, esse é o ponto que quero chegar. Existe a fronteira do "aí também não, pô" que é difícil de ser delimitada. Eu acho que ela foi transposta ao se tentar jogar tinta na calçada - que é um espaço público - ainda mais porque, segundo está no relato do Marcão, todo o restante da manifestação trancorreu em relativa tranquilidade.

Marcão disse...

Eu entendo e respeito todos os argumentos dos comentários, mas concordo com a Silvia Beatriz em gênero, número e grau: a tinta, ato inofensivo e até marginal, como disse o Glauco, serviu como "forma mais adequada para dizer que a tortura é uma mancha 'permanente', que não prescreve". O próprio fato de gerar discordâncias já reforça que o objetivo de chamar a atenção para o assunto tortura x impunidade foi alcançado.

Anônimo disse...

Na real, real mesmo? O brasileiro não reconhece que ouve tortura no Brasil. Não reconhece, não sabe, esqueceu. Essa é a verdadeira mancha, um borrão na memória do brasileiro.
Minha prima veio me visitar no ano passado e me fez sentir orgulho dela. O pai dela foi morto aos 38 anos por um merda de um militar, um pau mandado qualquer. Qualquer pra quem não teve o pai morto, não pra ela. Maria Inês Roque faz parte de um dos movimentos pós ditadura mais importantes da Argentina. Em 2000 o movimento conseguiu fazer com que o mundo reconhecesse que na Argentina houve um genocídio tão horrendo quando no nazismo e prenderam o Cavallo um dos piores torturadores argentinos. Enquanto isso no Brasil os torturadores estão livres criando seus netinhos na santa paz de Deus. Eita falta de memória.