Destaques

quinta-feira, novembro 13, 2008

A ética do vinho

Compartilhe no Twitter
Compartilhe no Facebook

Não são muitas as coisas que me comovem. Uma delas são as crianças. Eu acho incrível o que os pequenos são capazes de fazer com a gente. Pensei nisso quando comecei a ler um livro muito interessante que caiu nas minhas mãos, É Vinho! Naturalmente – Em defesa do vinho orgânico e natural (Boccato e Gaia). O autor, Luciano Percussi, dedicado apreciador por décadas, oferece a obra a seus netinhos Francesca, Chiara e Lorenzo, para que eles “um dia descubram que vinho é cultura”.


Falando assim, parece pouco, mas pense bem, é muito bonito: um avô, preocupado com a formação manguaça de seus netos, não quer vê-los crescendo de qualquer jeito, engolindo qualquer coisa, desperdiçando os dons que a natureza lhes deu de sentir prazer e maravilhar-se com os sentidos numa total (ou quase) indiferença em relação ao que ingerem... Eu, não sendo nenhum especialista em vinho, sinto que ganhei mais instrumentos para apreciar esse líquido sagrado que há milênios reúne as pessoas mais diferentes em fóruns adequados à degustação e ao debate. Coloco este livro ao lado de um filme que vi tempos atrás.

Percussi é bem minucioso. Aborda cada aspecto que pode ser de interesse a um principiante para adentrar essa incrível diversidade que é o mundo do vinho. A história, o plantio da uva, a vinificação, o tempo de cada coisa, a degustação. Seu texto é cheio de metáforas, como quando explica o trabalho de um enólogo comparando-o ao de um treinador de pugilismo: “A cada [atleta] dará um tratamento específico para que, dentro dos limites de cada categoria, possam tornar-se os melhores. Com o vinho acontece o mesmo. Os tempos e as temperaturas serão diferentes para cada tipo de vinho.”

O livro tem mesmo o sabor de uma boa história de avô. E é ilustrado por fotos belíssimas. Devo registrar aqui uma ressalva quanto à revisão; esta deixa muito a desejar, a obra merecia um maior cuidado neste quesito tão importante.

Parênteses ético

Peço licença para um parênteses, pois é de valores que se trata quando nos preocupamos em como os manguaças do amanhã vão apreciar seus bebes. Lembrei de uma passagem do perfil do Daniel Dantas, publicado pela revista Piauí, em que o banqueiro faz uma interessantíssima colocação sobre o vinho. O interesse está na síntese de como funciona a cabeça de um banqueiro. Cito aqui o trecho:

“Outro dia, num restaurante, insistiram que eu tomasse um vinho caríssimo”, disse. “Argumentei que seria um desperdício oferecerem um vinho daqueles a uma pessoa que não tinha paladar apurado para apreciá-lo. Aí, me sugeriram aprimorar o paladar.” Fez uma pausa e massageou a testa, parecendo refletir sobre o assunto. “Acho uma aporrinhação esse negócio de aprimorar paladar. Se consigo gostar de um vinho que encontro em qualquer lugar, porque vou arrumar meu paladar e só ter prazer quando tomar uma coisa rara, de altíssima qualidade? É um contra-senso. É muito mais fácil gostar de qualquer coisa. Depois, eu teria que comprar uma adega climatizada, e aí acabaria a luz, e tudo viraria um inferno.”

A lógica é perfeita, só que dentro de uma ética de resultados, que parece ser cada vez mais hegemônica, apesar da resistência de não poucos. Não estou defendendo os “vinhos caríssimos”, apenas quero clarificar um pouco o que é esse “contra-senso” na avaliação de Dantas. É a mesma lógica que inspira o Dunga a acreditar que o importante é ganhar a qualquer custo, jogando de qualquer jeito (e mesmo assim não ganha). Apreciar o bom futebol exige dedicação, não aceitar qualquer coisa, entender os lances e movimentos fundamentais que passam despercebidos e, também, perdoar o craque que arrisca o lance de arte e eventualmente perde uma jogada. Quem tem a qualidade como valor não se impressiona com firulas, coisas vistosas e sem densidade, sem sentido, mas também não pode suportar “qualquer coisa” que lhe dê um retorno quantificável. Assim é com a música, a literatura, o cinema e o vinho, entre tantas outras coisas.

Retomando, entendo a mensagem que Percussi lega aos netinhos de que “vinho é cultura” desse jeito: o vinho não é só uma bebida que agrada e embebeda, é um universo, exige conhecimento, dedicação para apurar o paladar e entender tudo o que está implicado ali. E, finalmente, tudo isso não serve para nada. É assim com tudo o que temos de mais precioso, não dá para submeter a nenhum critério de eficácia. É o campo da qualidade, do amor às coisas e às pessoas, do sabor singular e intraduzível, do valor em si.

Para quem se interessou, hoje, quinta-feira, 13 de novembro, vai ter uma sessão de autógrafos na Livraria Cultura (Loja de Artes, avenida Paulista, Conjunto Nacional), das 19h às 21h30.
PS: Não cheguei a mencionar a defesa que o autor faz das práticas orgânicas e biodinâmicas na produção do vinho. Mais um ponto para a ética!

10 comentários:

Glauco disse...

Mauricio está se tornando o escritor do vinho do Futepoca, muito bom! Só falta pagar umas garrafas pros irmãos. Legal que haja publicações que resguardem o quanto de história, tradição e envolvimento de gerações um produto como o vinho possui. Em geral, a voracidade do capital esconde ou não considera nada disso...

Só discordo em relação ao Dunga. Ele quer ganhar e o "futebol bonito" está abaixo disso sim, mas isso acontece com Luxemburgo, Muricy e o treinador do time infantil de qualquer clube daqui. Pra polemizar com os saudosistas, era assim até pro Telê (pronto, falei).

Nicolau disse...

Bravo, Maurício! Belo texto e parecer se um belo livro. Lembrou a questão do tempo que a Maria Rita Khel colocou num post do Mracão um tempo atrás. O capitalismo não nos permite o tempo necessário para apreciar essas coisas, viajar nas coisas que gostamos. Claro que no caso dos vinhos há a questão do dinheiro, mas mesmo em outras coisas menos caras, como talvez filmes e livros (consideradas as bibliotecas), é cada vez mais difícil ter o tempo de estudar o assunto.
Por fim, chamo atenção para o Maurício oferecendo seus préstimos para a editora: "Devo registrar aqui uma ressalva quanto à revisão; esta deixa muito a desejar, a obra merecia um maior cuidado neste quesito tão importante."

Anselmo disse...

Quero apontar umas questões meio concordando, meio disconcordando.

1) Não só de vinhos vivem os etílicos orgânicos. As cachaças sem agrotóxicos também estão em alta.

2) Assim como Daniel Dantas, Marcio Thomaz Bastos, ex-ministro da Justiça, tem visão muito, mas muito parecida com a do banqueiro. Em uma entrevista à revista Serafina, da Folha, o adevogado dizia que não gastava mais de 100 em uma garrafa, por não ter paladar apurado para isso. Não achei o link pra entrevista.

3) Não sei em que medida as posições dessa turma são reais ou são onda, pra dar ar de simplicidade. capaz que seja mesmo. Mas tem um dado de ser "do contra". Beber vinho, ter adega climatizada etc. está inegavelmente na moda em certos universos de executivos e novos-ricos (em outros universos, talvez mais do que moda, seja regra há muito tempo, claro). Dizer que não paga caro numa garrafa também quer dizer que a pessoa não se entusiasma com esse modismo. Como se gostar de vinho bom restringisse a pessoa a alguém que o faz apenas por ser ou não moda. Mas não dá pra dizer que "quem não gosta de vinho caro, bom sujeito não é". O DD e o Thomaz Bastos não disseram que não gostam de vinho, mas que não têm paladar apurado para apreciar todas as gamas e nuances da arte. No caso do banqueiro, ele não quer apurar. O ex-ministro deu a entender que não conseguiu, talvez por falta de tempo. A pertinência de se valorizar o que não é produtivo é muito pertinente. Mas só quis relativizar... Além do que, o barato pra essa turma não é nem São Tomé nem Sangue de Boi.

4) Nesse inverno que passou, mais do que em qualquer outro, eu bebi vinho. Consegui aprender a diferenciar alguns detalhes e tal. Mas eu continuo decidido a não gastar mta grana com a bebida (a garrafa mais cara que comprei custou 50 pilas na Casa Flora, e foi pra dar de presente). Tem um certo nível que eu realmente não consigo diferenciar. É uma sensação curiosa, de perceber que tem alguma coisa ali que eu não consigo entender. Quem quiser que teorize a sensação. O fato é que é limitação. Eu acho que um dia eu chego lá (se alguém quiser patrocinar essa incursão, eu topo). Assim, eu acho que não vale a pena gastar grana em um troço que eu não vou apreciar. E outra: se eu não levar a mega-sena, é bem provável que eu passe a vida sem gastar mto em uma só garrafa de vinho.

5) Boa dica de livro.

Maurício Ayer disse...

Concordo, Glauco, Dunga é apenas exemplar, mas longe de ser único.

E repilo esse tipo de acusação do Nivaldo. Escrevi em defesa dos fundamentos da profissão, não em benefício próprio ou com qualquer intenção propagandística.

Olavo Soares disse...

"um avô, preocupado com a formação manguaça de seus netos..."

Essa frase me arrancou sinceras risadas aqui.

Mauricio, escreva mais vezes, pô.

Maurício Ayer disse...

Muito bem relativizado, Anselmo. Mas a questão que eu coloquei não é tanto se o vinho que o Dantas toma é bom ou não, mas sim o modo como ele pensa.
Vou citar um outro exemplo, nada a ver, mas tudo a ver. Em Ubatuba, tem uma aldeia guarani. Minha mãe sendo antropóloga numa ONG indigenista, realizava uns projetos lá com eles e eu, freqüentando a aldeia criei amizade com um índio, por sinal meu xará Maurício. É músico muito bom, e produz instrumentos, principalmente tambores e rabecas.
Certa vez, fui lá visitar o Maurício e sua família e ele estava esculpindo um pedaço de madeira com um formão. Aquilo ia virar uma rabeca. Sabia que ele tinha esse plano, mas ele demorou bastante pra começar. Eu pensava que era por alguma razão qualquer, mas aí ele me explicou. "Encontrei a madeira certa", e me mostrou. Era um tronco de canela, não a que veio da china, mas uma que dá na mata atlântica (não sei se é exótica e hoje está aclimatada, mas o fato é que ele retirou dali). A madeira tinha um perfume marcante, e uma cor avermelhada, muito bonita também.
Ele procurou essa madeira por meses, observando e pesquisando a mata.
A rabeca por fim ficou um belo instrumento rústico, com um bom som, sem dúvida. De tocar violão, sei que a madeira pode levar alguns anos para dar o seu melhor som, e Maurício me confirmou.
Quer dizer, a música meu amigo toca nas diárias cerimônias guaranis, que envolvem sempre muito canto, acompanhado de rabeca, violão e tambores, e dança, essa música que encanta a quem passa por lá, o cheiro e a cor da madeira também fazem parte dela. E aqui não tem nada a ver com dinheiro. É realmente um cuidado com os detalhes, com o que está além de simplesmente executar o que tem que ser feito.
Para mim, este cuidado do Maurício é muito correspondente à dedicação que leva um compositor de música eletroacústica passar meses dentro de um estúdio gravando, transformando e editando sons, para gerar uma música densa, que muita gente vai identificar apenas como barulho e com a qual ele provavelmente não vai ganhar um único centavo. A experiência de ouvir tudo o que está ali, toda aquela complexidade que exige aprimoramento da percepção mesma, vale.
Assim, é claro que vinho custa dinheiro, e que só quem pode consumir e aprimorar paladar é quem tem grana etc. etc. Eu mesmo consumo os vinhos que posso e dificilmente aprimorarei meu paladar para o vinho, como pude aprimorar meu ouvido para música ou minha imaginação para a literatura.
O próprio autor do livro parece que é um industrial, deve ser cheio da grana, que viaja o mundo buscando novas referências sobre vinho.
Mas este não é o tema e sim a lógica do "é muito mais fácil gostar de qualquer coisa", tão bem pronunciada na voz de um banqueiro como Daniel Dantas.

Marcão disse...

Eu insisto na cerveja pelo prazer de conversar com os amigos no bar, pelo calor que às vezes nos assola e pelo hábito arraigado. Mas, se tivesse grana e existissem bares servindo vinho a preços módicos (como na Argentina e no Chile), eu mudaria de bebida com todo o prazer - o José Dumont observou isso, outro dia, em entrevista para o Futepoca.

Conheço muita gente que está priorizando o vinho. Em casa, geralmente, é minha bebida mais comum. Acho que tem a ver com o que o autor do livro tenta passar e o Maurício muito bem traduz: é uma cultura da convivência, do bem viver, do refletir, do sentir-se bem.

O azeite (do bom), o alho, a pimenta, o queijo e o vinho são componentes essenciais na minha existência.

Nicolau disse...

Então, eu concordo, como já disse, com a defesa do Maurício da apreciação de coisas complexas e boas simplesmente porque são complexas e boas. Nesse sentido, acho legal a galera pirar em vinhos, discutir a safra e coisa e tal (sem se tornar mala, o que muitas vezes rola). Mas também defendo com unhas e dentes o prazer da cerveja gelada com a galera. Pode ser que o líquido em si não sejadoa mais complexos, mas os papos, as histórias, as situações humanas que vemos, conhecemos ou vivemos em botecos são também riquíssimos. Bom, de qualquer forma, acho que estou pregando para convertidos, hehe!

Anselmo disse...

concordo, Maurício. Você tem toda razão de criticar a opção pelo gostar de qualquer coisa, como se a diferença fosse só o dinheiro.

Defendo que todo mundo deve ter o direito de aprimorar seu paladar, apurar a audição para música, desenvolver a imaginação para literatura etc. Direito mesmo.

Como não é assim, a ponderação da grana vale a pena.

o que apontei sobre o DD é que o "gostar de qualquer coisa", vindo de um banqueiro, não é exatamente qualquer coisa mesmo. E outra: ele criou (não sei dizer se é fato ou se é só personagem) uma aura de figura simples, que não gosta de gastar muito em roupas, sapatos e restaurantes. Mas é gastar pouco pros padrões ricaços. Enfim...

Esse modismo do vinho a que me referi no Brasil tem, na minha visão, a ver com o longo período de dólar relativamente baixo em relação ao real. A moda de fumar charuto também tem a ver com isso (só que em menor escala).

Tem certos nichos em que as pessoas não se preocuparam em apurar o paladar para perceber as nuances do vinho, mas fazem questão de pagar caro numa garrafa daquela safra (aquela) que leu em algum lugar, ou fumar um Cohiba pelo status que isso lhe proporciona. No fundo, o que se assume no "gostar de qualquer coisa" e o que faz pelo status parecem ter comportamentos diferentes a partir de uma visão talvez muito parecida sobre o mundo.

Mas isso é especulação.

Maurício Ayer disse...

claro, anselmo, acho que suas ponderações complementam com um outro aspecto aquilo que eu coloco. o que me interessou na postura de dantas é o conteúdo ideológico da fala. ele poderia justificar sua escolha de várias maneiras, mas opta por essa aí. mas eu não acredito que, mesmo com muita investigação, chegue a ver dantas tomando chapinha ou maravilha de são roque.