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Morreu neste domingo talvez o maior goleiro da história do Brasil, certamente um dos maiores do mundo, único arqueiro bicampeão mundial como titular por uma seleção. Gylmar do Santos Neves, 83 anos completados no último dia 22 de agosto, não resistiu a um infarto e uma infecção urinária que debilitaram o seu estado de saúde já frágil. Com parte do corpo
paralisado e dificuldades de fala desde um derrame cerebral ocorrido
em junho de 2000, Gilmar estava internado no Hospital Sírio Libanês desde 8 de agosto. Deixa uma vida e uma trajetória repletas de feitos e títulos.
O blogue
Tardes
de Pacaembu lembra o início da trajetória do ídolo, nascido em
22 de agosto de 1930 em Santos. Em sua terra natal, jogou no time de
várzea Vila Hayden FC quando jovem e, sem poder treinar no time do
Peixe por conta de outros goleiros que estavam lá à época, foi
atuar no Portuários, time amador da Companhia Docas de Santos.
Arnaldo de Oliveira, o Papa, trabalhava no Jabaquara e chamou o
arqueiro para fazer testes na equipe. Aprovado nos testes, começou
entre os aspirantes em 1947 e, em 1950, estreou no time titular em
função de uma contusão do titular Mauro. Mesmo com a goleada
sofrida contra o São Paulo, 5 a 1, o goleiro agradou.
Boa parte da história
de Gilmar pode ser conferida no belo livro
Goleiros
(Alameda Editorial), de
Paulo Guilherme. Uma de suas maiores inspirações foi o palmeirense
Oberdan Cattani. Quando ainda atuava no Jabaquara, em 1951, em uma
vitória palmeirense por 2 a 0 sobre o time da Caneleira (então era
do Macuco, bairro onde nasceu Gilmar), o ídolo palestrino atravessou
o campo para cumprimentá-lo e profetizar: “Muito bem, garoto.
Continue assim que você vai vencer”.
Sendo o goleiro menos
vazado daquele ano, foi contratado como contrapeso pelo Corinthians
na negociação que levou o meia Ciciá ao Parque São Jorge. Tendo
acima dele Bino e Cabeção, revezava na posição de titular com o
segundo quando veio um jogo em que o Timão foi derrotado por 7 a 3
pela Portuguesa, em novembro de 1951. Acusaram-no de ter amolecido e
acabou afastado por seis meses. Só voltou em 1952, quanto atuou em
uma excursão do time na Turquia, se destacando com grandes
apresentações. Contra a seleção da Dinamarca, defendeu três
pênaltis, um feito, como lembra Odir Cunha no livro
Times
dos Sonhos (Códex).
A trajetória
brilhante, mas conturbada, de Gilmar no Corinthians ainda envolveria
uma contusão em outubro de 1953 que o afastou dos gramados por 8
meses, tirando suas chances de ir à Copa de 1954. Àquela altura, já
havia sido convocado para a seleção pela primeira vez, jogando
contra a Bolívia pela Copa América e chegando a defender um
pênalti.
Ao se recuperar, havia
outro treinador no Parque São Jorge. Oswaldo Brandão tinha sido
justamente o técnico luso naquele 7 a 3 e o jogo seguinte era contra
a Portuguesa. Cabeção foi sacado da equipe e pediu para ir embora,
com Gilmar se firmando após aquela “revanche” contra a Lusa e
sendo um dos melhores jogadores da conquista corintiana do campeonato
paulista de 1954, do IV Centenário. Assumiu como arqueiro titular da
seleção em 1956, colocando na reserva Castilho, que havia sucedido
Barbosa. E reconhecia, em entrevista ao Jornal da Tarde no ano
de 1987, passagem retratada em Goleiros, a ajuda do colega que
ficou como suplente. “Eu nunca conheci um jogador de tão bom
caráter. Castilho não demonstrou o menor recalque da reserva. Ao
contrário, sempre me orientou, tratando-me com toda a dignidade.” Diferente de muitos ídolos do mundo da bola, Gilmar sempre foi
humilde e sabia reconhecer méritos de colegas e rivais.
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Gilmar afaga o emocionado garoto Pelé, após o título de 1958 |
Herói brasileiro como
o primeiro goleiro campeão mundial em 1958, Gilmar inspirou toda uma
geração de “Gilmares”, já que diversos pais
resolveram batizar seus filhos com seu nome, ainda que o seu seja
grafado com “y” na certidão de nascimento. Outro goleiro de seleção, o
hoje empresário Gilmar Rinaldi, ex-Flamengo, São Paulo e outros,
foi batizado assim em janeiro de 1959 justamente por conta do então
arqueiro corintiano.
Gilmar no time dos
sonhos
Com o início do jejum
de títulos corintiano, vários jogadores foram pressionados no
clube. Gilmar foi um deles. Após ficar fora de algumas partidas por
conta de uma lesão no braço, com o médico do clube dizendo que se
tratava de “corpo mole”, o goleiro caiu de mau jeito em um treino
e, sem camisa, foi mostrar o braço inchado ao presidente do clube,
Wadih Helou. “Olha aqui o corpo mole. Mas não se preocupe que eu
vou operar por conta própria”, disse, segundo o livro Goleiros.
Assim o fez, e o clube
negociou Gilmar em 1962. De acordo com o Almanaque do Corinthians,
de Celso Unzelte, foram 395 jogos dele entre 1951 e 1961, 243
vitórias, 75 empates e 77 derrotas. O clube brasileiro interessado
no arqueiro era o Santos, que não tinha recursos para contratá-lo,
mas conseguiu um empréstimo da Federação Paulista de Futebol e uma
doação do empresário José Ermírio de Moraes, como destaca o
livro Time dos Sonhos. Gilmar não levou nada na negociação
e recusou outro convite de time campeão para ir à Vila.
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Gilmar, trajetória vitoriosa no Peixe |
“O Peñarol ofereceu
uns 12 milhões para o Corinthians, mais uma fortuna na minha mão,
mas resolvi não ir. Não queria dar mais nenhum tostão para o
Corinthians. Eles me judiaram demais”, disse. “No Santos,
recuperei a alegria de jogar. Me senti rejuvenescido”, admitiu em
depoimento ao Museu da Imagem e do Som de São Paulo. Substituiu
Agenor Gomes, Manga, campeão paulista de 1955, 1956 e 1958, e
estreou em 7 de janeiro,
na
goleada contra o Barcelona de Guayaquil, amistoso disputado no
Equador, um 6 a 2 com Coutinho marcando quatro gols e Zito e Pepe um
cada. Na partida, revezou posição com Laércio. Naquele ano, foi
campeão mundial duas vezes como jogador santista. Pela seleção, na
Copa do Mundo do Chile, e pelo Peixe, no estádio da Luz, contra o
Benfica.
Foi na Copa de 1962,
aliás, que Gilmar fez a defesa que considerava a mais importante da
sua vida. Na última partida da primeira fase, contra a Espanha, os
rivais venciam por 1 a 0 na metade do segundo tempo quando Gento, do
mítico Real Madri, avançou pela esquerda e cruzou para Puskas, que
disputou a bola com Mauro. O goleiro se antecipou aos dois e tirou a
pelota, caindo após o choque triplo. No rebote, Peiró chutou de
primeira, com força, para um gol aparentemente vazio. Mas Gilmar se
desvencilhou do zagueiro e do atacante rival e defendeu o petardo.
“Para se ter uma ideia, foi uma jogada tão importante que os
próprios espanhóis justificaram sua eliminação naquela defesa”,
disse. O Brasil venceu de virada por 2 a 1.
No Alvinegro Praiano,
formou com outros craques o time considerado por muitos o
maior detodos os tempos e colecionou uma série de títulos. Em uma de suas
partidas mais famosas, brilhou
na final da Libertadores de 1963contra o Boca Juniors, assegurando a épica vitória santista na
Bombonera por 2 a 1. “Era a pedra de segurança de uma equipe que
encantava o mundo, me fascinava”, como conta Antero Greco nesse
post.
O tal tempo, implacável
até com os maiores, também chegou para Gilmar. Em 1966, não foi
bem nas finais da Taça Brasil contra o Cruzeiro, sofrendo seis gols
na primeira partida. Na Copa do Mundo, com dores no joelho, atuou no jogo de estreia contra a Bulgária e contra a Hungria,
sendo sacado para a entrada de Aílton Corrêa Arruda, Manga, na
peleja contra Portugal.
No Santos, foi campeão mundial (1962/1963), da
Libertadores (1962/1963), brasileiro (1962/1963/1964/1965/1968), do
Torneio Rio-São Paulo (1963/1964/1966), paulista
(1962/1964/1965/1967/1968), da Recopa Sul-Americana (1968) e da
Recopa Mundial (1968). Sua última participação no time foi no dia
5 de outubro de1969, em uma derrota contra o Cruzeiro por 3 a 2,
partida válida pelo Torneio Roberto Gomes Pedrosa, no Morumbi. Pelo
Peixe, foram 330 partidas, o que faz de Gilmar o quarto arqueiro que
mais vestiu a camisa alvinegra, mas, para muitos, foi o maior dentre
todos.
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Lendas: Yashin e Gilmar |
Despediu-se da seleção em em 12 de junho de
1969, aos 39 anos, dois meses e 20 dias, um amistoso com a Inglaterra
no qual se tornou o goleiro mais velho a vestir a camisa canarinha.
Fez 103 jogos pelo Brasil, sendo o terceiro goleiro com mais partidas
pela equipe (fica atrás de Taffarel, 108, e Leão, 107) com 104 gols
sofridos. Foi eleito pela revista francesa
Paris Match como o
melhor goleiro da história e um contemporâneo seu, o lendário Lev
Yashin, o Aranha Negra, também o tinha como o melhor de todos os
tempos.
Talvez por aguardar a
Gazeta Esportiva na segunda-feira só pra ver as fotos de
Oberdan, Gilmar fez da elegância uma marca. Suas famosas pontes,
plásticas, são lembradas com saudades por aqueles que o viram jogar
e viraram uma grife sua, influenciando gerações que vieram depois.
De novo é Antero Greco
quem
o define à frente daquele Santos dos anos 1960. “Lembro de
Gilmar todo de preto, cotovelos e laterais do calção acolchoados.
Uma segurança extraordinária no gol de um time temível, que rodava
o mundo deixando rivais felizes e honrados com as surras que levavam.
Lá atrás, estava o grande Gilmar, que crescia, ficava enorme na
frente dos atacantes, e parecia não fazer força nenhuma na hora de
defesas memoráveis.”
Vai mais um herói do
tempo em que nós, brasileiros, no futebol, éramos reis.