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A canção popular reflete e respalda valores sociais de todas as naturezas. Assim acontece com questões de gênero. Em tempos de MC Katra, de sertanejos universitários que, se te pegam, ai, delícia, é curioso fazer um mergulho histórico na música brasileira e encontrar peças de um sexismo medieval estampado em cores vivas.
Diversas listas já foram feitas. A História Sexual da MPB virou até livro - e vai muito além desse aspecto, mas as questões de gênero são complicadas no universo musical desde antes do tempo do Estado Novo.
Às vésperas do Dia Internacional da Mulher, um ano depois da polêmica sobre a lei antibaixaria na Bahia que pretendia proibir exibições públicas custeadas com dinheiro público que incluam músicas machistas, separamos algumas das acusadas, com ou sem razão, de propalarem ideias machistas.
Machismos escondidos em cenas de ciúmes e arroubos de possessividade masculina ficaram para outro post. Nas selecionadas, seja por retratar, seja por difundir esse tipo de concepção (em geral, o ouvinte é quem "decide" em qual das hipóteses enquadrar), elas são clássicas. Mas talvez não possam ser executadas em qualquer show na terra de Jacques Wagner e ACM Neto...
Gol anulado
"Gol Anulado", de João Bosco e Aldir Blanc começa com uma cena que, hoje, poderia ser enquadrada na Lei Maria da Penha. "Quando você gritou 'Mengo', no segundo gol do Zico tirei sem pensar o cinto e bati até cansar". A confissão sem remorso da agressão é seguida de uma explicação que, longe de querer excusar a violência, só tenta explicar as razões para tanta decepção. "Dois anos vivendo juntos, e sempre disse contente: 'Minha preta é uma rainha, porque não tem o batente. Se garante na cozinha e ainda é Vasco doente'". Além de não poder trabalhar, a mulher teria de se anular até na preferência clubística... Cantada por Elis Regina a história soa toda outra. Mas a cena de violência é a mesma.
Na subida do morro
Agressão também é descrita, em condição ainda mais inusitada, em "Na subida do morro", de Moreira da Silva. Nesse percurso, "me contaram que você bateu na minha nega, e isto não é direito: bater em uma mulher que não é sua". Strito sensu, se agredir uma mulher é crime, bater em uma "mulher que não é sua" certo não é. Mas a composição faz graça ao deixar no ar que tapas e sopapos na própria senhora seriam outro departamento. O malandro admite uma biografia cheia de malícia, sai para tirar a satisfação com o "amigo" que "deixou a nega quase nua". Por tudo isso, fica na lista.
Ai Que Saudades da Amélia
No Dicionário Aurélio, Amélia se tornou sinônimo de "mulher que aceita toda sorte de privações e vexames sem reclamar, por amor a seu homem". No Houaiss, "mulher amorosa, passiva e serviçal".
Considerando-se que "Adeus Amélia" é nome de bloco de pré-carnaval em São Paulo, está claro que "Ai Que Saudades da Amélia", de Mário Lago e Ataulfo Alves, não poderia figurar fora desta lista. Aquela que não tinha a menor vaidade, que passava fome ao meu lado e achava bonito não ter o que comer; que, ao contrário da atual parceira e interlocutora, não tinha saltada a veia consumista nem cobrava mundos e fundos do pobre rapaz...
A questão poderia dar-se por consagrada por maioria de votos, mas segundo uma singela e curiosa nota de 2001, a homenageada era Amélia dos Santos Ferreira, lavadeira de Almeidinha, irmão de Araci de Almeida. Consta que tinha dotes de cozinheira, arrumadeira e outras que tais, tudo sem achar ruim, e ganhando pouco. "Na brincadeira na roda de amigos do Café Ópera, no centro do Rio, vaticinou-se: tão perfeita, não poderia ser de verdade", segundo outra nota. Da empregada ultraexplorada para a desfeita com a namorada (ou esposa) foi liberalidade dos compositores.
Anos depois, Mario Lago disse que "todos nós somos Amélia ou Amélio", especialmente "quando se está apaixonado, sendo homem ou mulher, se aceita tudo, não se faz exigência". Mas a fama foi toda para a conta do machismo.
Emília
De Wilson Batista e Haroldo Lobo, "Emília" é muito mais subserviente do que Amélia, mas passou ao largo de virar adjetivo no dicionário. Sem poder viver sem a moça que lhe preparava café todo dia e era prendada nos afazeres do lar, escapava a informação de que ela já não estava mais lá, porque a letra diz que sem Emília "já não posso mais".
Mas, ao pedirem, em 1940, a Papai do Céu "uma mulher que saiba lavar e cozinhar, que de manhã cedo me acorde na hora de trabalhar", talvez não imaginassem que ganhariam resposta, bem menos popular e conhecida. "Loucas pela boemia", de Bide e Marçal, do ano seguinte, saiu-se com "Emília diz que não é mais a mesma" e que "Emília enlouqueceu", porque "diz que vai viver sambando" e "saiu gritando: quem não pode mais sou eu".
Mulheres de Atenas
Provavelmente a mais injustamente acusada de machismo é um líbelo feminista. De Chico Buarque, o rei do eu-lírico feminino, e Augusto Boal - criador do Teatro do Oprimido -, Mulheres de Atenas data de 1976, como trilha sonora de peça homônima para o teatro. Consta que o próprio Chico Buarque, em uma entrevista à TV Cultura, teve de explicar a ironia: "Eu disse: mirem-se no exemplo daquelas mulheres que vocês vão ver o que vai dar. A coisa é exatamente ao contrário". (Venhamos e convenhamos que a camisa florida e aberta da gravação de 1976, abaixo, não ajuda a demover a ideia...)
Com açúcar, com afeto
Já que Chico Buarque foi para o alvo, outra acusada com frequência é "Com açúcar, com afeto", composta a pedido de Nara Leão. Segundo o compositor, a intérprete pediu uma "música sobre uma mulher daquelas, daquelas que esperam". Recebeu nos conformes. Uma das cenas descritas até coincide com a canção listada anteriormente. O mau-caráter enrola a esposa dizendo que tem que trabalhar duro, para no bar, canta samba, passa a tarde olhando rabos de saia, fala de futebol e chega em casa naquele estado:
Quando a noite enfim lhe cansa, você vem feito criança
Pra chorar o meu perdão, qual o quê!
Diz pra eu não ficar sentida, diz que vai mudar de vida
Pra agradar meu coraçãoE ao lhe ver assim cansado, maltrapilho e maltratadoAinda quis me aborrecer? Qual o quê!
Mulher e amor de malandro
Há diferentes composições com esse título. Na de 1932, de Heitor dos Prazeres, a "Mulher de malandro sabe ser carinhosa de verdade", porque "quando mais apanha, a ele tem amizade". É fato, admite a composição, que "ela briga com o malandro" e, "enraivecida, manda ele andar". Mas logo "ela sente saudade e vai procurar", porque "sempre apanhando e se lastimando, perto do malandro, (ela) se sente bem".
Por outro lado, gravado em 1980, a "Mulher de Malandro" de Geraldo Filme, mostra um pedido do trabalhador negro que, sem emprego e temendo o fiscal da prefeitura, desiste; decide ir embora. E pede à parceira que aguente, porque "mulher de malando não chora".
De outro monstro do samba, Ismael Silva, em coautoria com Francisco Alves e Freire Júnior, "Amor Malandro" estampa logo: "Se ele te bate é porque gosta de ti, pois bater em quem não se gosta eu nunca vi".