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segunda-feira, maio 25, 2009

Embebede-se!

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Bernardo Soares é um dos heterônimos do escritor português Fernando Pessoa (os outros são Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Miguel Campos). Porém, o próprio autor o considerava um "semi-heterónimo", ao explicar que "não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e afetividade". Como Soares, Pessoa escreveu o "Livro do Desassossego", considerado uma das maiores obras da ficção portuguesa no século passado. Bernardo Soares é, dentro da ficção de seu próprio livro, um simples ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa. E recomenda:

"Se um homem escreve bem só quando está bêbado, dir-lhe-ei: embebede-se. E se ele me disser que seu fígado sofre com isso, respondo: o que é o seu fígado? é uma coisa morta que vive enquanto você vive, e os poemas que escrever vivem sem enquanto".

O escritor (ou "os escritores") bebendo vinho em Lisboa, na década de 1920; no verso, por também gostar de um belo trocadalho, ele escreveu a seguinte dedicatória à amada Ofélia Queiroz: "Fernando Pessoa em flagrante deLitro"

sábado, maio 16, 2009

Em busca do marafo perdido - Capítulo 8

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MARCÃO PALHARES

Naquele sábado o programa era certo: filar cerveja de graça, como bicões, na festa de uma aluna do curso de Turismo. A perspectiva da bebedeira deixou os cinco manguaças eufóricos, tanto que, às duas e meia da tarde, já tava todo mundo encachaçado de caipirinha de vodka. Mas tudo tem seu método. Lá pelas quatro horas, cada um tomou um rumo diferente, com a promessa de se encontrarem lá na casa da "vítima", onde haveria a festa. Um dos bêbados preferiu comportar-se. Foi até a casa da namorada, tomou um café amargo, um banho bem demorado e botou uma beca decente. Outros dois ainda tentaram comer alguma coisa numa padaria, mas a iniciativa descambou em mais bebedeira. Teve um que entrou num supermercado e se perdeu. E o último, que tentava atravessar uma pinguela, desabou dentro de um córrego fedorento. Porém, não se sabe como, todos os cinco se encontraram no ponto marcado.

Os primeiros que chegaram foram os da padaria. Eram sete da noite e a festa estava programada para começar às nove. A dona da casa e o namorado dividiam um miojo na cozinha quando, no corredor do jardim, apontaram aquelas duas cabeças cambaleantes. Sem saber o que fazer (e com medo de tentar expulsá-los), a moça abriu uma garrafa de Contini, ligou o som no quintal e deixou os cachaceiros dançando e rindo sozinhos. A dócil anfitriã nem imaginava o que ia virar aquilo... Não deu meia hora e apareceu o que tinha caído no riacho. Desgrenhado, sujo e fedido, ele se uniu aos outros dois no quintal, que já avançavam sobre um litro de Velho Barreiro. Nisso, apareceram alguns convidados "normais" e começaram a incentivar a palhaçada dos bêbados. A dona da festa viu que o problema poderia se tornar uma atração e esqueceu deles. Mas tinha mais: o tal que havia se perdido no supermercado conseguiu chegar, com dois garrafões de Sangue de Boi suave.

Às nove da noite, cerca de 90 pessoas já transbordavam pelos diversos cômodos. A bebedeira coletiva perdeu o controle. O último dos manguaças apareceu com a namorada e se juntou aos companheiros. Ou melhor, tentou se juntar, pois já não havia possibilidade de comunicação. Sozinho, num corredor vazio, um dos pinguços dançava sem música. Um outro estava deitado e roncando atrás da estante da sala. E os dois restantes quebravam objetos, gritavam e babavam casa afora. Vendo que ainda estava muito sóbrio (em relação aos demais), o bêbado despistou a namorada e começou a ingerir o que viu pela frente: pinga com leite e erva de Santa Maria, vinho vagabundo, Cinzano, uísque falso, cerveja quente, enfim, o escambau. À meia-noite, foi rebocado para casa no carro da - infeliz - namorada, vomitando pela janela do veículo, para delírio da platéia. No outro dia, aquele que dormia na sala foi enxotado a vassouradas.

Já o que dançava pelo corredor conseguiu pegar uma carona, desembarcou numa ladeira, levou um tombo e quebrou o pé esquerdo. Foi socorrido por populares até o hospital municipal. Outro bebum, que jazia no jardim da casa, acordou com sol alto e caminhou até achar uma praça. Impossibilitado de parar em pé, cavou um buraco, enterrou sua carteira e dormiu no canteiro público. Sobraram dois: um quase foi atropelado e, com raiva, jogou um tijolo no motorista. Foi preso. E o último, ah, o último... Assim que raiou o dia, saiu andando por uma avenida até que ela se transformou em rodovia. No meio da estrada - ou do nada, mais precisamente - se tocou de que não estava caminhando para a cidade. Parou um carro para pedir informações e descobriu que estava quase chegando no município vizinho. De carona em carona, voltou para trás. Mas, extenuado, resolveu deitar numa rua para descansar. Nisso, um mendigo chegou e lhe ofereceu um gole do que ele pensou ser a redentora água. Era pinga. Mas o morador de rua descolou um passe de ônibus para que ele seguisse jornada.

Os cinco manguaças só voltaram a se reunir, no apartamento que dividiam, três dias depois. E nenhum sabia contar com exatidão o que havia acontecido. Dizem as más línguas que eles se lembravam, sim. Mas preferiam esquecer definitivamente o assunto...


(Continua quando o autor estiver sóbrio o suficiente para escrever)

terça-feira, maio 05, 2009

O ébrio e o respeito ao princípio da propriedade

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Em 2008, senti-me sinceramente envergonhado pelo pouco caso do Brasil em relação ao centenário de um de seus filhos mais célebres, o escritor carioca Machado de Assis (foto) - seguramente, um dos maiores da língua portuguesa e da literatura mundial. Fora uma ou outra palestra, exposição ou exibição de obras suas adaptadas para o cinema ou teatro, a data, que merecia justa comoção nacional, passou em lamentáveis e brancas nuvens. Chateado com isso e aproveitando que no próximo 21 de junho completam-se 170 anos de seu nascimento, decidi render minhas próprias homenagens da forma como acredito que Machado mais apreciaria: relendo três de seus livros mais fascinantes, "Memórias póstumas de Brás Cubas", "Quincas Borba" e "Dom Casmurro". O mais interessante em rever esses trabalhos, além do sarcástico bom humor e da absoluta avacalhação do ser humano e dos costumes sociais, é notar que, nas entrelinhas ou em capítulos aparentemente desconexos, o escritor encobriu pepitas que dificilmente encontramos nas primeiras leituras. Uma delas segue abaixo:

"Era uma vez uma choupana que ardia na estrada; a dona - um triste molambo de mulher - chorava o seu desastre, a poucos passos, sentada no chão. Senão quando, indo a passar um homem ébrio, viu o incêndio, viu a mulher, perguntou-lhe se a casa era dela.
- É minha, sim, meu senhor; é tudo o que eu possuía neste mundo.
- Dá-me então licença que acenda ali o meu charuto?
O padre que me contou isto certamente emendou o texto original, não é preciso estar embriagado para acender um charuto nas misérias alheias. Bom Padre Chagas! - Chamava-se Chagas. - Padre mais que bom, que assim me incutiste por muitos anos essa ideia consoladora, de que ninguém, em seu juízo, faz render o mal dos outros; não contando o respeito que aquele bêbado tinha ao princípio da propriedade, a ponto de não acender o charuto sem pedir licença a dona das ruínas. Tudo ideias consoladoras."


(in "Quincas Borba", Capítulo CXVII - Livraria Garnier, 1891)

terça-feira, abril 14, 2009

Em busca do marafo perdido - Capítulo 7

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Festa de metalúrgicos, show do Zé Geraldo. Quatro e quinze da madrugada e eu com o boné azul marinho de uma das duas meninas que havia beijado naquela bebedeira. Ela entrou num Fusca bem velho e abarrotado, com umas oito pessoas. Queria que eu fosse com ela para Nova Odessa, Estiva Gérbi - ou algo semelhante. Declinei. Uma turba de bêbados jorrava pelas escadarias do ginásio de esportes. Ainda não havia ônibus circulando. "Hora de tomar a saideira", pensei. Mas aonde? Como? Sem um puto sequer, completamente embriagado e perdido, o que fazer? Meu cérebro latejava.

Os três companheiros que chegaram comigo ao recinto, no início da noite, haviam desaparecido há horas, cada um com uma mulher. Olhei ao redor: tudo deserto. Nisso, outra moça apareceu, como que por encanto, e me deu um beijo de cinco minutos. Pegou o boné azul marinho e simplesmente sumiu. Fiquei ali, meio aéreo, na mais completa solidão. Para onde ir num horário desses, sozinho? Foi aí que me lembrei do convite para almoçar na casa de uma amiga de faculdade, quase namorada. Não sabia como ir, mas ia.

Andei, andei, andei e, aturdido, percebi que havia contornado o ginásio de esportes e retornado ao mesmo lugar. Decidi que precisava ir para o Norte, como se soubesse onde ele ficava. Andei mais, muito mais. Completamente entorpecido, a boca grudada, as narinas ardendo. O sol nasceu. Me lembro que um ônibus parou e o motorista perguntou para onde eu ia. Respondi que não fazia a mínima ideia e continuei andando, na contramão. Andei mais e cheguei ao bairro onde morava minha amiga.

Oito e meia da manhã - ou coisa do gênero. "A casa tá fechada, todo mundo dormindo", refleti. Reparei que não havia ninguém na rua e me sentei na calçada, escorado no muro. A única opção era aguardar que alguém, na casa da minha amiga, acordasse. "Umas três ou quatro horas de espera", calculei. Bati a mão no bolso: a carteira ainda estava ali. Para não ser assaltado, joguei a dita cuja na varanda da casa, por sobre o muro. Desabei. E dormi o sono mais profundo de todos os 19 anos que tinha vivido até aquele dia.

Acordei com alguém me cutucando. Deitado na calçada, olhei pra cima, contra o sol forte, e vi três ou quatro velhinhos, curiosos e assustados. Dei um pulo e todos se afastaram. Tentei explicar alguma coisa, mas raciocinei (com muita dificuldade) que a minha longa saga etílica só espantaria ainda mais a vizinhança. Inventei qualquer besteira, que havia perdido o ônibus, que tinha passado três dias sem dormir, acompanhando minha tia no hospital, uma lorota dessas. Fingiram que acreditaram. Eu também - e sorri.

Naquele exato momento, a mãe da minha amiga abriu o portão e começou a varrer folhas secas para a rua, junto com a minha carteira. Me abaixei, peguei a dita cuja, botei no bolso e me apresentei: eu era o amigo da filha dela e estava convidado para o almoço. Ela me avaliou de cima abaixo, bem séria, fechou o portão com um cadeado e correu para dentro da casa. Os velhinhos olharam todos para mim, muito tensos e raivosos. Vi um ônibus saindo do ponto final. Consegui correr e alcançá-lo. Sorte de principiante...

(Continua quando o autor estiver sóbrio o suficiente para escrever...)

quarta-feira, abril 01, 2009

A Lei de Murphy no futebol brasileiro

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Como já adiantei nos comentários de alguns posts, estou relendo a trilogia da "Lei de Murphy", publicada pela Editora Record no final do século passado, com tradução e "transubstanciação" de Millôr Fernandes - e ilustrações impagáveis do mestre cachaceiro Jaguar. No meio de tantas pérolas, como "Toda ambiguidade é invariável" (Lei Roberta Cloese), "Confia em todo mundo, mas corta o baralho" (Lei Castor de Andrade), "Toda ordem que pode ser mal interpretada é mal interpretada" (Axioma do Exército) ou "Há dois tipos de pessoas: as que dividem as pessoas em dois tipos e as que não" (Distinção do Sociólogo), encontrei "leis" do futebol brasileiro:

LEI DA CBF
Quando chega a sua vez, mudaram as regras.

LEI TELÊ SANTANA
Nada é mais inevitável quanto um erro que você prevê.

SEGUNDA LEI TELÊ SANTANA
Jogadas perfeitas na teoria não dão certo na prática.
Jogadas perfeitas no treino são as que enterram o time.

LEI ZAGALLO DA RESPONSABILIDADE
Eu ganhei, nós empatamos, eles perderam.

LEI DO VIAJANTE E DO JOGADOR DE SELEÇÃO
Não se consegue fazer nada numa viagem.

SEGUNDA LEI PELÉ
Basta ser popular pra ficar impopular.


Pra mim, a melhor é a explicação filosófica com base no Botafogo-RJ, que hoje é só um amarelão, mas que, na época, era um perdedor predestinado:

LEI BOTAFOGUENSE
Um bom resultado só acontece uma vez.

TEOREMA BOTAFOGUENSE
1 – Você não pode ganhar;
2 – Você não pode empatar;
3 – Você não pode nem largar o jogo.

PRESUNÇÃO BOTAFOGUENSE
Toda filosofia que procura dar alguma significação à vida é baseada na negação de uma parte do Teorema Botafoguense:
1 – O capitalismo é baseado na presunção de que você pode ganhar;
2 – O socialismo é baseado na presunção de que você pode empatar;
3 – O misticismo é baseado na presunção de que você pode largar o jogo.

terça-feira, março 24, 2009

'Sem a cachaça, ninguém segura esse rojão'

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A frase que dá título ao post é um fragmento da canção "Meu caro amigo", que Chico Buarque e Francis Hime endereçaram ao diretor de teatro Augusto Boal em 1976. O trecho completo diz: "Muita mutreta pra levar a situação/ Que a gente vai levando de teimoso e de pirraça/ E a gente vai tomando, que também, sem a cachaça/ Ninguém segura esse rojão". Pois então, desde que tive a feliz (ou infeliz) ideia de me enfiar no jornalismo, uma dúvida cruel, no estilo Tostines, passou a rondar meu cérebro: será que virei jornalista por ser um bêbado ou virei um bêbado por ser jornalista? Perguntas difíceis, mas acho que foi um pouco de cada coisa. Eu já era um bêbado, só que, uma vez no exercício da maldita profissão, meu consumo de álcool subiu à estratosfera (aliás, "maldita" é sinônimo de pinga). Porque, como diz a música, "sem a cachaça ninguém segura esse rojão" - ou "esse patrão" ou "esse cliente" ou "essa pauta entrolhada" ou "esse salário mixo" ou "essa jornada de trabalho 24 horas" ou "essa enganação de leitores" etc etc. Haja mutreta pra levar a situação!

Mas há um outro sentido nisso. Porque o próprio vício de escrever acaba sendo uma espécie de "cachaça". Veja só o exemplo do coletivo de jornalistas aqui do Futepoca: todos se matam de escrever nos seus empregos ou freelances e, na hora de relaxar e descontrair, o que fazem? Escrevem mais ainda, aqui no blogue! Não é coisa de viciado? Ou antes: não é coisa de bêbado? No blogue "Invasão bárbara", Amanda Luz escreve justamente: "Jornalismo é uma cachaça". E descreve: "O jornalista, em geral, não tem horários certos de trabalho, quase não tem férias, vive com a cara no computador". Em outro blogue, "Os olhos da lua", Luana Dias completa: "Confesso que às vezes a rotina é desgastante e eu tenho vontade de mandar tudo às favas, porém, quando percebo, já me embebedei de outra história e estou com vontade de saber qual será a próxima. Um amigo me disse que esta profissão 'é uma cachaça'. Concordo. Eu já estou viciada". E eu também viciei: na escrita e na bebida.

Luana utiliza ainda, como epígrafe, uma frase da genial escritora Clarice Lispector: "Escrever é abençoar uma vida que não foi abençoada". Gostei, tem a ver comigo. Mas acrescento, em relação ao meu trabalho de cada dia (cara de pau para entrevistar qualquer pessoa ou escrever qualquer porcaria, por exemplo), a máxima do médico Willian Osler: "O álcool não faz as pessoas fazerem melhores as coisas; ele faz com que elas fiquem menos envergonhadas de fazê-las mal". É exato. E tá na hora de ir ao buteco tomar mais uma "branquinha" e brindar aos pobres dos (meus) leitores!

sexta-feira, março 06, 2009

Em busca do marafo perdido – Capítulo 5

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MARCÃO PALHARES*

Julieta e Marco Antônio nem desconfiavam, naquele sábado, que seriam assassinados no tanque de lavar roupa. Jovens, saudáveis e simpáticos, brincavam felizes pelo quintal de lajotas alaranjadas. Ou melhor, quase alaranjadas, pois os dois haviam colorido toda a extensão com fezes brancas e esverdeadas. E foi assim que assinaram suas sentenças de morte. Comprados ainda como pintinhos em uma cidade próxima, Julieta e Marco Antônio viveram, de início, numa caixa de papelão. Pertenciam a uma garotinha de dois anos e não davam trabalho. Só piavam, comiam, cagavam e dormiam. Pouco depois, já “adolescentes”, passaram a pular para fora da caixa e a “enfeitar” a casa com suas fezes. Foram banidos. O novo endereço da dupla seria uma casa velha, república de estudantes, onde vivia o pai da menininha.

Ele se encarregou dos jovens frangos, que passaram a morar no quintal, emporcalhando o piso. Um dia, pressionado pelos companheiros (que não suportavam mais o cheiro e a sujeira), consentiu, muito a contragosto, o abate. Que aconteceu naquele sábado, no tanque. Julieta capitulou sem um “có” sequer. Marco Antônio não: decapitado, bateu asas e mergulhou em uma bacia com roupas de molho em cândida. Cena macabra. Tal gesto, póstumo, o poupou dos “canibais”: por causa da contaminação química, sua carne foi para o lixo. A companheira, porém, não teve o mesmo destino. Cinco minutos depois, Julieta já estava na panela de pressão, enquanto os estudantes tomavam pinga e jogavam baralho no chão da sala. O cheiro da carne nova, recém abatida, prometia um belo ensopado. Mas a maioria dos manguaças não teve paciência e se mandou para o bar antes da comida. Que era muita.

Com dor no coração, o que havia sido responsável pelos frangos comeu sua parte, tampou a panela e a deixou sobre o fogão, crente que os bêbados voltariam esfomeados para limpá-la. Saiu, foi para a casa da namorada e voltou três dias depois. Surpresa desagradável: a panela, cheia, jazia no mesmo lugar, com a carne deteriorada de Julieta. Os pinguços haviam emendado três dias na rua, bebendo, e ninguém tinha voltado para apreciar a carne de frango, que ficou fora da geladeira. Revoltado, o antigo dono dos bichos aguardou que os manguaças voltassem e vociferou: “Não bastasse a judiação de matá-los, ainda deixam estragar mais de um quilo de carne! Vocês é quem vão lavar a panela!”.

Houve discussão, ninguém queria saber da (desagradável) tarefa. Uns diziam que não comeram, outros que não pediram pra fazer o frango, outros ainda que o último a sair deveria ter posto a panela na geladeira. Nesse desacordo total, a comida, tampada, permaneceu por quase um mês sobre o fogão, sem que ninguém tomasse alguma atitude. Com o tempo, como tudo em uma república de estudantes (e de bêbados), virou piada. A panela tornou-se um bibelô, um enfeite, um talismã. Desaparecia e reaparecia nos lugares mais insólitos, como a estante da sala, embaixo da pia ou das camas, pendurada na varanda, abraçada com alguém que dançava etc. Sempre que um incauto se aproximava, todos advertiam seriamente que a tampa da panela nunca deveria ser aberta.

E assim foi, por longos seis meses. Durante as – frequentes – bebedeiras, os estudantes e asseclas elocubravam sobre o que haveria dentro da panela de pressão. Carne? Ossos? Um líquido nauseabundo? Energia nuclear? Um alien? Todos davam palpites e, na embriaguez, muitos ensaiaram abrir o recipiente. Mas ninguém foi tão irresponsável a esse ponto. Assim, a panela continuou perambulando pela casa inteira, por mais dúzias e dúzias de festas, churrascos e celebrações etílicas. Mais tarde, quando já haviam alentado a hipótese de enviar o negócio para uma feira de ciências, a dona do imóvel, cansada de tantas reclamações dos vizinhos, intimou os estudantes a procurar outro lugar para morar. E agora? O que fazer com a panela?

No teto de madeira da cozinha havia um alçapão. Um dos manguaças subiu na geladeira, abriu essa entrada e empurrou a panela para o forro - local empoeirado, cheio de fios elétricos e abafado pelo calor das telhas. Nos dois anos seguintes, o assunto rondou os encontros daqueles bêbados: “O que terá acontecido com aquilo? Será que alguém encontrou? Terá explodido?”. Coube ao que havia sido responsável pelos frangos a última notícia sobre o recinto onde repousam os despojos de Julieta. Certa vez, uma menina o abordou, em um buteco sujo, de uma forma bizarra: “Conheço você de um desenho”. “Como assim?!??”, reagiu, com o assombro peculiar de quem se depara fequentemente com mulheres loucas. “Meu namorado mudou para uma casa e, no quarto dos pais dele, tem a sua cara desenhada”, explicou a mocinha. “Meu Deus!”, pensou o ex-proprietário dos frangos, lembrando-se do antigo hábito de desenhar uma caricatura de seu rosto na parede de muitos quartos que habitou.

Perguntou o endereço e confirmou: era a casa onde jaziam os restos de Julieta. Porém, mesmo mordido por uma curiosidade lacerante, não teve coragem de perguntar sobre a panela. Teve medo que, a partir de sua indicação, alguém subisse no forro e encontrasse o negócio. Que poderia explodir - ou contaminar mortalmente - toda aquela família. Ficou quieto. E louco para saber, 14 anos depois, o que aconteceu...

sábado, fevereiro 28, 2009

Em busca do marafo perdido – Capítulo 4

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MARCÃO PALHARES

Nevoeiro. Denso, cerrado, intransponível. Saio da neblina e entro numa casa. Tudo difuso, vago. Não enxergo claramente. Há um vulto, uma mulher sorrindo – ou algo do tipo. Me oferece uma garrafa esverdeada. Tento alcançar, mas a distância aumenta. Ela começa a gargalhar. A garrafa cai no chão e se estilhaça. Eu grito. E desperto do sono profundo...

Sol na cara, muito forte. Os olhos embaçados não suportam a claridade excessiva. Deve ser meio-dia ou perto disso. Estou deitado num beco, dentro de uma lixeira. Os lábios doem. A cabeça lateja. O corpo está moído. A boca seca guarda um gosto horrível de bebida fermentada, areia e sangue. Acho que arrumei briga. E acho que apanhei muito.

Tento levantar, zonzo. O sol desnorteia as ideias. Quando comecei a beber, chovia e fazia frio. Deve ter sido há muitos dias. O clima agora é exatamente inverso. Calor, sede, tontura. Alguma coisa está errada, alguma costela fora do lugar. Ponho os pés no chão – e desabo. Calça suja, pés descalços, camisa rasgada e repleta de sangue seco. Um cheiro azedo de cerveja.

Levanto, caio novamente. Rastejo e me apóio na parede. Vou cambaleando, meio louco de dor, tremedeira e uma vontade apavorante de morrer. Preciso beber alguma coisa. Chego na porta do bar e ele está fechado. Tudo bem: não tenho mais dinheiro, mesmo. Nem carteira, nem documentos, nem nome, nem futuro, nem alma, nem nada. Tanto faz.

Deito na calçada, meio morto. Passa uma nuvem e a sombra alivia um pouco os olhos doloridos. Tento ficar sentado. Chega uma senhora e me atira umas moedas. Os dedos trêmulos fazem um esforço desumano até conseguir reuni-las. Dois contos e vinte e cinco centavos. Acho que está na hora de voltar a beber. E retirar o lucro líquido de uma vida bruta. Salute!

sexta-feira, fevereiro 20, 2009

Em busca do marafo perdido – Capítulo 3

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MARCÃO PALHARES

Eram duas da tarde e eu seguia uma bunda pela avenida principal. A mulher entrou numa casa de artigos para bebês e eu fui atrás, hipnotizado. Um vendedor me perguntou o que eu queria ali e me tirou do transe. Encabulado, comprei um jogo de babadores (algo muito apropriado para o vexame do meu instinto carnal mal reprimido). Peguei o embrulho, dei de presente para um padre que esbarrou em mim na calçada e corri sedento para o bar da esquina. Fazia um calor piauiense e já fui pedindo a primeira gelada. Tomei em quatro goles e puxei outra. Havia um cara de boina xadrez e anel de pedra vermelha, com um violão. E outro, com a camisa do Tuna Luso, tocando pandeiro. Ali por perto, no balcão, uma moça tinha os olhos fixos neles. Não era tão feia quanto parecia. Com o tempo, achei até que foi ficando interessante.

Devidamente encervejado, pedi um rabo de galo para reforçar. Pra comer só tinha ovo cozido, daqueles azuis, boiando num vidro de líquido nefasto. Pensei em pedir algum lanche, mas a visão de uma gaiola de periquitos cheia de excrementos, bem perto da chapa, me fez considerar que a mesma talvez não estivesse muito limpa. Talvez. A moça, que exalava um desodorante deveras enjoativo, dizia ao violeiro que era cantora. Queria dar uma canja. O homem palitou os dentes com a unha comprida do mindinho esquerdo e, entediado, assentiu. Ela escolheu uma música do Julio Iglesias, "Coração enamorado", e soltou o gogó. Deus pai todo poderoso!

Além de desafinada, a moça gaguejava e tinha uns cacoetes estranhos, ora adiantando, ora atrasando a letra. "Não pergunta nem responde/ Simplesmente satisfaz/ Sonhar/ Que existe amor cada vez mais". Uma voz aguda, irritante, perfurante. Mas o manguaça levou a música até o final no violão e, educado, agradeceu a "cantora". Ela até insinuou um "Agora toca aquela...", mas o pandeirista se encarregou de atravessar a inconveniente e apressou a voz num samba do Benito di Paula: "Você/ Ficou sem jeito e encabulada/ Ficou parada sem saber de nada...". Não sei se a moça percebeu a maldade da letra e o corte que levou do Tuna Luso, mas se calou com a sua boca sem feijão.

Eu já estava ali pelo segundo copo de Jurubeba Leão do Norte e me apiedei da criatura. Sentimentalismo de pinguço. Amor, paixão, casamento. Tudo isso passa pela cabeça de uma pessoa que começou o dia seguindo uma bunda e prosseguiu deglutindo nove cervejas, cinco doses de pinga da pior espécie com vermute barato e três jurubebas. "Você vem sempre aqui?", me lembro de ter perguntado. Não sei o que houve. Na cena seguinte, a moça estava no meu colo. Eu apertei sua mão e a marca dos meus dedos ficou impressa. Não entendi. Ela disse algo sobre doença de pele, erisipela, fungos ou coisa parecida. Depois me beijou, com hálito de Tatuzinho e tubaína de uva.

No pequeno apartamento, os colchões eram separados por varais com lençóis. Uma mulher gorda e com touca na cabeça, fumando, fazia miojo numa caçarola. Não tenho certeza, mas acho que me deitei e apaguei. A moça não gostou muito, pois buscou um balde com roupas de molho e atirou sobre mim. Fiquei atônito, no colchão encharcado. Houve bate-boca, a mulher do cigarro ameaçou me jogar o miojo na cara. Assim que tive a oportunidade, abri a porta e saí correndo. A moça do bar veio atrás, pelas escadas, me dando vassouradas. Cheguei à rua e entrei no primeiro táxi que vi, ainda molhado e fedendo sabão em pó vagabundo.

Parei num buteco de periferia e pedi um conhaque. O rádio tocava Julio Iglesias e comecei a divagar. Depois da décima segunda cerveja, me convenci de que tinha conhecido o amor da minha vida. Estava decidido: eu iria procurá-la. Não a moça, mas a mulher da touca, cigarro e miojo. Uma deusa! A vida é assim. Ninguém escapa.

(Continua quando o autor estiver sóbrio o suficiente para escrever...)

sexta-feira, fevereiro 13, 2009

Em busca do marafo perdido – Capítulo 2

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MARCÃO PALHARES

Domingo era dia de bebedeira naquele prédio. Do primeiro ao 18º andar, homens e mulheres preparavam alimentos e corriam ao supermercado para garantir o combustível da esbórnia. Ninguém sabia ao certo o motivo de tanta sede e necessidade de entupir as células com álcool até a embriaguez sepulcral. Mas era assim naquele condomínio. E naquele dia não foi diferente. Estava marcado um primeiro "esquenta" no segundo andar, onde cinco paraguaios dividiam uma quitinete. Eles fritaram manjubas e a pinga correu solta na forma de caipirinha, batida de maracujá ou mesmo pura. Alguém chegou com salame e calabresa. De algum lugar, brotou uma garrafa de San Raphael. Misturaram aquilo com guaraná e limão e o clima esquentou. A próxima parada seria no 15º andar.

Lá, no apartamento de duas enfermeiras e uma estudante de odontologia, um frango assado com arroz de forno aguardava os mais famélicos. Mas a preocupação geral era beber, então havia três dúzias de latas de cerveja, dois garrafões de vinho vagabundo, uma vodka pela metade e mais pinga que os paraguaios rebocaram de seu muquifo. A turba já chegava a 28 pessoas. Entre brindes e dentadas no frango, comido com as mãos, alguns transitavam entre o apartamento, as escadas e o 11º andar, onde a miséria se estenderia no cafofo de dois irmãos cachaceiros. Eles estavam assando carne de terceira num grill elétrico e aguardavam a chegada de outro pinguço, que ficou de fazer macarrão.

Eram 14 horas e o contingente ultrapassava cinco dezenas de bêbados (e bêbadas). O condomínio era habitado, preferencialmente, por estudantes, proletários e vagabundos que se amontoavam em três dezenas de repúblicas. Todo mundo bebia - e bastante. Nisso, chegou o tal que havia se responsabilizado pelo macarrão. Visivelmente embriagado, ele trouxe o alimento - ou a tentativa dele - dentro de uma vasilha plástica de sorvete. Quando uma menina meio careca tentou ver o estado da coisa, notou que o macarrão tinha passado do ponto e estava todo grudado. Inaproveitável, repugnante. O manguaça, muito provavelmente, havia esquecido a massa no fogo enquanto mamava seu mé ou cochilava na mesa da cozinha. Nem com molho aquela porcaria poderia ser aproveitada.

Por isso, a vasilha foi esquecida num canto, entre dezenas de garrafas vazias. A maratona tinha que continuar e, do 11º andar, todos se dirigiram ao sétimo, onde duas secretárias bilingues e feiosas tinham cozido siris. A quantidade de cerveja consumida até o momento era industrial, mas não parava de chegar mais. Os convidados, bicões e amigos e amigas dos amigos das amigas chegavam em bandos carregando sacolas e caixas de bebidas de vários níveis e qualidades. Tinha gente virando conhaque no bico, outros misturando pinga com Cinzano, outros ainda batendo vodka com rapadura e gelo no liquidificador.

O final da tarde se aproximava e mais de 90 pessoas circulavam entre os vários apartamentos e andares. Nunca se viu tantas garrafas, latas e restos de comida. Os banheiros se entupiam de gente passando mal - ou simplesmente dormindo. Quando o relógio bateu oito da noite, metade dos bárbaros já tinha se retirado. A outra metade estava desmaiada. No apartamento dos irmãos cachaceiros, repousava o temível macarrão embolotado. O que fazer com aquilo? Zonzo, um dos irmãos não teve coragem de jogar fora. Deixou o negócio ali, morto, e foi dormir. No outro dia pensaria no que fazer. E foi assim que a vasilha plástica ficou atrás do filtro de cerâmica, abandonada, a semana inteira.

Só se lembraram do macarrão no domingo seguinte, quando uma nova esbórnia estava para começar. Algum desavisado olhou e pensou que era comida do dia. Abriu a tampa. Uma coisa verde, com vida própria, o cumprimentou. Ainda hoje, os relatos são contraditórios sobre o que aconteceu em seguida. Sabe-se apenas que os moradores desapareceram sem explicação aparente e o prédio, abandonado, acabou lacrado pela prefeitura. Muitos falam em abdução ou fenômeno paranormal. O manguaça que cozinhou o macarrão nunca foi encontrado para esclarecer.

(Continua quando o autor estiver sóbrio o suficiente para escrever...)

segunda-feira, fevereiro 09, 2009

Em busca do marafo perdido - Capítulo 1

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MARCÃO PALHARES

Mas como foi que isso aconteceu, meu Deus? O que eu estava fazendo naquele pagode? Ah, agora me lembro: era sábado e eu não tinha dinheiro pra comer. Fui procurar o Peixoto no pagode, pra ele me arrumar um trocado. Mas o maldito não deu as caras. E eu lá, desconsolado, observando as gringas que tentavam requebrar as cadeiras. Por que eu não fui embora depois de duas horas de campana? Por que raio de motivo eu fiquei? Sem comer nada, sem beber. Taí, o problema foi exatamente esse: eu não conseguiria ir embora sem beber nada. E foi aí que aquela senhora de óculos fundo de garrafa, cabelo tingido de violeta com raízes brancas e batom manchado pra fora dos lábios me convidou para sentar. Contou que era aposentada. Viúva. Dois netos. Gostava do Agepê. "Deixa eu te amar/ Faz de conta que sou o primeiro". A senhora me ofereceu cerveja. E mais cerveja. E muitas, muitas mais.

Acordei no domingo, meio-dia, pelado e estendido numa cama de casal, feito o Homem Vitruviano do Leonardo da Vinci. Náusea, tontura, dor de cabeça lancinante. Nunca tinha visto aquele quarto em toda a minha existência. Uma penteadeira cheia de talcos e cremes, com folhetos de santos presos no espelho. Olhei ao redor e lembrei da música do Roberto Carlos: "Travesseiros soltos/ Roupas pelo chão". Um barulho infernal de crianças gritando e cachorros latindo, televisões e rádios com o volume nas alturas. Vizinhas se xingando. Quem sou eu? Onde estou? Para onde vou? Sensação de torpor. Melhor dar no pé.

Ao catar a bermuda e a camiseta do chão, ouvi o toca-discos sendo ligado e a agulha descendo sobre o vinil. A estática das ranhuras. De repente, a voz da Alcione, a Marrom: "Garoto maroto/ Travesso/ No jeito de amar/ Faz de mim/ Seu pequeno brinquedo/ Querendo brincar". E aquela senhora que me pagou cerveja no pagode entrou no quarto, de penhoar, com uma cerveja preta Caracu e dois copos nas mãos. Os seios flácidos, quase saltando para fora. O penhoar tinha um desenho de duas araras vermelhas. "Já descansou, meu tesouro?", fez biquinho, com a boca murcha. Juro. É tudo verdade. Foi assim mesmo.

A mulher tava tão contente que tinha enchido a geladeira de cerveja e cozinhava um porco no quiabo só pra me agradar (detesto quiabo – e o cheiro da panela de pressão só aumentava meus engulhos). Tinha bobes no cabelo e a prótese dentária mal feita, com uma emenda amarelada. "Vem amor!/ Vem mostrar o caminho/ Da doce ilusão", cantava, junto com a Alcione. E me olhava como um náufrago olharia um frango assado. Inventei uma mentira daquelas bem esfarrapadas - que tinha que trabalhar, que meu avô estava no hospital, que deixei a torneira do banheiro aberta, que não pus a ração do peixe no aquário, que o dólar subiu, sei lá, um troço desses. Eu custava a acreditar que tivesse acontecido qualquer coisa de mais íntimo entre eu e aquela anciã. Ainda hoje tenho dúvidas, mas devo ter tomado muita cerveja, pois não lembro de nada (por sorte!). Bom, de algum jeito, me preparei para a fuga desesperada.

A senhora compreendeu, me passou as mãos no cabelo e estalou um beijo que deixou nos meus lábios uma mistura de espuma de cerveja preta com batom melado da Avon. Tive algum tipo de vertigem e pedi uma lata de cerveja. Ela atendeu e ainda me descolou três passes de ônibus, explicando didaticamente o tortuoso caminho que eu faria no retorno à civilização. Aquele conjunto habitacional dos demônios ficava depois do fim do mundo, em algum lugar desconhecido pela cartografia moderna. Foram três ônibus e duas horas e meia até a cidade. Mas antes, na saída, peguei outra lata de cerveja, dei um beijo nos bobes da velha e tropecei num cachorro manco que se esfregava no corredor. A senhora me escreveu seu telefone no verso de um bilhete de loteria, que joguei fora assim que cheguei na rua de terra, cheia de mato e lixo. Um caminhão passou vendendo pamonha. Duas crianças remelentas me atiraram um bagaço de milho nas costas. Corri. Alcancei o ponto de ônibus com mais vontade de beber.

Pensei em voltar lá na casa da velha, mas refleti um pouco e o bom senso falou mais alto. Me aboletei no ônibus desconjuntado e jurei: essa foi a última vez. Ah, como os bêbados são otimistas...

(Continua quando o autor estiver sóbrio o suficiente para escrever...)

quinta-feira, janeiro 15, 2009

Tomar las (bebidas?) de Villadiego

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Recentemente, o colega de trabalho Jesus Carlos (não é aquele) contou pra gente sobre Villadiego (à direita), município feudal da província espanhola de Burgos, comunidade autônoma de Castela e Leão, onde vivem seus pais. A população não chega a 2 mil habitantes e, segundo Jesus, vem baixando sistematicamente. O local ficou famoso por inspirar o dito popular "Tomar las de Villadiego", ou "Tomar as de Villadiego", que significa fugir, sair em disparada por algum imprevisto ou perigo. A expressão aparece em várias obras célebres da literatura espanhola, inclusive em "Dom Quixote de La Mancha", de Miguel de Cervantes, publicado em 1605.

No capítulo 21 da 1ª parte da obra, Quixote diz que o barbeiro, depois de ser derrubado de seu asno, "pôs os pés em polvorosa e pegou as de Villadiego" ("puso los pies en polvorosa y cogió las de Villadiego"). Cervantes (à esquerda) voltaria ao dito em "La gran Sultana", de 1615, quando Madrigal diz: "Porei os pés em polvorosa e tomarei as calças de Villadiego" ("Pondré pies en polvorosa y tomaré las calzas de Villadiego"). Essa versão mais completa, com referência às calças, ajuda a explicar a origem do dito. Porque "tomar as de Villadiego" poderia significar qualquer coisa: tomar as estradas de Villadiego, as portas, as malas, as cavalarias etc.

Mas a história mostra que o sentido correto é "tomar as calças", mesmo. No século 13, o rei Fernando III, o "Santo" (à direita), deu privilégios aos judeus de Villadiego, proibindo que fossem presos. Isso porque, na Idade Média, eles sofriam muitas perseguições na Espanha de catolicismo fervoroso, por trabalharem com usura. Só que, para obter o salvo-conduto e se refugiar em Villadiego, cada judeu era obrigado a levar um distintivo especial, para mostrar que estava sob a proteção do rei. E esse distintivo era justamente uma calça amarela. Por isso, quando alguém precisava fugir, dizia-se que tinha que "tomar as (calças) de Villadiego".

A primeira referência a esse dito popular apareceu em "Celestina", de Fernando de Rojas (à esquerda), em 1499. No segundo ato, Sempronio diz a Parmeno: "Lembre-se de, na primeira voz que ouvir, tomar as calças de Villadiego" ("Apercíbete a la primera voz que oyeres a tomar las calzas de Villadiego"). Também Juan Ruiz de Alarcón, em sua comédia "Los pechos privilegiados" (1628), escreveu: "Culpa um bravo bigodudo/ Rosto amargo e ombro torto/ Que, pegando a (espada) de Juanes/ Toma as de Villadiego" ("Culpa a un bravo bigotudo/ Rostriamargo y hombrituerto/ Que en sacando la de Juanes/ Toma las de Villadiego").

Porém, Jesus Carlos deu a entender que "tomar las de Villadiego" pode ter a ver também com "tomar as bebidas" de lá. Duas das especialidades locais são misturas que as pessoas tomavam em tempos de neve e muito frio, para poderem encarar o trabalho na lavoura. Uma dessas misturas se chama "chico y chica" ("menino e menina") e consiste em um copo com partes iguais de bagaceira, uma espécie de cachaça de uva, e vinho doce – o popular Moscatel. Já o chamado "sol y sombra" ("sol e sombra") é uma mistura muito forte de conhaque com anisete (à direita). Receitas medievais que me inspiram a, um dia, também “tomar las de Villadiego”. Ainda chego lá!

domingo, novembro 16, 2008

Letras dobradas – primeira dose

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Uma vez, numa exposição de artes plásticas que incluía um pintor irlandês, falei a um adido cultural britânico (que na época era chefe da minha ex-mulher) que todo filme ou livro de irlandês que eu me lembrava tinha um pub com uma galera enxugando até o talo. Era um comentário despretensioso, sincero, que de repente poderia até ser interpretado como um elogio. Mas ele meio que se ofendeu, e rapidamente levantou a voz em defesa dos vizinhos “os brasileiros também!”. Não avançamos na conversa, pois ficou um clima ruim, resultado mais de incompreensão do que de uma real diferença de opiniões. Além do mais, o cara é escocês e não é nada fraco na mesa de boteco. O que ficou do episódio foi uma pulga atrás da orelha com relação à presença da manguaça na literatura brasileira. Ainda acho que ele exagerou, pois mesmo com tantos escritores que falam de cachaça ou que tratam de bebê-la sem moderação, os brasileiros não superam os Irishmen. Quem se compara a James Joyce, por exemplo? É algo a se pesquisar.

Que autor brasileiro superaria Joyce na manguaça?

Entretanto, para que não me acusem de levantador de lebre barato, uso essa anedota como mote para iniciar aqui uma pesquisa aberta – um work in progress (já que citei Joyce...) – da literatura manguaça universal. Não só brasileiros e irlandeses – a polêmica não vale a pena –, mas em geral. Faço também o convite a quem quiser contribuir com comentários, sugestões, opiniões, preferências etc. etc.

Rabelais, príncipe dos poetas ébrios

Aí, revirando minha memória literária – que infelizmente é curta, talvez pelo álcool –, não me lembro de nenhum escritor que supere Rabelais no quesito manguaça. E não é um cara deprezão, tipo Bukowsky (que, diga-se, nunca me convenceu). Rabelais, um ícone da cultura renascentista, é do tipo sangue-bão, um bom bêbado, companheiro de mesa, imensamente culto e ao mesmo tempo irônico (e autoirônico). Ri o bom e livre riso dos justos beberrões, que curtem a comida farta, motivo de mais beber e mais celebrar.

Aliás, já foi dito que ele e o James Joyce são praticamente da mesma família de escritores... quer dizer, o Joyce é como um Rabelais moderno: o mesmo amor pela cana e pela vida de boteco, o mesmo gosto pelos jogos de palavras (sim, ambos elevaram ao mais alto posto literário a prática do trocadilho-arte) e a mesma capacidade de realizar o que eu considero o ideal do bar: mesclar a dita “alta” com a dita “baixa” cultura, ter total liberdade pra juntar assuntos tão afins quanto os dramas da existência e a qualidade do torresmo.

Basta ler as linhas iniciais do primeiro (publicado em 1534) da série de cinco livros das histórias dos gigantes Gargântua e Pantagruel. O prólogo abre interpelando os leitores: “Bêbados muito ilustres (...) (pois aos senhores, e não a outros, são dedicados meus escritos)”. E aí começa a citar Platão, a passagem do Banquete em que Alcibíades compara Sócrates a uma silene. Silene, na mitologia grega, é um semi-deus, segundo versões seria o preceptor de Dionísio, notoriamente o deus da manguaça. Mas as silenes são também umas caixinhas, como as de um boticário, adornadas por fora com ilustrações representando o semi-deus embriagado, sendo carregado pelos sátiros seus discípulos; dentro são guardadas as mais finas drogas.

Esse seria o Sócrates:

“simples nos modos, rústico nas roupas, pobre em fortunas, infortunado com as mulheres, inepto a todos os ofícios da República; sempre rindo, sempre bebendo (...), sempre se fartando, sempre dissimulando seu divino saber. Mas abrindo essa caixa, se encontraria lá dentro uma celeste e inapreciável droga: entendimento mais que humano, virtude maravilhosa, coragem invencível, sobriedade sem igual, contentamento certo, segurança perfeita, desprezo inacreditável por tudo aquilo por que os humanos tanto velam, correm, trabalham, navegam e batalham”.

É muito sério isso: esse mesmo Sócrates descrito como “sem controvérsia o príncipe dos filósofos” tem dons que eu não encontro outro modo de definir senão como qualidades essenciais da própria canjibrina. O que mais proporciona o “entendimento mais que humano”? Virtude, coragem, segurança? E mais, o “desprezo inacreditável” pela vaidade que move homens em tantas batalhas e tanto trabalho para chegar sabe-se lá onde? Na fundação da filosofia ocidental, um manifesto manguaça.

O nascimento de um bêbado

Só mais uma passagem, o parto de Gargântua:

“Grandgousier, bebendo e rindo com os outros, escutou o grito horrível que seu filho deu ao entrar na luz deste mundo, quando ele urrava pedindo Mé! Mé! Mé! Ao que disse, mas que grande e elástica essa boca. Ouvindo isso, os assistentes disseram que realmente ele devia por isso ter o nome de Gargântua...”

Detalhe, tomo aqui liberdade como tradutor, pois o que recém-nascido Gargântua grita é “A boire! A boire! A boire!”, o que soa como “buá” e quer dizer, literalmente, “’bora beber! ’bora beber! ’bora beber!”.

terça-feira, novembro 11, 2008

O filho eterno e o futebol

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Em meio aos preparativos para minha viagem, enfiei na cabeça que não poderia abandonar as leituras em língua portuguesa sem me dedicar a O filho eterno, obra de Cristovão Tezza, altamente elogiado pela crítica e favoritíssimo aos prêmios que disputa. Até agora, levou o Jabuti e o Portugal Telecom.

É um baita livro. Não tenho a pretensão de apontá-lo como o melhor romance brasileiro do século até agora, como tenho lido por aí, mas surpreende pela crueza com que o personagem se expõe e pela ausência de julgamentos moralóides que parecem inerentes à situação descrita. O protagonista é um escritor fracassado - a inspiração é autobiográfica - e sustentado pela esposa que se vê às voltas com um filho com Síndrome de Down, Felipe. Mais que isso não vou escrever, deixo links para outros textos aqui e aqui.

O que me faz comentar o livro aqui é a relação do menino, já na idade adulta, com o futebol. Uma criança com Síndrome de Down não tem noção de temporalidade, e é com o futebol que Felipe aprende que o mundo não é previsível e que o tempo passa. Citando Idelber Avelar:

A imprevisibilidade do futebol vai dando a Felipe uma idéia de “futuro” e através do conceito de campeonato ele entende o de calendário. O encadeamento de jogos funciona como metáfora inteligível do devir, da passagem do tempo, mesmo que continue uma tremenda confusão sobre o que é Campeonato Brasileiro, Copa do Brasil, Libertadores ou Campeonato Paranaense.

O livro é muito mais que isso e vale muito a leitura. Pra quem é apaixonado por futebol, essa é só uma razão a mais para o livro emocionar.