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terça-feira, agosto 25, 2015

Contrato de professora exigia: 'Não beber cerveja, vinho ou uísque'

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Circula na inFernet um "Contrato de Professores" de 1923, mas direcionado exclusivamente às "senhoritas". Um verdadeiro show de machismo (institucionalizado): determina que a tal "senhorita" que assinasse o acordo para dar aulas num período de oito meses comprometia-se a, entre outras barbaridades, "não se casar" (!), "não andar em companhia de homens" (!!), "ficar em casa entre às [sic] 8h da noite e às [sic] 6h da manhã" (!!!), "não passear pelas sorveterias" (!!!!) e "não abandonar a cidade (...) sem permissão do presidente do Conselho de Delegados" (!!!!!). Mas não apenas isso. Também há cláusulas castradoras em relação ao fumo e à manguaça. Confiram:


Se a imagem dificulta a leitura, reforço os itens 6 e 7: "Não fumar cigarros. Este contrato ficará automaticamente anulado e sem efeito se a professora for encontrada fumando" e "Não beber cerveja, vinho ou uísque. Este contrato ficará automaticamente anulado e sem efeito se a professora for encontrada bebendo cerveja, vinho ou uísque". O contrato ainda arrematava: "Não viajar em carruagem ou automóvel com qualquer homem, exceto seu irmão ou seu pai". Se considerarmos que, de qualquer forma, uma professora já era, naquele tempo, mais independente e autônoma que as outras mulheres, fico imaginando as proibições "não escritas" às esposas e donas-de-casa da época. Impressionante.

Ps.: Segundo o leitor Renato, "este contrato é verdadeiro. Esta no livro “Trabalho docente e textos” (edição de 1995 da editora Artes Médicas, na página 68) de Michael Apple, sociólogo estudioso da área de currículo".

terça-feira, agosto 18, 2015

'Nossa vida no teu seio mais AMORES...'

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"A lhaneza no trato, a hospitalidade, e generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro." - Sérgio Buarque de Holanda


domingo, agosto 16, 2015

Velório carioca

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Blanc: compositor, vascaíno, bebum e,antes de tudo, carioca
No prefácio de "Brasil passado a sujo" (Geração Editorial, 1993), Sérgio Cabral diz que o autor, o vascaíno Aldir Blanc, é um dos expoentes da chamada "literatura carioca", com tipos, personagens, subúrbios, bares e situações na linha de Nelson Rodrigues e Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta. "O Rio de Janeiro é isso que está nestas páginas; é a cabeça e o coração desse extraordinário Aldir Blanc", resume Cabral. De fato, a obra é uma ode à carioquice, com tudo de "bom" que a esculhambação local possui - e aqui rememoro a resposta do também carioca Tom Jobim quando perguntaram por que, morando nos EUA, ele passava a maior parte do tempo em sua cidade natal: "Estados Unidos é bom, mas é uma merda. E o Brasil é uma merda, mas é bom!". No livro de  seu conterrâneo Aldir Blanc, um dos capítulos, "Até Morrer", fala especificamente sobre futebol. "Hei de torcer", explica o vascaíno nesse texto, "porque conheci um bebum que apelidou a própria amásia de Paulo Isidoro: 'Ela dormia na ponta, mas embolava pelo meio'." E prossegue:
O Lindolfo havia morrido. Vó Noêmia fez uns trinta sanduíches de carne assada, os homens encheram vidros vazios de eparema com traçado e partimos pro velório. Na saída, alguém lembrou:
- Cadê o rádio? Hoje tem Vasco x Botafogo.
Mas, aparentemente, ninguém se atreveu a levar. A mulher do Lindolfo, Dona Marcelina, era tão séria que já estava de luto muitos dias antes da morte do marido. Amanheceu um domingo de comemorar com batida de maracujá.
Naquele tempo, o jogo começava às três e quinze da tarde. Os enterros saíam por volta das cinco. No Caju, a viúva parecia de granito. Luto fechado, um buço que deve ter influenciado o Sarney, cabelos cinzentos cobertos por um lenço negro, leque também negro fechado nas mãos em garra, uma viúva de Lorca.
Waldir Iapetec, com seu faro inigualável, descobriu um buteco nas imediações com rabada e cervejotas superlampoticamente geladas. Mandaram arrebite. Mais ou menos na hora da peleja começar, Ceceu Rico, cheio de goró, lavando a cabeça com azeite Galo e botando aristolino na maionese, sacou um radinho do bolso das acumuladas. O Iapetec riu:
- Sabia que tu não ia aguentar.
- Tenho minha reputação. Não quero que digam que Ceceu Rico deu balda com medo de viúva.
O pessoal ficou ouvindo o jogo no tal buteco. De vez em quando, um batedor partia pro front do velório. E tome chá-de-macaco. O clima de jogo aumentava a vontade de biritar. Um zero a zero cheio de lances dramáticos. Faltando uns quinze minutos pro fim do segundo tempo, pressão do Vasco, meu avô Aguiar apareceu, deu um tapa de bagaceira nos beiços, e avisou, com toda cortesia de seus quase dois metros de cutucro nascido em Póvoa de Varzim:
- Vamo pagar a conta que o palhaço de saias chegou pra encomendar o corpo. Ceceu, enfia o rádio na ombreira do paletó e finge que tá com torcicolo, meningite, um troço desses.
Provavelmente sentindo a exuberância dos bafos, a viúva lançou a todos um olhar assassino. O padre, com a batina salpicada de proverbial caspa, começou a arenga:
- Nosso irmão Lindolfo já não está no estádio, digo, no mundo. Encontra-se na Glória!
O Iapetec sussurrou:
- Provavelmente na taberna. Ele adorava.
Olhar rambo-rocky da viúva em nossa direção. Vários gulps e pigarros.
- Bem aventurados aqueles...
Nesse instante, Ceceu captou no radinho uma investida vascaína:
- Lá vai o Vasco! Bola pra Walter Marciano na entrada da área! Driblou o primeiro, driblou o segundo, vai marcar...
O desgraçado do radinho ficou mudo. Desesperado, Ceceu catucou os botões pra baixo e pra cima. Nada. Teria sido a pilha? Ceceu sentou a porrada no spika, método quase infalível para engenhocas enguiçadas, e uma palavra, altíssima, como que irradiada pela sublime voz do Todo-Poderoso, elevou-se na capela:
- PÊNALTI!
Ceceu baixou de um golpe todo o volume. Um silêncio aterrador. Possessa, a viúva urrou:
- Contra quem? Pênalti contra quem? Aumenta, babaca!
À beira de uma de suas famosas crises de asma, Ceceu estertorou:
- Pênalti contra o Botafogo.
A viúva tava comandando o tradicional corinho de "casaca, casaca, casaca - saca-saca...", quando o padre abandonou o recinto.
Meu avô gritou:
- Hei, seu padre! Volta aqui! Futebol enlouquece qualquer um! Não foi desrespeito, não.
Sintam a resposta do padreco:
- Aqui, ó! Eu sei que não foi desrespeito. Foi roubo no duro! Tô farto de ver o Vasco vencer com gol de pênalti no último minuto. Vão todos pros quintos dos infernos. Ladrões!
Mas seu protestos foram abafados pelos gritos de gol e pelo espetacular choro da viúva. De alegria.

sexta-feira, julho 31, 2015

'Crise' ou 'bonança' no noticiário econômico depende do preço

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Já tô com os pacová cheio dessa conversinha sobre "crise econômica" no Brasil, principalmente depois de viajar a Portugal e testemunhar hordas e hordas de milhares, quiçá milhões, de brasileiros passeando, comendo e bebendo do bom e do melhor e gastando "os tubos", sem limite ou preocupação com o dia de amanhã. Vários portugueses e espanhóis comentaram, de forma agradecida (e sem que eu perguntasse nada), que somos nós que estamos salvando a economia deles. Um amigo que trabalha com emissão de passagens aéreas diz que, todo dia, na primeira hora de expediente, seus colegas fazem mutirão para dar conta da demanda. Conheço dezenas de pessoas (inclusive familiares) que, nos últimos meses, trocaram de carro (para modelos caríssimos), compraram imóvel ou fizeram viagem ao exterior. Fora os (altos e permanentes) gastos com cães e gatos, salões de beleza, roupas caras, almoçar e jantar fora, cervejas importadas, comidas gourmet, academias de ginástica etc etc etc. Quanto mais os supermercados aumentam os preços, mais eles gastam; e quanto mais eles gastam, mais aumentam os preços. Realmente, essa "crise" até a Grécia quer... Mas eu sei, a onda é "fora, Dilma", "morra, Lula", "petrolão", "crise", "inflação", bla-bla-bla-blá. Se deu no Jornal Nacional ou na Veja, é "fato". Será?

Em 16 de maio do ano passado, o camarada D.Sartorato alertou em uma rede social: "O alvo agora é o Brasil, e já está rolando com toda força o festival de más notícias na mídia internacional (na nossa aqui não precisa nem comentar, nada mudou), com o objetivo de criar receio entre os investidores internacionais (...) A Petrobras já está na mira dos parasitas". E agora, 14 meses depois, leio notícia do Portal Fórum sobre desenvestimento na Petrobras por pressão internacional... Mas voltando lá atrás, em 22/05/2014, sob o comentário "começou a baixaria", Sartorato fazia novo post na rede social com a seguinte nota do blog de Fábio Alves, do caderno "Economia & Negócios", do Estadão: "Dólar sobe se Dilma vencer e cai se ela perder, diz consultoria". "A palavra-chave dessa história é confiança e o mercado financeiro hoje não tem mais confiança na presidente", opinava ao jornal Silvio Campos Neto, da consultoria Tendências - ou, mais apropriadamente, TENDENCIOSA, pois sempre esteve alinhada ao PSDB (veja aqui, aqui, aqui e mais aqui).

Pois bem: lendo o interessante "1929 - Quebra da Bolsa de Nova York, a história real do que viveram um dos eventos mais impactantes do século", de Ivan Sant'Anna (Editora Objetiva, 2014), cheguei à conclusão de que o autor batizou o capítulo 19 de "Espertos e otários" referindo-se, exata e respectivamente, aos meios de comunicação e aos leitores. Antes, no capítulo 5, Sant'Anna explica que, nos negócios na Bolsa, grandes especuladores se unem para fazer pools de compra de ações, enganando todo mundo e lucrando horrores. Explica ele (e o grifo é meu): "Poderíamos definir como 'puxadas', vários corretores se reuniam, adquiriam grandes lotes de determinado papel e começavam a espalhar notícias favoráveis a respeito dele, inclusive subornando jornalistas. Isso atraía levas de compradores gananciosos, em busca de um lucro fácil. Os preços então subiam e os integrantes do pool se desfaziam de maneira ordenada de seus títulos, deixando para a manada de investidores que vinha atrás o prejuízo quando sobreviesse a inevitável baixa, numa espécie de jogo das cadeiras". Manada de investidores = manada de leitores crédulos.

Voltando ao capítulo 19, o autor do livro narra uma dessas maracutaias, digo, um desses pools feito em março de 1929, às vésperas da quebra da Bolsa de Nova York, para "alavancar" ações da RCA, e detalha: "Restava (...) aos puxadores o mais difícil em qualquer pool: vender seus papéis para uma nova onda de compradores. (...) Tal mágica só era possível porque Michael Meehan, Tom Bragg, Ben Smith e seus parceiros [do pool] tinham a seu soldo uma equipe de jornalistas conceituados. Conceituados aos olhos do público, que era o que interessava". A seguir, lista alguns jornalistas da época que escreviam para os "otários": Richard Edmondson, do Wall Street Journal; William Gomber, do Financial America; Charles Murphy, do New York Evening Mail; J. F. Lowther, do New York Herald Tribune; William White, do New York Evening Post e W. F. Walmsley, do The New York Times. Segundo Sant'Anna, todos eles "aceitavam suborno para divulgar notícias falsas a respeito da empresa que os participantes de pools queriam puxar ou derrubar".

O livro conta que "as notícias foram tão exageradas que em 13 de março, graças a um artigo do Wall Street Journal, a [ação da] RCA fechou a 94 dólares" e que em 16 de março o valor subiu para 109 dólares, quando, "embora ninguém soubesse, a não ser seus integrantes, o pool se livrou de suas últimas ações". Restou aos "otários" que acreditaram nos jornais arcar com o rombo em 23 de março, quando o preço da mesma ação da RCA despencou para 87 dólares. E os "espertos" faturaram alto: "O lucro líquido do pool concebido por Michael Meehan foi de 4.924.078,68,00 de dólares", diz o livro. Mas Ivan Sant'Anna lembra-se de uma honrosa exceção na classe jornalística, Alexander Noyes, editor financeiro do The New York Times, que "continuava convicto de que a alta da Bolsa se aproximava do fim e o dizia abertamente em seus comentários no jornal". "Derrotista é o que ele é. O jornal deveria despedi-lo", acusavam seus detratores. Algo como destacar aspectos econômicos favoráveis do governo Dilma (aos assalariados ou aos mais pobres, por exemplo) em meio à tormenta - o que pode render não só bate-boca como violência física, hoje em dia, no Brasil.


terça-feira, julho 28, 2015

Pra fazer a economia (ou a cabeça) girar

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quarta-feira, abril 29, 2015

Antônio Abujamra (1932-2015), aquele que não se acostumou

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"Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia. A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas em redor. E porque não tem vista, a gente logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã, sobressaltado, porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado, sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir, no telefone, '- Hoje eu não posso ir'. A sorrir paras as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar e a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro. Para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias de água potável. A gente se acostuma a coisas demais. Pra não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber. Vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.

Se a praia está  contaminada, a gente molha só os pés. E sua no resto do corpo. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo. E ainda fica satisfeito, porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma pra não se ralar na aspereza. Para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos. Para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta. Que se gasta de tanto se acostumar. E se perde de si mesma."

Antônio Abujamra recitando - magistral e perturbadoramente - o texto "Eu sei, mas não devia", de Marina Colasanti, no programa "Provocações", da TV Cultura. Assista: 



Em TEMPO:

Sobre a desvalorização do tempo e da vida: "Trato a depressão como um sintoma social, e o principal fator contemporâneo que produz o aumento da depressão é o aumento da velocidade com que a gente vive nosso tempo. Eu mesma estou aqui contando os minutos (daqui a pouco tenho de atender). É como se a gente tivesse uma urgência temporal que faz com que a vida perca completamente o valor. O tempo da experiência, da reflexão, todo o tempo da chamada vida subjetiva está sendo atropelado pelo tempo do capitalismo. Esse é o primeiro fator da depressão, essa desvalorização do tempo como tempo de vida. Como diz o professor Antonio Candido: 'O capitalismo se considera o senhor do tempo. Essa idéia do ‘tempo é dinheiro’ que rege a nossa vida é uma brutalidade. O tempo é o tecido da nossa vida'. Então, se você negocia a matéria-prima da sua vida, valendo dinheiro, a vida se desvaloriza. Se a vida se desvaloriza, para que viver? A depressão tem um pouco a ver com isso." - Maria Rita Kehl, psicanalista (leia íntegra clicando aqui).



segunda-feira, abril 27, 2015

Obdulio Varela uniu o time campeão mundial de 1950 em bar uruguaio - e se arrependeu em bares brasileiros

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No cartaz do filme, o chute de Ghiggia
Ontem assisti, finalmente, o documentário "Maracanã" (ou "Maracaná", como grafam e pronunciam os uruguaios), sobre a Copa do Mundo de 1950, de autoria de Sebastián Bednarik e Andrés Varela. Foi uma revelação, para mim, descobrir o quanto Obdulio Varela, capitão da Celeste, foi absolutamente determinante em toda a campanha vitoriosa dos portenhos, da fase preparatória ao título. Até então, eu achava que ele tinha sido fundamental apenas na partida decisiva, considerada uma das maiores "zebras" da história do futebol mundial em todos os tempos, quando comandou como um leão raivoso seus companheiros a uma virada absurdamente improvável. Mas o documentário narra uma responsabilidade muito mais significante e abrangente desse mulato, filho de uma lavadeira negra, na maior conquista futebolística (e, por que não, patriótica) do Uruguai.

Obdulio usava sobrenome materno
Aliás, o orgulho que o jogador tinha de sua mãe e do sacrifício que ela fez em sua infância miserável era tão grande que ele não usava o sobrenome do pai, Muiños, mas o materno, Varela. Criado nas ruas de Montevidéu, Obdulio tinha um temperamento "chucro", zangado e determinado, com cara "de poucos amigos", que impunha temor e respeito. Caráter determinante para que liderasse, em 1948, uma inédita greve dos jogadores de futebol no Uruguai, que durou mais de sete meses, até que os clubes concedessem as reivindicações que extinguiram um regime profissional quase que escravocrata imposto até então. Porém, como era de se esperar, o líder grevista Obdulio ficou marcado - e foi afastado da seleção. Só que, às vésperas do Mundial do Brasil, a Celeste estava muito mal, com jogadores fora de forma, desunidos, sem comando e sem dinheiro. A ressaca da greve de 1948 era forte - e eles iam passar vexame.

O então presidente Luis Batlle Berres
Todos imploraram para que Obdulio voltasse à seleção, mas, orgulhoso, ele negou. Foi preciso que o próprio presidente do Uruguai na época, Luis Batlle Berres, fosse atrás dele para convencê-lo. "Tenho 36 anos e não tenho nada. Só peço um emprego", impôs Varela. "Terá", garantiu Batlle. E a primeira tarefa do "jefe" (chefe), como era chamado, foi extinguir de uma vez por todas as desavenças no elenco que iria à Copa. Muitos dos atletas tinha furado a greve de 1948, e eram desprezados e evitados pelos outros. Um deles era Matías Gonzales, o zagueiro que seria peça crucial e considerado um dos melhores jogadores do torneio. Obdulio Varela chamou todo mundo para um bar, em Montevideu, e, no meio dos "inimigos", sentenciou: "Chega disso. Nós somos todos uruguaios e vamos ganhar a Copa juntos. Agora, cerveja pra todos, amigos". O grupo se uniu e criou um vínculo patriótico ali.

Diário do Rio: 'O Brasil vencerá!'
O resto é mais ou menos conhecido. Obdulio comandou reações "impossíveis" como o empate em 2 x 2 com a forte Espanha e a virada heróica na vitória por 3 a 2 sobre a Suécia (ambos os jogos no Pacaembu), e praticamente "obrigou" seus colegas a virarem o jogo contra o Brasil no Maracanã lotado com mais de 200 mil pessoas, sendo que o anfitrião tinha a vantagem do empate e abriu o placar. Na véspera da decisão, o jornal carioca Diário de Notícias havia estampado um pôster da seleção brasileira com o título: "Eis os campeões do mundo!" No local onde estavam hospedados, os jogadores uruguaios aguardavam a partida já com uma sensação de dever cumprido, de que "fomos longe demais, está muito bom; se o Brasil ganhar será apenas a lógica". Obdulio abriu a porta do quarto onde estavam e jogou o jornal violentamente contra a parede. "Leiam!", ordenou.

Augusto (à esquerda) e Obdulio Varela
Naquele momento, os defensores da Celeste ficaram "com o sangue nos olhos", como se diz atualmente. Aliás, dizem que, segundos antes de começar o jogo, ao cumprimentar o capitão brasileiro, Augusto, e notar seu sorriso de "campeão", Obdulio teria dito a ele, rangendo os dentes: "Vais llorar lágrimas de sangre"" ("[Você] Vai chorar lágrimas de sangue!"). Depois que o Brasil fez 1 x 0 no início do segundo tempo, com o atacante Friaça, o capitão uruguaio resolveu intervir diretamente. Berrou aos companheiros: "Nós, uruguaios, entramos em campo para ganhar ou ganhar!" Até ali, o lateral-esquerdo brasileiro Bigode vinha fazendo marcação implacável sobre os atacantes da Celeste que caíam pelo seu setor, com entradas duras. Depois de mais uma delas, recebeu um "tapinha" intimidador de Obdulio, que vociferou em sua cara, com os olhos faiscando: "Calma, muchacho!"

Bigode levou 'tapinha' e murchou no jogo
Bigode murchou completamente e Ghiggia passou voando por ele duas vezes, primeiro para dar a assistência ao empate uruguaio, num chute forte de Schiaffino, e depois para marcar o gol que ficará entalado eternamente na garganta e na alma de toda uma nação. A vitória uruguaia era tão estapafúrdia e inacreditável que o presidente da Fifa (e idealizador das Copas do Mundo), Jules Rimet, ficou parado com a taça na mão, no meio do campo, sem saber o que estava acontecendo nem o que fazer. Quando ele deixou as tribunas para pegar o túnel que o levaria ao gramado, o Brasil vencia o jogo e a multidão brasileira urrava em delírio. Ao subir para a premiação, viu jogadores do Uruguai pulando, brasileiros chorando e os 200 mil torcedores em absoluto - e assustador - silêncio. O documentário mostra Obdulio literalmente arrancando a taça das mãos de Rimet, que permaneceu mudo e abestalhado. Nada daquilo estava no script.

Tragédia: brasileira chorando no Maracanã
Sem dinheiro e abandonados (porque, prevendo derrota, metade dos dirigentes da seleção uruguaia tinha embarcado de volta ao seu país antes da decisão!), os heróis da Celeste não tiveram direito nem a um jantar da vitória. Precisaram fazer uma "vaquinha" do próprio bolso para comprar salgadinhos e cervejas para a modesta comemoração em um quarto de hotel. Mas houve uma ausência: de temperamento completamente diferente dos companheiros, Obdulio Varela saiu pela noite do Rio de Janeiro, sem ser reconhecido, para tomar cerveja sozinho nos bares cariocas. Conforme relataria em seu país, ficou assombrado com o tamanho do desespero dos brasileiros que afogavam as mágoas naquela noite. Porque, para ele, tinha sido apenas um jogo de futebol, e haveria outros, para possível desforra. "Se eu soubesse a dor que causaria a essa gente tão boa, não teria ganhado o jogo", diria mais tarde, ao recordar que, em muitos bares, abraçou bêbados e chorou junto com eles.

ASSISTA O DOCUMENTÁRIO:

 


 E LEIA TAMBÉM:











segunda-feira, abril 13, 2015

Vamos conversar? (mas não conta pra ninguém!)

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quarta-feira, abril 08, 2015

Conhecendo os dois, terminou em cachaça...

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Em foto postada há pouco na página oficial de Lula no Feicibúqui, o time de deputados constituintes de 1988 antes de uma pelada em Brasília. Aécio Neves está agachado bem em frente ao Barba, que, de braços levantados, sinaliza o número de caixas de cerveja necessárias para o pós-arranca-toco.


sexta-feira, março 27, 2015

Imprensa tucana (até no exterior!)

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FHC: fomos surpreendidos novamente!
O constrangedor episódio em que a sucursal brasileira da agência de notícias britânica Reuters deixou escapar, no meio de um texto publicado na internet, um recado do editor para alguém, consultando se uma informação desfavorável a Fernando Henrique Cardoso deveria ser suprimida (veja reprodução do texto publicado no fim desse post), confirmou aquilo que todos - pelo menos todos os jornalistas - já sabiam: o dedo do PSDB pesa na pauta, no conteúdo e na edição final do que é produzido por muitos meios de comunicação. Não, não é delírio de petista, mania de perseguição ou teoria da conspiração. Pra começar, o dito texto é uma entrevista com o citado morto-vivo FHC, que nada influi na política nacional (e nem mesmo em seu partido) desde que saiu da presidência da República para o lixo da História - e a publicação de (dispensáveis e inúteis) declarações suas na imprensa corrobora a influência tucana sobre a mídia. Segundo, a tal entrevista foi feita por Brian Winter, coautor de um livro exatamente com o entrevistado (!). E, por fim, o vazamento do comentário, que dá ideia do nível de vassalagem de nossa mídia ao PSDB e que atinge até (financeiramente?) uma sucursal de agência estrangeira. Delírio? Paranoia? Mistificação?

Goebbels: 'mentor' da mídia tucana
Com 21 anos de profissão, ao bater o olho no recado esquecido no meio da entrevista ("Podemos tirar, se achar melhor"), referindo-se a possível e "apropriado" corte da informação de que "o esquema de pagamento de propinas na Petrobras começou em 1997, no governo tucano [de FHC]", me pareceu um caso clássico de "acordo" em matéria "encomendada". Comecemos assim: um veículo de comunicação toma a iniciativa ou é pautado por "instâncias superiores" (PSDB?) a publicar textos/reportagens/entrevistas/notícias/notinhas maldosas/entrevistas insinuando que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (provável e temido candidato em 2018) é o principal responsável pela roubalheira na Petrobras. A ordem é bater nessa tecla diariamente, por meses (ou anos) a fio, até que se concretize a máxima de Joseph Goebbels, ministro da propaganda no regime nazista de Adolph Hitler, de que "uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade". Para estrear a série, fica acertada uma entrevista com FHC - até porque, inativo e pouco lembrado em seu ostracismo eterno, ele está sempre a postos e disponível para se prestar a esse tipo de coisa (disparar acusações sem provas). Mas há condições pré-combinadas num "negócio" desses.

Livro de Winter, 'submetido' a FHC
Uma delas é a escolha, a dedo, do entrevistador. Nada mais garantido, amigável e confortável do que um jornalista que escreveu, em coautoria com FHC, um (obviamente favorável!) livro sobre as memórias do ex-presidente tucano. Aliás, o método de produção dessa obra nos remete diretamente ao episódio grotesco do recado que escapou na edição da Reuters (o grifo é meu): "O autor da versão original, Brian Winter, entrevistou, pesquisou e submeteu o texto a Fernando Henrique" - de acordo com revelador texto de David Hulak, da Revista Será, que tem o mais do que sugestivo slogan "Penso, logo duvido". Então retornemos ao que eu disse sobre "acordo" em matéria "encomendada". É simples: você ouve o "cliente", digo, o entrevistado, e se compromete a só publicar o texto depois que ele leia a versão editada, ordene alterações ou não, e autorize a publicação. Nas redações, num código informal entre os profissionais, isso é totalmente proibido e, caso aconteça e seja flagrado, geralmente causa a demissão do jornalista. Porém, se os proprietários do veículo de comunicação têm interesse no "negócio" e autorizam tal "acordo" (tucanamente falando), resta apenas aos subordinados o cumprimento das ordens. Mas sem vazar recadinhos, de preferência!

PSDB manda e desmanda na mídia
A empresa britância tentou justificar dizendo que a frase, "publicada acidentalmente", é uma "pergunta" de um dos editores do serviço brasileiro da agência "ao jornalista que escreveu a versão original da matéria em inglês". Não convence ninguém - pelo menos entre os que têm décadas de experiência em redações. Porém, mesmo aceitando essa desculpa, o procedimento continua sendo aviltante e injustificável. Porque a consulta (seja lá de quem pra quem) é se uma informação negativa e comprometedora contra FHC e o PSDB deve ser suprimida da versão publicada para o leitor. E, não por acaso, a única informação ruim contra os tucanos num texto que detona o Lula e o PT pela mesmíssima denúncia da Petrobras. Agora, pra encerrar, deixo minha opinião: o tom do recado, com o verbo no plural ("Podemos tirar"), e com o destinatário no singular ("se [você] achar melhor"), me sugere fortemente que os editores finais do "trabalho sujo", digo, da entrevista, estavam cumprindo o acordo de submeter o texto ao "cliente" - FHC ou alguém do PSDB incumbido de resolver o assunto. Assim como Brian Winter, como observei no parágrafo acima, "submeteu o texto [do livro sobre FHC] a Fernando Henique". A gafe da Reuters taí, pra que não restem quaisquer dúvidas.

Mas, como diria Rita Lee, "quando a gente fala mal/ a turma toda cai de pau/ dizendo que esse papo é besteira". No que Raul Seixas complementaria: "eu não preciso ler jornais/ mentir sozinho sou capaz/ não quero ir de encontro ao azar". Nem eu!

P.S.: Antes que alguém me acuse de "paranoia, delírio e mistificação", adianto que as imagens acima não foram publicadas à direita por acaso, nem por mera coincidência.


A 'prova do crime': editores consultam alguém (FHC? PSDB?) sobre informação negativa e comprometedora

terça-feira, março 17, 2015

Socialismo e anarquismo - para crianças

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Chiados e riscos nostálgicos na estante da sala
Ao embutir uma estante na parede da sala, e instalar, nela, um aparelho de som com toca-discos, passei uma noite inteira deleitando os ouvidos com velhos LPs, observando as artes das capas gastas pelo tempo e curtindo até os nostálgicos chiados e riscos que os CDs eliminaram. Discos bem antigos da Simone, Toquinho & Vinicius, Roberto Ribeiro, Clara Nunes, Milton Nascimento, trilhas de novelas e de filmes, duplas caipiras, música brega, rockinho brasileiro dos anos 80, coletâneas de tangos e de canções italianas, música andina, blues, jazz, guarânias, mela-cueca, enfim, uma miscelânea anárquica e heterogênea que catei aqui e acolá nos últimos 20 anos. Tem até um LP do (falecido) ator Cláudio Cavalcanti, de 1971, em que ele declama poemas e canta várias canções, como "Let it Be", dos Beatles (!). A última parada foram os discos infantis, para que minha filha Liz, de 12 anos, se familiarizasse - e se divertisse (muito!) - com o manuseio dos anacrônicos vinis e do toca-discos. E conhecesse, por tabela, o som que as crianças consumiam em tempos idos: Patotinhas, Arca de Noé, Pirlimpimpim, Balão Mágico etc etc.

Capa do vinil lançado no Brasil há 38 anos
Foi aí que encontramos o LP "Os Saltimbancos", de 1977, versão brasileira do musical inspirado no conto "Os Músicos de Bremen", dos Irmãos Grimm, com letras do italiano Sergio Bardotti e músicas do argentino Luis Enríquez Bacalov. Aqui, as letras em português foram feitas por Chico Buarque, e interpretadas, no LP, por Miúcha, Nara Leão, Magro e Ruy (ambos do MPB4). Liz já tinha ouvido essas músicas, mas sem prestar muita atenção. Daí eu expliquei o caráter político do musical, com o personagem Jumento representando a classe trabalhadora, a Gata os artistas e libertários, o Barão a elite conservadora, e daí por diante. A tese central, no enredo que conta a união de quatro animais contra o jugo de seus donos, é marxista: "Todos juntos somos fortes/ Somos flecha e somos arco/ Todos nós no mesmo barco/ Não há nada pra temer" (da música "Todos juntos", sintetizando o que o velho Karl quis dizer com "Trabalhadores do mundo, uni-vos"). Mas eu mesmo nunca tinha atentado para a ousadia do Chico Buarque. Como é que isso passou pela censura da época?

Chico e sua filha Silvia, em 1977: ousadia
Na letra de "Um dia de cão", que apresenta o personagem Cachorro, a provocação aos militares é escancarada: "Lealdade eterna-na/ Não fazer baderna-na/ Entrar na caserna-na/ O rabo entre as pernas-nas". E mais: "Fidelidade à minha farda/ Sempre na guarda do seu portão/ Fidelidade à minha fome/ Sempre mordomo/ E cada vez mais cão". A zombaria (pesada) à obediência canina e nunca questionada dos militares é arrematada com a frase "Sempre estou às ordens, sim, senhor!". Por algo muito semelhante - os versos "Há soldados armados, amados ou não/ Quase todos perdidos de armas na mão/ Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição/ De morrer pela pátria e viver sem razão", de "Pra não dizer que não falei das flores (Caminhando e cantando)" - o Geraldo Vandré tornou-se o inimigo musical nº 1 dos militares e sofreu forte perseguição. Mas as sutilezas de "Os Saltimbancos" não param por aí. Na música que apresenta a personagem Galinha, Chico Buarque ironiza (os grifos são meus): "Pois um bico a mais/ Só faz mais feliz/ A grande gaiola/ Do meu país". Hoje isso pode parecer uma bobagem sem importância, mas, naqueles tempos bicudos, isso era uma provocação pra lá de temerária. Só que, de alguma forma, passou pela censura.

Raul: anarquia para crianças (na Globo!)
Outro LP revisitado, dessa vez muito menos político, foi o "Plunct, plact, zum", trilha sonora de um especial infantil exibido pela TV Globo em 1983. Tinha no elenco os humoristas José Vasconcelos e Jô Soares, as cantoras Fafá de Belém e Maria Bethânia e os cantores/compositores Eduardo Dusek e Raul Seixas. E foi este último que, pra variar, "carimbou" ali, naquela inocente atração global para crianças, um componente político inusitado. Encarnando o "Carimbador Maluco", Raul compôs uma canção homônima que fez enorme sucesso (tirando-o de um ostracismo de três anos sem gravar) e que botou na boca das crianças - e do povo - os versos iniciais "Tem que ser selado, registrado, carimbado/ Avaliado, rotulado/  Se quiser voar!". Pois isso foi tirado simplesmente de um texto anarquista, "Ser governado", de Pierre-Joseph Proudhon, publicado em 1851 no livro "Idée générale de la révolution au XIX e siècle" ("Ideia geral de revolução no século XIX"). Diz o filósofo e político francês: "Ser governado é ser, a cada operação, a cada transação, a cada movimento, notado, registrado, recenseado, tarifado, selado, medido, cotado, avaliado, patenteado, licenceado, autorizado, rotulado, admoestado, impedido, reformado, reenviado, corrigido". Isso mesmo: anarquia para crianças! E na Rede Globo! Grande Raul. A Liz adorou tudo isso.


segunda-feira, março 16, 2015

Tomaram conta

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Bolinha voa sobre Serra: ódio
O triste "espetáculo" que tomou as ruas ontem, em todo o país, confirma que, ao contrário do que comemorava a campanha eleitoral do Partido dos Trabalhadores, a esperança NÃO venceu o ódio quando a presidente Dilma Rousseff foi reeleita. Muito pelo contrário. "Nunca antes", desde que Lula tomou posse, em 2003, este sentimento de ódio irracional e violento esteve tão forte, palpável e amedrontador. Em post escrito em novembro de 2010, comentei: "A campanha de esgoto que o tucano José Serra fez (...) nas eleições presidenciais conseguiu trazer para os holofotes os setores mais atrasados, conservadores e extremistas da sociedade brasileira e acentuou à tensão máxima o ódio, o preconceito e a divisão raivosa entre nós". Me enganei. Não havíamos, na época, chegado à tensão máxima. Aquele clima de "vamos fazer justiça com as próprias mãos, vamos matar e esquartejar esses petistas desgraçados" detonado por Serra - e a "grande" imprensa - com a lamentável e constrangedora farsa da bolinha de papel era apenas o início da escalada do ódio. E, depois de ontem, tenho medo só de imaginar quando a tensão máxima de fato for atingida...

"Deus" e "militares": como em 1964
Esse ódio, que sempre foi insuflado pela elite e a mídia golpistas contra o citado Partido dos Trabalhadores, seus integrantes e militantes, agora passou a um outro nível. Ao receber todos os palanques, holofotes e espaços possíveis, estes "setores mais atrasados, conservadores e extremistas da sociedade brasileira" ultrapassaram a fase de negação (dos "petistas", dos "sem-terra", dos "comunistas", "cubanos", "bolivarianos", "chaviztas" etc etc etc etc) e partiram para a afirmação pública, explícita e orgulhosa de todas as suas bandeiras (as piores possíveis). Depois de ontem, o impeachment ao governo Dilma Rousseff, o ódio ao PT, a Petrobras, a "corrupção generalizada", a "crise" econômica e outros quetais passaram a ser apenas o granulado do bolo. A verdadeira massa deste quitute é o fim da democracia partidária e das eleições diretas, a defesa do retorno à ditadura militar, a criminalização dos trabalhadores organizados, o combate a todo e qualquer movimento dos excluídos, dos negros, dos nordestinos, das mulheres, dos homossexuais.

Janine: ataque aos direitos humanos
Mesmo em minoria (pois perderam as últimas quatro eleições presidenciais), os conservadores e extremistas tomaram conta não apenas das ruas, mas do cenário político e midiático, da internet e de todos os locais onde alguém se atreve a falar sobre algo que eles odeiam. Dá discussão. Dá briga. A sem-cerimônia com que os "líderes" do tal movimento "Revoltados Online" faz propaganda do execrável Jair Bolsonaro (PP) como seu preferido na disputa presidencial de 2018 dá ideia de onde o ódio disseminado pela oposição e pela imprensa irresponsável nos levou. Como bem observou o filósofo Renato Janine Ribeiro, professor da cadeira de Ética e Filosofia Política da USP, em palestra recente, "A extrema-direita está se distinguindo do restante por um ódio cabal aos direitos humanos. (...) Atacam o homossexual, a igualdade de gênero, os direitos das mulheres. (...) O perigoso no Brasil, de certa forma, é a extrema-direita ir se aproximando da direita e contaminando, a ponto de seu apoio se tornar essencial. (...) Estamos tendo no Brasil uma tolerância, que é grande, com condutas antidemocráticas que deveriam ser tipificadas como criminosas… Pregar a volta dos militares deveria ser crime, deveria levar a pessoa para a cadeia". EXATAMENTE.

Cômico, se não fosse trágico: brincadeira na Internet reflete bem do que se trata o post



sexta-feira, março 13, 2015

O futebol encaretou

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Será que a Itaipava levou Sheik a parar de beber?
No programa Globo Esporte de hoje, da famigerada "Vênus Platinada", o atacante corintiano Emerson Sheik fez questão de declarar (o grifo é meu): "Festa nunca mais! Eu tomava minha cerveja, mas já estou há dois meses sem beber" (leia aqui). Uma frase na medida para ficar "de boa" com a torcida - a mesma que, há cerca de um ano e meio, reagiu furiosamente depois da postagem de uma foto em que o jogador dava uma "bitoca" num amigo, episódio que colaborou decisivamente para que fosse emprestado ao Botafogo-RJ no ano passado. De volta ao Corinthians, Sheik recuperou a confiança do técnico Tite, apesar de causar alguma dor de cabeça à diretoria, como quando chega atrasado aos treinos. Porém, mesmo assim, vem apresentando um bom futebol neste início de temporada. E esse é o cerne da questão: o que importa se o jogador bebe ou não a sua cervejinha nas horas de folga? Sou daquela opinião de que, se o cabra corresponder em campo, ninguém tem nada com sua vida pessoal. Mas hoje, com as torcidas organizadas patrulhando "baladas" noturnas (e a imprensa esportiva dando cada vez mais espaço pra esse tipo de pauta "revista Contigo"), os jogadores procuram passar a imagem de "bons moços". Dando declarações como a de Emerson Sheik ao Globo Esporte, por exemplo.

Sócrates, nos tempos de jogador, brindando cerveja
Coisas como essa me levam a pensar no quanto o futebol encaretou de uns 20 ou 30 anos pra cá. Quando eu era moleque, nenhum dos grandes craques escondia que tomava sua cervejinha - e, quando apareciam na TV fazendo churrasco ou roda de samba, todos ostentavam um copinho na mão. Como o Júnior, do Flamengo, o palmeirense César Maluco, o sãopaulino/santista Serginho Chulapa, o Careca (que conta que bebeu com os torcedores logo após a conquista do Brasileirão de 86), sem falar no Renato Gaúcho, Romário & cia. ilimitada. Mas o ícone máximo, neste "quesito", era mesmo o Doutor Sócrates, "guru informal" e sintético do Futepoca. Tá certo que o Magrão, a exemplo de outros casos tristes como os do Canhoteiro e do Garrincha, sucumbiu ao alcoolismo e morreu disso, depois de parar de jogar. Mas, nos seus tempos de Corinthians e de seleção brasileira, nunca deixou de corresponder em campo, mesmo mantendo o hábito de beber e fumar - e publicamente, à vontade, em qualquer situação. Por isso mesmo, ao contrário dos jogadores de hoje, tinha a coragem de peitar todo tipo de patrulha, da torcida e da imprensa. "Não querem que eu beba, fume ou pense? Pois eu bebo, fumo e penso. Fui para a avenida brincar, bebi direitinho. Não fico me escondendo para fazer as coisas", afirmou, à revista Placar, logo após o Carnaval de 1986. Prestem atenção: "bebo e penso". Ah, bons tempos! Velhos tempos, saudosos tempos...


O dia em que a Câmara dos Deputados descobriu que existe "presunção de inocência"

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Na sessão da CPI da Petrobras realizada ontem à tarde em Brasília, o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), foi aplaudido após e mesmo durante sua explanação inicial de 53 minutos. Tratou o pedido de abertura de inquérito feito em relação a ele, realizado pelo procurador-geral da República Rodrigo Janot, como algo feito por “motivação política”. Foi apoiado por lideranças – a maioria delas que apoiou sua eleição à presidência da Casa – e reverenciado de forma comovente pelos seu colegas.

A deferência era tanta que foi constrangedora. Em certos momentos, lembrava cenas do filme O Poderoso Chefão, onde convidados do casamento da filha de Don Corleone, personagem vivido por Marlon Brando, recebia pedidos e tinha sua mão beijada pelos convivas. No caso de hoje, não houve qualquer pedido aparente, apenas loas tecidas à vontade a Cunha.

Mas se há “motivação política” na inclusão do peemedebista na lista, quem é o “motivador”? Obviamente, o governo. Na trama em que o presidente da Câmara alega estar envolvido, Rodrigo Janot estaria interessado em agradar quem tem a possibilidade de conduzir sua reeleição, o Executivo, e por isso teria incluído o nome do peemedebista. Dupla e grave acusação: a de ingerência governamental no trabalho do Ministério Público e de uma conduta inidônea do procurador-geral. E os petistas, diante das acusações do presidente da Câmara, foram vacilantes, preferindo falar sobre temas correlatos mas não batendo de frente com o depoente.

Eduardo Cunha: o inferno são os outros... Sempre. (Lucio Bernardo Jr. – Câmara dos Deputados)

As falas de Cunha foram diretas e, para ilustrar o que ele diz ser incoerência do procurador ao pedir investigações sobre ele, citou dois exemplos de senadores petistas, Delcídio Amaral, que teve o pedido de abertura de inquérito arquivado, e Gleisi Hoffman. Sempre com uma adversativa de que citava os exemplos mas não “acusava” ninguém, deixou os ataques mais agressivos a cargo de parceiros como o deputado Paulinho da Força (PSD-SP), que levantou a hipótese de conluio entre o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, e o procurador Janot.

O fato é que, diante da evidente tática do peemedebista de jogar o peso das investigações da Lava Jato nos ombros do governo, tomando a própria defesa como se fosse, também, uma defesa do Legislativo, atiçando os instintos corporativos dos parlamentares, Cunha mostrou mais uma vez que sabe bem o que quer e já definiu como fazê-lo. Enquanto isso, a articulação governista hesitou e, ao não fazer a defesa enfática do governo diante das acusações do presidente da Câmara, escancarou um modo de fazer política que é grande responsável pela atual situação em que se encontra o Planalto e a base dilmista no Legislativo.

Para além da tática política de Cunha, algo comovente na CPI foi descobrir o quanto nossos deputados prezam e valorizam a presunção de inocência. E sabem, porque assim disseram vários deles, que o envolvimento do nome de uma pessoa em investigações pode se traduzir em culpa para parte da opinião pública.

Uma intervenção reveladora – mas não a única – nesse sentido foi feita pelo deputado Celso Pansera (PMDB-RS), ao rebater a fala de Ivan Valente (Psol-SP), que pediu a Cunha que abrisse seus sigilos telefônico, bancário e fiscal para que pudesse continuar seu trabalho à frente da Câmara. De acordo com o parlamentar gaúcho, “pedir abertura de sigilo é induzir à condenação”. Diz muito a respeito da conduta de seus colegas em diversos episódios.

É uma pena esse interesse pela presunção de inocência ter surgido só agora, em especial para parlamentares que têm como hábito acusar e apontar o dedo para um adversário – político ou não – na primeira oportunidade. E também descobrimos, na didática sessão da CPI, que decisões judiciais podem ser contestadas publicamente, já que a abertura de inquérito para investigar Eduardo Cunha foi um pedido de Janot acatado por um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Teori Zavascki.

Poderíamos aproveitar essa onda de preocupação de parlamentares com a presunção de inocência para exigir que este seja um direito assegurado a todos os cidadãos, pois ele desaparece no cotidiano de muitos brasileiros, em especial aqueles que vivem nas periferias das grandes cidades, vítimas do autoritarismo do poder público e que raramente são tema de qualquer discussão no Congresso Nacional. Porque o ônus da prova e o peso da culpa, nesses casos, ficam para os acusados, que não são poucos.

Publicado originalmente na Revista Fórum

quinta-feira, março 12, 2015

'Tô me guardando pra quando o domingão passar...'

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quarta-feira, março 11, 2015

Me engana que eu NÃO gosto

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LEIA:

A Democracia Particular de Aécio Neves


segunda-feira, março 09, 2015

Sim, o consumo exagerado de álcool mata. Mas falta discutir (e tolher) a propaganda de bebidas

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Depois que um rapaz de 23 anos morreu após ingerir cerca de 30 doses de vodca numa espécie de "gincana alcoólica" disputada entre repúblicas universitárias, o consumo excessivo de álcool entre os jovens voltou à pauta midiática. Como o tom das notícias, editoriais e opiniões é sempre meio acaciano (sim, óbvio: beber exageradamente mata, não importa a idade), o Estadão fuçou algum dado concreto para fugir da subjetividade e publicou, baseado em números do portal Datasus, que, no Brasil, "a cada 36 horas um jovem morre por intoxicação aguda por álcool ou de outra complicação decorrente do consumo exagerado de bebida alcoólica". Tal cálculo baseia-se no último levantamento disponível, de 2012, quando ocorreram 242 mortes na faixa etária dos 20 aos 29 anos "por transtornos por causa do uso do álcool", conforme definido na Classificação Internacional de Doenças (CID).

Mas o dado mais interessante da reportagem talvez seja o fato de que, segundo o Instituto Nacional de Políticas Públicas do Álcool e Outras Drogas da Universidade Federal de São Paulo (Inpad/Unifesp), entre os brasileiros que consomem álcool, o hábito chamado de "beber em binge" [ou "beber pesado episódico], quando há ingestão de pelo menos cinco doses de bebida em um período de duas horas, cresceu de 45%, em 2006, para 59%, em 2012. De acordo com o psiquiatra Jerônimo da Silva (leia aqui), um drinque - ou uma dose - seria o equivalente a uma lata de cerveja (350 mililitros) ou a uma taça de vinho (150 ml) ou a uma dose de destilado (50 ml). "Esse abuso ['beber em binge'] é mais comum entre jovens, porue nessa faixa etária é realmente mais difícil controlar os impulsos", disse, ao Estadão, Clarice Madruga, pesquisadora do Inpad/Unifesp.

E ela acrescentou: "É preciso que o poder público intervenha na venda de bebida". Tudo bem, concordo que é responsabilidade do governo (principalmente o federal) impor limites no comércio de bebida alcoólica. Porém, como sabemos que o poder público, atualmente, é muitas vezes refém do poder econômico (desde o financiamento privado de campanhas eleitorais até a pressão exercida para estabilização ou desestabilização da economia do país, dependendo dos interesses), fica difícil imaginar que consiga se impor contra um setor tão lucrativo do mercado. Segundo o jornal Correio Braziliense, "o Brasil é o 3º maior produtor de cerveja do mundo, e a produção cresce a uma taxa média de 5% ao ano. O segmento cervejeiro responde por 80% do mercado de bebidas alcoólicas, com faturamento anual de R$ 70 bilhões. Recolhe R$ 21 bilhões em impostos por ano e paga R$ 28 bilhões em salários para um universo de 2,7 milhões de empregados em mais de 200 fábricas".

Essa mesma notícia confirma o a supremacia do setor privado sobre o público, pois aponta que "o Brasil perde hoje, com os problemas decorrentes do álcool, 4,5 vezes mais do que o faturamento da indústria das bebidas alcoólicas, enquanto o alcoolismo suga o equivalente a 7,3% do Produto Interno Bruto (PIB), pequenos e grandes grupos do setor movimentam, juntos, 1,6% de todas as riquezas produzidas no país". Ora, então está claro que o governo e a população "que se danem", o que interessa é lucrar! Se a situação chegou a esse ponto de prejuízo social, e o governo se mostra "de mãos atadas", fica explícito que o mercado é quem dá as cartas nesse jogo. Assim sendo, resta-nos a velha "política de redução de danos". Se não dá pra cercear a venda, podemos reivindicar então maior controle na propaganda de bebida alcoólica, que é um verdadeiro "vale-tudo" no Brasil.

No artigo “Propaganda de álcool e associação ao consumo de cerveja por adolescentes”, publicado na edição de junho da Revista da Saúde Pública, os pesquisadores mostram os resultados do estudo que interrogou 1.115 estudantes, do 7º e 8º anos de escolas públicas de São Bernardo do Campo (SP): a maioria dos jovens afirmou que se identifica com o marketing da indústria de bebidas, pois (o grifo é meu) "os comerciais parecem refletir situações de suas vidas". Segundo o artigo, essa similaridade faz os adolescentes classificarem a mensagem recebida como "verdadeira", como exemplifica uma das opções mais marcadas no questionário (o grifo é meu): "as festas que eu frequento parecem com as dos comerciais". E mais: segundo o estudo, a noção de fidelidade à marca, exposta constantemente nas propagandas de cerveja (a bebida mais consumida no país), tem um "impacto essencial para a ingestão de álcool precocemente".

De fato, as propagandas de cerveja costumam mostrar sempre um ambiente de muita alegria, muita brincadeira, muita paquera, muita gente "bonita" e sorridente - e MUITA bebida. Procuram convencer o consumidor de que quem não bebe - ou bebe pouco - está automaticamente "excluído" da "turma", do grupo "bacana", "popular" e que "curte a vida adoidado". Mesmo quando os problemas decorrentes do álcool são abordados nessas propagandas - ressaca, amnésia, briga de casal e besteiras cometidas tipicamente por bêbados -, o clima é de gozação, de palhaçada, de algo risível. Nunca censurável. Ou seja, se até "dar vexame" ou "fazer merda" é engraçado, isso é mais um motivo para entrar para a "turma", para "encher a cara", para não ter limites ao beber. Pode parecer besteira, mas acho que subestimamos o poder e o alcance da propaganda e da televisão. Os mesmos telejornais que noticiaram a morte do rapaz de 23 anos que ingeriu 30 doses de vodca exibiram, no intervalo comercial, propagandas divertidas e estimulantes de bebidas alcoólicas.

Nunca é demais lembrar: canal de TV é concessão. Propaganda de bebida alcoólica (e de cigarro) deve ser assunto prioritário no debate de saúde pública. E deve, sim, ser tolhida.


terça-feira, março 03, 2015

O fim da longa estrada da vida

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José Rico e seu estilo único, inconfundível
Morreu hoje um dos meus maiores ídolos: José Alves dos Santos, o JOSÉ RICO, da famosa dupla com Milionário (Romeu Januário de Matos). Com 68 anos, não resistiu a uma parada cardíaca, depois de ter sido internado ontem, em Americana (SP), ao passar mal durante uma partida de futebol (aliás, o gosto dele por esse esporte ia muito além de disputar "peladas": chegou a construir uma mansão no formato da Taça Jules Rimet). Zé Rico é o autor de um dos maiores hinos populares do país: "Estrada da vida", que virou até filme, em 1981, no auge da fama da dupla, batizada como "Os Gargantas de Ouro do Brasil". Naquela época, Milionário e José Rico fizeram shows no México, no Japão e na China. Ainda hoje, mesmo quem não gosta de música caipira (ou sertaneja), já deve ter ouvido em algum lugar, pelo menos uma vez, os versos: "Nesta longa estrada da vida/ Vou correndo e não posso parar/ Na esperança de ser campeão/ Alcançando o primeiro lugar". Pra quem insistir em dizer que não conhece, segue a gravação original desse clássico:


Pelo menos para mim, um caipira do interior de São Paulo (mais precisamente de Taquaritinga, região de Ribeirão Preto), essa e muitas outras gravações da dupla estão eternamente fixadas nas memórias mais longínquas da minha infância, com a profusão de cornetas mexicanas como pano de fundo para os gritos do Zé Rico - "Ui-ui-ui! Farrúpa!  Zuuummm! Alôôôô! Uuuuiiiii! Rí-rí-rí!" - e os "provérbios" que ele costumava "declamar" no meio das músicas, segurando um dos ouvidos com a mão: "É isso aí, amigo! Enquanto você descansa, a gente carrega mais um caminhão de pedra!". Digam o que quiserem, mas Zé Rico foi uma das figuras mais originais e peculiares do nosso cenário artístico, um personagem único, algo comparável a Raul Seixas - e comparável mesmo, pois a dupla com Milionário possui uma legião de milhões de fanáticos por todo o Brasil. Como o Emerson Pereira, meu amigo dos tempos de faculdade, com quem eu costumava fazer o dueto de "Taça da amargura", música que batizou a república de estudantes onde morávamos:


Me lembro também de uma festa numa quitinete onde morei, em Ribeirão Preto, aos 18 anos, em que o vinil "Volume 4" de Milionário e José Rico era um dos únicos disponíveis, e tocou a madrugada inteira na pequena sonata de plástico, embalando os casais que já se agarravam (mesmo os que tinham preconceito contra a dupla). Pra mim, apesar de não gostar de música sertaneja, Zé Rico está acima de qualquer preferência ou preconceito. É um dos "puros", dos "autênticos", imune a rótulos e desdéns. Numa entrevista ao site Clube Sertanejo, ele resumiu as origens da dupla: "Eu sou nordestino, nasci no sertão pernambucano [em São José do Belmonte], me criei no cantinho do Norte do Paraná, na cidade de Terra Rica, onde recebi o nome de José Rico. Aí, vim pra São Paulo, encontrei com Romeu, formamos a dupla e começou a luta". Luta que rendeu fama, dinheiro e sucessos estrondosos. Minha gravação preferida, que tocou naquela noite em Ribeirão, é essa:


É emblemático - e nada gratuito - o Zé Rico falar em "luta", pois, pela origem, pelo nome e pelo apelido, trata-se de um legítimo BRASILEIRO, um Garrincha da música. Um gênio - ainda que incompreendido por muitos que defendem o temível e subjetivo "bom gosto". E termino esse post (triste pelo Zé Rico, e com a certeza de que derrubarei um gole de cachaça pra ele), reproduzindo mais um trecho da citada entrevista ao site Clube Sertanejo (o grifo é meu): "Nós tivemos a sorte e felicidade de, quando praticamente não se vendia disco, ultrapassar as expectativas. E hoje é mais difícil, através de outros intercâmbios. Mas dá pra ir tocando. Mais uma vez, eu afirmo: aqueles que se dedicaram com respeito e amor permanecem". JOSÉ RICO PERMANECERÁ. "Farrúpa! Zuuuuuummmmm..."



LEIA:

Enterro de José Rico reúne multidão e causa tumulto em Americana (SP)


P.S.1: Só pra acrescentar a tag "Política" ao post, vídeo recente do José Rico:


P.S.2: E a tag "Futebol" se justifica também por este outro vídeo, de 31/12/2014:




terça-feira, fevereiro 24, 2015

Política - definições básicas

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quinta-feira, fevereiro 12, 2015

'Bebidas espirituosas'

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O 3º volume da coleção 'Terra Brasilis'
Em que pese ter sido escrito por Eduardo Bueno, aquele que recentemente chamou a região Nordeste de "bosta", o livro "Capitães do Brasil - A saga dos primeiros colonizadores" é um dos três volumes de uma coleção publicada pela Editora Objetiva, no fim do século passado, que teve o mérito inegável de recontar e detalhar os primórdios da História brasileira sob uma ótica menos mítica/acadêmica e mais "humanizada", por assim dizer, perseguindo informações e provas documentais com rigor "jornalístico". A linguagem menos empolada/mais acessível utilizada pelo autor também colaborou para o sucesso popular dessas obras, pertencentes ao chamado "revisionismo histórico" - que, a partir daquela época, motivou centenas de publicações interessantes no país.

Marco de Touros, exposto em Natal
Pois bem, ao conhecer, no início deste mês, o Marco de Touros, exposto no Forte dos Reis Magos, em Natal (RN), me interessei pela tese de um pesquisador local de que Pedro Álvares Cabral talvez não tenha descoberto o Brasil em Porto Seguro (BA). Desde então, tenho lido e relido vários textos e livros sobre o primeiro século de colonização do nosso território. Um deles é exatamente "Capitães do Brasil", o único dos três títulos da Coleção Terra Brasilis que eu ainda não tinha lido (os outros são "A viagem do descobrimento" e "Náufragos, traficantes e degredados"). Neste último volume, Bueno trata sobre os interesses de Portugal ao decidir colonizar o Brasil 30 anos após a descoberta, a divisão em capitanias hereditárias, o destino de cada uma delas e as venturas e desventuras dos doze donatários daquelas terras.

Manguaça Vasco Fernandes Coutinho
Um deles foi Vasco Fernandes Coutinho, fidalgo português presenteado pelo rei Dom João III com a 11ª capitania das 15 demarcadas horizontalmente de Norte a Sul na nova colônia, a do Espírito Santo. Depois de tomar posse da gigantesca porção de terra em 1535 (cada capitania tinha cerca de 350 km de largura, dimensões similares às das maiores nações europeias), Coutinho decidiu regressar à Portugal quatro anos depois, em busca de algum sócio que topasse investir em expedições para procurar ouro e prata no interior do Brasil. Porém, ao partir para Lisboa, o donatário deixou no comando da capitania o degredado D. Jorge de Meneses, conhecido por "homem de Maluco". Não à toa: investido do cargo, quebrou acordo com os índios Goitacás e invadiu seu território. Foi morto a flechadas.

Mapa de Vila Velha do século XVI
Outro degredado, D. Simão de Castelo Branco, assumiu o posto vago. Em vão: ainda furiosos, os Goitacás não só o assassinaram como trucidaram a maioria dos colonos europeus, além de invadir e destruir o povoado que existia onde hoje está a cidade de Vila Velha. A notícia da tragédia demorou alguns anos para atravessar o oceano e, por isso, Vasco Coutinho a ignorava quando voltou ao Brasil. O pior foi que, além de desinformado, o donatário tomou uma atitude absurda ao fazer uma escala na capitania de Porto Seguro: levou consigo, para o Espírito Santo, um bando de degredados que havia fugido da cadeia de Ilhéus, depois de ter capturado e saqueado um navio. Um dos piratas era francês, e dar abrigo a ele era algo impensável numa época em que Portugal combatia com armas os frequentes saques da França no Brasil.

Gravura de índio 'bebendo fumo'
Com a ajuda dos degredados e de colonos remanescentes, Coutinho fundou um novo povoado, chamado Vila Nova (ao lado de onde antes existia a destruída Vila Velha) e, em 1551, derrotou os Goitacás - motivo pelo qual a Vila foi rebatizada como Vitória, cidade que hoje é a capital do atual Estado do Espírito Santo. Porém, os degredados, piratas e bandidos aos quais o donatário tinha se aliado se tornaram problema muito maior do que os indígenas, e a capitania caiu em desordem incontrolável. Para complicar a situação, segundo Francisco de Varnhagen, um dos primeiros historiadores brasileiros no século XIX, Vasco Coutinho "acabou por dedicar-se com excesso às bebidas espirituosas e até se acostumou com os índios a fumar, ou a beber fumo, como então se chamava a esse hábito, que naquele tempo serviu de compendiar até onde o tinha levado sua devassidão".

Estátua de Pero Fernandes Sardinha
Curiosa a denominação "bebidas espirituosas", quando em língua inglesa o goró é popularmente chamado de spirit, pois considera-se que o consumo de bebida alcoólica "altera o espírito", causando mudanças físicas e mentais. Voltando ao "dono" da capitania do Espírito Santo, seus vícios o fizeram sofrer uma série de humilhações públicas, infringidas pelo primeiro bispo do Brasil, D. Pero Fernandes Sardinha. De acordo com relato do então governador-geral da colônia, D. Duarte da Costa, Vasco Coutinho chegou a Salvador em 1555 "velho, pobre e cansado, bem injuriado do Bispo, que lhe tolhera a cadeira das espaldas e apregoara por excomunhão, por sua mistura com homens baixos e por seu hábito de beber fumo (...); e o Bispo dissera dele no púlpito coisas tão descorteses, estando ele presente, que o puseram em condição de se perder". Era o princípio do fim do fidalgo-manguaça.

O governador-geral Mem de Sá
Em 1558, outra vez cercado pelos Goitacás e sem qualquer respeito dos colonos ou controle na administração da capitania, Coutinho escreveu para o novo governador-geral, Mém de Sá, pedindo dinheiro e dizendo-se "velho, doente e aleijado". Apesar de mandar reforços, Sá escreveu para o rei sugerindo: "Parece que V. Alteza devia tomar esta terra a Vasco Fernandes e dar aos homens ricos que para cá querem vir". De acordo com o livro de Bueno, em 1561, "depois de gastados muitos mil cruzados que trouxera da Índia, e muito patrimônio que tinha em Portugal", Vasco Coutinho "acabou seus dias tão pobremente que chegou a pedir que lhe dessem de comer por amor de Deus, e não sei se teve um lençol com que o amortalhassem". Consta ainda que sua mulher e filhos acabaram seus dias desamparados, num hospital de caridade. E o território do Espírito Santo permaneceu por muito tempo abandonado, abrigando fugitivos e piratas.

A 'Medalha Vasco Fernandes Coutinho'
Mais de quatro séculos depois, Vasco Coutinho continua causando polêmica. Em 1962, a Polícia Militar do Espírito Santo criou uma medalha com seu nome, para "celebrar a colonização do solo" local - e "homenagear", no dia 23 de maio (alusão à data de desembarque de Coutinho em  1535), políticos, militares, empresários e "otoridades"/"celebridades" do gênero. Na edição de 2013, o dramaturgo Wilson Coêlho recusou-se a recebê-la, justificando: "Me parece estúpida a ideia de comemorar a colonização, principalmente quando significa eu assumir o papel de colonizado como um 'bom moço' entre os colonizados. Nesse processo de colonização, Vasco Fernandes Coutinho simboliza o genocídio, o assassinato cultural dos povos originários (Aimorés, Botocudos e Puris), a expansão do território europeu, o roubo e a exploração do trabalho escravo" (leia a íntegra de sua carta aqui). Apropriado ponto final nesse post.