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Semana passada consegui encontrar, num sebo, um livro que sempre quis dar uma olhada: "Barbosa - Um gol faz cinquenta anos", de Roberto Muylaert, lançado em 2000 pela Editora RMC. Porque sou daqueles que, mesmo não tendo vivido aquela época e reconhecendo que as imagens disponíveis são pouco conclusivas, não culpo o nosso goleiro na fatídica e trágica derrota na Copa de 1950. Para mim, e para o autor do livro, o campineiro Moacir Barbosa do Nascimento (foto à direita) sofreu durante meio século por um crime que não cometeu. Afinal, no Brasil, a culpa sempre é do goleiro. Ainda mais se for negro. Ainda mais se não faz o milagre de evitar o gol da derrota da nossa seleção, numa decisão de Copa do Mundo disputada em pleno Maracanã.
"Uma vez, eu tomava um limãozinho num bar de um amigo, quando entra uma senhora com um menino que não tinha nem dez anos, aí a mulher vira e fala 'olha, meu filho, vem cá, está vendo esse homem aí, é ele que fez todo o Brasil chorar'", contou Barbosa, no livro. "O garoto ficou olhando fixo para a minha cara, com um ar entre condenação e consternação, então eu não aguentei e respondi 'escuta aqui, minha senhora, se eu fosse seu filho queria ver se a senhora teria coragem de dizer isso, é porque eu não sou seu filho, senão a senhora também estaria sofrendo na pele'. Ela também não tinha nascido na época da Copa, então já eram duas gerações que não estavam neste mundo no dia daquela final, me acusando", lamentou o ex-goleiro.
O livro de Muylaert aponta para possíveis falhas de dois outros jogadores brasileiros que estavam em campo: o ponta-esquerda Chico e o zagueiro Juvenal (foto à esquerda). Convencido de que o Brasil seria campeão de qualquer jeito, o ponta queria marcar um gol e entrar para a História, por isso, não cumpriu o combinado de voltar para ajudar o lateral-esquerdo Bigode, que viu Gigghia escapar duas vezes às suas costas - uma cruzando para o empate de Schiaffino e outra fazendo o inpensável gol da vitória e do título. Já Juvenal, que chegou a culpar Bigode e Barbosa pela derrota, estava nervoso e mal posicionado em campo. Além disso, segundo o ex-goleiro, estaria de ressaca.
"O Juvenal estava na minha frente, só senti o vento quando a bola passou, e ele estava mesmo na minha frente, no primeiro gol. Ele tinha é que estar na frente do Schiaffino. (...) No segundo gol ele tinha que estar na frente do Ghiggia, mas tinha ficado para trás de novo", observou Barbosa. "O Juvenal me acusou, falou com um jornalista da Bahia que o culpado foi o Barbosa, respondi que o Juvenal estava abaixo do meu nível, por isso não falei nada (...). Mesmo antes da final, se o Nena, reserva do Juvenal, não estivesse machucado, Juvenal nem teria jogado, já que na noite anterior tomou um porre homérico no Dancing Avenida, da rua Santa Luzia, o que deixou nosso técnico maluco de raiva".
Hoje, tanto Barbosa quanto Juvenal estão mortos - e procurar culpados para aquela derrota não faz o menor sentido. Mas como o goleiro foi o mais condenado e execrado, nunca é tarde para contemporizar a "versão oficial", de que teria falhado no gol de Gigghia. Segundo Barbosa, quando o ponta adversário alcançou a bola, outros três uruguaios estavam livres na área brasileira (Schiaffino, Míguez e Julio Pérez), prontos para receberem o passe e estufarem as redes, sem qualquer marcação. Todos no estádio tinham certeza de que Gigghia iria cruzar a bola para eles, como havia feito no lance do primeiro gol.
Por isso, Barbosa permaneceu no meio da meta até o último momento. Quando percebeu que o ponta chutaria direto, saltou e ainda conseguiu roçar com os dedos a bola. Tarde demais. Mesmo sem culpa no lance, Barbosa seria apontado, até o final da vida, como o grande vilão daquela tragédia futebolística.
Churrasco das traves
O livro de Muylaert ainda confirma uma lenda surreal, a de que as traves de madeira do gol onde os uruguaios marcaram foram entregues a Barbosa, em 1963, ao serem substituídas pelas mais modernas, de metal. Aposentado havia menos de um ano, o ex-goleiro recebeu o "presente" de Abelardo Franco, diretor da então Administração dos Estádios do Estado da Guanabara (Adeg). A inteção não foi de escárnio, pelo contrário: Franco queria dar a Barbosa a oportunidade de exorcizar seus demônios. E foi o que ele fez. Queimou os três paus em uma enorme fogueira, no quintal de sua casa no bairro de Ramos, no Rio de Janeiro, e aproveitou o braseiro para fazer um lauto churrasco. Chamou toda a vizinhança e serviu muita comida e bebida. Parece realismo fantástico, mas esse ritual pirotécnico diz muito sobre até onde chega, no Brasil, a loucura pelo tormento de uma derrota apoteótica.