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Livro sobre 'o último boêmio' |
Nascido em Curitiba, em 1866, o jornalista Emílio de Meneses era considerado, já no início do século passado, o principal poeta satírico brasileiro depois de
Gregório de Matos, o "Boca do Inferno". Mas também era visto como "
um boêmio desregrado, que vivia na calaçaria [
vagabundagem] dos cafés e botequins e se tornou célebre por sua maledicência". Tal (má) fama fez com que sua entrada na Academia Brasileira de Letras (ABL) fosse adiada por nove anos - e, apesar de aprovada, nunca concretizada de fato, também pelos "maus bofes" do bebum paranaense. Não por acaso, em sua primeira candidatura para ser um "imortal", em 1905, Emílio de Meneses teve como um de seus maiores opositores
Machado de Assis, principal idealizador da Academia e seu primeiro presidente.
O 4º volume da biografia
"Machado de Assis - Vida e obra", intitulado "Apogeu", de autoria de R. Magalhães Júnior (Editora Record, 2008), narra o episódio. "Vamos ter eleição nova para a vaga do
[José do] Patrocínio", escrevia Machado, em junho de 1905, numa carta para o colega
Joaquim Nabuco, recém-chegado aos Estados Unidos, onde era o embaixador do Brasil. "Até agora só há dois candidatos, o
padre Severiano de Resende e
Domingos Olímpio", adiantava o
Bruxo do Cosme Velho. Acontece que, segundo Magalhães Jr, ambas as candidaturas "tinham pouca repercussão nos círculos acadêmicos". "Como último recurso", prossegue a biografia, "Machado suscitou, então, a candidatura de
Mário de Alencar, autor apenas de dois magros livros de versos (...) Seu maior merecimento era o de ser filho de
José de Alencar e de ter, como funcionário, que então era, do Ministério da Justiça e Negócios Interiores, ajudado a obter com o ministro José Joaquim Seabra uma ala do Silogeu Brasileiro, para a instalação da Academia [que até então não tinha sede própria]".
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Machado em pintura feita em 1905 |
Só que havia um bêbado no meio do caminho,
no meio do caminho havia um bêbado... "O empenho de Machado em eleger para a Academia o filho de José de Alencar ia quase tropeçando num obstáculo imprevisto: alguns acadêmicos se inclinavam pela eleição de Emílio de Meneses - muito ligado a
Olavo Bilac e a
Guimarães Passos (...). Mas Machado usou de ardiloso expediente para exprimir sua desaprovação tácita a essa manobra eleitoral". Outro membro da ABL,
Rodrigo Otávio, recordaria o
imbroglio em suas "Memórias dos outros" (o grifo é meu): "Por esse tempo, alguns dos nossos colegas andavam procurando criar no ânimo de Machado uma ambiência favorável à aceitação da candidatura de certo poeta, de notório talento, mas de
temperamento desabusado e assinalado sucesso em rodas de boêmios".
"Nesse dia", continua Otávio, "o nome do poeta veio à tona; a controvérsia fora acalorada. Machado não interveio nela; mas, quando o levamos para o bonde, na Avenida, ao chegar ao canto da
Rua da Assembleia, ele nos convidou a que o seguíssemos por essa rua e, a dois passos, nos fez entrar em uma cervejaria, deserta nesse momento. Não sabendo de todo o que aquilo significava, nós o acompanhamos sem dizer palavras, e vimo-lo deter-se no meio da sala, entre mesinhas e cadeiras de ferro e, também sem dizer palavra, estender o braço, mostrando ao alto de uma parede um quadro, a cores vivas, em que, meio retrato, meio caricatura, era representado em busto, quase do tamanho natural, grandes bigodes retorcidos, cabelo revolto na testa, carão vermelho e bochechudo, o poeta, cuja entrada no grêmio da imortalidade se pleiteava, sugestivamente empunhando, qual novo
Gambrinus, um formidável vaso de cerveja... A cena causou em todos profunda impressão, e tal era o respeito por Machado que, em vida dele, não se falou mais na candidatura de Emílio".
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Meneses: 'raios sobre a iniquidade' |
De fato, a figura do manguaça paranaense não inspirava a seriedade a qual a ABL se arvorava.
Mendes Fradique, no Prefácio de
"Mortalha - Os deuses em ceroulas", descreve: "Os que conheceram Emílio de Menezes ainda estão a vê-lo, com aquela bigodeira à
Vercingectórix e aquele amplo chapéu, ora brandindo o bengalão retorcido, a expedir raios sobre a iniquidade dos pigmeus que o irritavam; ora sufocado num riso apopléctico de intenso gozo mental, rematando uma sátira com que, destro, arrasava a empáfia dos potentados e a impertinência dos presunçosos; ora bonacheirão, carinhoso, entalando uma fatia de pão de ló na boca de um de seus fiéis cães de raça; ora ainda transfigurado, olímpico, dizendo, com inspiração extraterrena, '
Os Três Olhares de Maria' ou o 'Ibiseus Mutabilis'."
Preterido por Mário de Alencar, somente em 1914, seis anos após a morte
de Machado de Assis, é que Emílio de Meneses entraria para a ABL.
Porém, pra variar, sob muito polêmica. "Na versão oficial", diz a
página sobre o poeta na Wikipedia,
"Emílio deixara de tomar posse por conta da
sua teimosia em manter críticas [ao escritor recém-falecido que iria
substituir] no discurso para a ocasião: 'Emílio compôs um discurso de
posse, em que revelava nada compreender de
Salvador de Mendonça,
nem na expressão da atuação política e diplomática, nem na
superioridade de sua realização intelectual de poeta, ficcionista e
crítico. Além disso, continha trechos arguidos, pela Mesa da Academia,
de 'aberrantes das praxes acadêmicas'. A Mesa não permitiu a leitura do
discurso e o sujeitou a algumas emendas. Emílio protelou o quanto pôde
aceitar essas emendas, e quando faleceu, quatro anos depois de ter sido
eleito, ainda não havia tomado posse de sua cadeira' (do sítio da
Academia)". Provavelmente sem saber do episódio da cervejaria, o bebum
se vingava...
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Albuquerque ameaçou apagar a luz |
Afrânio Peixoto, que por muitos anos presidiu a ABL, relembrou que a postura de Meneses fez até com que ameaçassem apagar a luz se ele insistisse em atacar os colegas (!): "Emílio de Meneses quisera descompor a
Oliveira Lima, ao que se opôs
Medeiros e Albuquerque, que então presidia [a Academia], ordenando a supressão dos tópicos alusivos e ofensivos: à insistência do neófito, em dizê-los, ameaçou-o com o comutador da luz elétrica, desde aí ao alcance da mão do presidente. Não foi preciso usar deste obscuro meio coercitivo, porque o acadêmico recalcitrante não chegou a ser recebido, e seu discurso apenas tardiamente publicado nos jornais, razão por que não figura na coleção da Academia".
Hoje presente no sítio da ABL, o discurso registra, também, a mágoa de Meneses com Machado de Assis.
"Quando começou a haver uma quase certeza da minha eleição, os inimigos rancorosos, muitos dos quais só o são por coisas cuja paternidade me foi emprestada, redobraram de esforços demolidores", dizia o poeta. E desabafava, defendendo-se das acusações: "Boêmio e desregrado... Boêmio e desregrado porque, nos momentos decisivos, faz o que qualquer homem medianamente digno tem obrigação de fazer. Boêmio e desregrado, que nunca foi visto em espeluncas. Boêmio e desregrado que, com mais de trinta anos de residência no Rio, não sabe o que seja um desses celebrizados bailes carnavalescos onde o mulherio se excita de jogo e condimenta de álcool. Boêmio e desregrado, por fazer sua hora à mesa de um café ou de uma confeitaria, trocando ideias, dizendo ou ouvindo versos e frases de espírito, como faziam e fazem ainda alguns dos que muito brilho emprestaram e emprestam às cadeiras que entre vós ocupam. Posso garantir-vos serem alegres confabulações literárias, apesar da dose de whisky ou da água de um coco ou de ambos juntos".
Emílio seguia desancando os desafetos, que, logicamente, não permitiram a leitura do discurso - e o novo eleito para a ABL nunca tomou posse. Mas, falando em "alegres confabulações" e em "dose de whisky", não poderiam faltar, na obra de Meneses, odes poéticas ao goró. Uma delas tem como personagens um bêbado e um médico:
ALCOOLISMO
A leitura do tópico tremendo
À lembrança me trouxe uma anedota
Velha, tão velha quanto aquela bota
Que era toda o Larousse do remendo.
Certo alcoolista, um sábio artigo lendo
De um médico alemão de grande nota
Contra o álcool, diz em compulsão devota:
"Como ele prova quanto o vício é horrendo!"
E acrescenta: "A verdade em mim desperta!
Eu não quero pelo álcool cair morto,
Vou dizê-lo bem alto e de alma aberta!"
Tal leitura me traz tanto conforto,
Que vou beber saudando a descoberta
Três garrafas de bom vinho do Porto!...
Curioso é que conheço uma piada (ou anedota) que vai na mesma linha do soneto de Meneses: "Um bêbado ia passando em frente a um prédio e leu, ali, um cartaz anunciando a palestra de um médico sobre 'Os malefícios do álcool'. Resolveu entrar, pra ver se aquilo o convenceria a parar de beber. Sob aplausos, o médico entrou no palco e disse: 'Antes da palestra, quero fazer uma demonstranção'. Colocou dois copos em cima de uma mesa, ambos contendo líquidos transparentes e, depois, mostrou à plateia um bichinho de goiaba, vivo, que andava na palma de sua mão. Primeiro, jogou o verme em um dos copos. Ele continuou se mexendo. 'Viram? Isso é água'. Então, pegou o bicho e jogou no outro copo. Ele morreu na hora e afundou. Sorridente, o médico informou: 'É cachaça'. E perguntou: 'O que vocês concluem?' O bêbado levantou a mão e gritou: 'Quem bebe não tem verme!'...".
Sim, reconheço, é infame. Por isso, voltemos ao Emílio de Meneses, que, dando continuidade ao primeiro soneto sobre o alcoolismo, ironiza o fato de um jornal (
a 'severíssima' Gazeta) publicar artigo contra esse vício e, na mesma edição, ostentar propaganda (
reclame) de cerveja (
clara, escura, mista e
preta):
ALCOOLISMO (II)
Viram? O caso até parece peta!
Quem leu acaso, ao lado, o outro soneto,
Vê que, comigo, está fazendo um dueto
A séria e severíssima GAZETA.
Se, de um lado, lhe veio hoje à veneta
Mostrar do vício o fúnebre esboceto,
De outro lado vai dando, em tom faceto,
"Reclame" à clara, à escura, à mista, à preta!
É que não tem razão a velha rixa
De quem, às claras, bebe por capricho,
Com quem, ocultamente, escorropicha:
Do barril de bom chope, ao claro esguicho,
Depois de salgadíssima salsicha,
Deixem lá que é bem bom matar o bicho!...
É, Emílio, se pensarmos no verme que o médico jogou no copo de cachaça, é mesmo bom
"matar o bicho". E é melhor ser caricato na cervejaria do que imortal na Academia!